06 Mai 2016
De acordo com Jan Assmann, a distinção entre verdadeiro e falso não pertence à religião, mas sim apenas às ciências que operam com demonstrações, como a matemática ou a lógica. Na religião, não se trata daquilo que é verdadeiro e falso, mas sim do que é puro e impuro, sagrado e profano.
A análise é de Marco Vannini, um dos maiores estudiosos italianos de mística especulativa. Em português, foi traduzida a sua Introdução à mística (Edições Loyola, 2005). O artigo foi publicado no jornal L'Osservatore Romano, 26-04-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Ainda em 2003, o então cardeal Joseph Ratzinger se confrontava com as teses de Jan Assmann, egiptólogo de fama internacional e teórico da cultura e da religião, discutindo-as criticamente, mas reconhecendo também aquela importância que aparece em plena evidência hoje, no momento em que está ocorrendo uma grande discussão sobre elas.
Por isso, parece ser muito oportuna a publicação de Il disagio dei monoteismi. Sentieri teorici e autobiografici [O desconforto dos monoteísmos. Sendeiros teóricos e autobiográficos] (Bréscia: Morcelliana, 2016, 112 páginas). Uma entrevista com Assmann, editada com grande competência por Elisabetta Colagrossi, em que o estudioso alemão faz a história da sua formação cultural e da sua pesquisa, e traça um balanço da sua obra, revendo também, ao menos parcialmente, algumas das suas posições.
Em livros como "Moisés, o egípcio" e "A distinção mosaica", Assmann expressava a tese de que o monoteísmo bíblico criou, pela primeira vez, a distinção entre verdadeiro e falso na religião, que foi acompanhada pela intolerância em relação às religiões "falsas" e aos falsos deuses, rebaixados a ídolos.
Em vez disso, as religiões antigas não conheciam essa distinção, colocavam tranquilamente em relação os seus deuses com os deuses dos outros ou, melhor, até os equiparavam. De fato, era prática constante aquela "traduzibilidade" dos nomes divinos, por força da qual, por exemplo, nas "Metamorfoses", de Apuleio, Ísis se apresenta como a deusa adorada com nomes diferentes pelos diversos povos: Juno, Hecate, Belona, Ramnúsia e assim por diante. Algo impossível no monoteísmo bíblico, para o qual é blasfemo identificar YHWH com Júpiter, como, ao contrário, propunha o pagão Varro.
De acordo com Assmann, a distinção entre verdadeiro e falso não pertence à religião, mas sim apenas às ciências que operam com demonstrações, como a matemática ou a lógica. Na religião, não se trata daquilo que é verdadeiro e falso, mas sim do que é puro e impuro, sagrado e profano.
Na realidade histórica, no entanto, essa distinção não tem nada a ver com Moisés, mas sim com Zaratustra, e de fato, na Bíblia, ela aparece pela primeira vez nos profetas do exílio e do pós-exílio, como Jeremias, Dêutero-Isaías, Daniel, remontando provavelmente a influência zoroastrianas.
O fato, contudo, é que o monoteísmo que se afirmou em Israel assumiu características exclusivistas, contando e recordando o próprio nascimento e afirmação com a linguagem da violência.
Como escreve Assmann: "Obviamente, Moisés nunca deixou matar três mil pessoas porque tinham dançado ao redor do bezerro de ouro, e os atos violentos ligados à reforma do culto de Josias também podem ser entendidos a partir de um ponto de vista literário, em vez de eventos históricos. Talvez até Neemias – mas aqui eu seria mais cauteloso – não dissolveu os casamentos mistos entre judeus e cananeus, e deixou repudiar os filhos nascidos dessas uniões. Só as violências dos Macabeus contra os seus compatriotas gregos assimilados é que têm a ver com fatos historicamente reais. O problema, porém, é que essa 'literatura' passou através de um processo de canonização que lhe conferiu uma grande autoridade, de modo que os pósteros, evocando tais passagens, puderam legitimar os seus atos de violência, como, por exemplo, as Cruzadas, o terrível banho de sangue para a conquista de Jerusalém, a destruição das antigas culturas da América e o extermínio dos nativos americanos".
Segundo Assmann, em um tempo de renovada violência em nome de Deus, uma verdadeira tolerância religiosa, capaz de reconhecer a relatividade sem deslizar para a banalidade, só pode subsistir superando a distinção mosaica entre verdadeira e falsa religião, repensando aquele conceito de "religião profunda" que Gandhi expressava como "Religião com R maiúsculo", ou seja, aquela que liga indissoluvelmente à verdade que está dentro de nós e nos purifica sempre. Para além da distinção entre as religiões concretas, ela é um elemento permanente da natureza humana, que deixa a alma inquieta enquanto não encontra a si mesma e não conhece o seu Criador.
A história dos três anéis de Boccaccio, retomada por Lessing no seu "Natã, o sábio", é lembrada com viva aprovação por Assmann no seu "Religio duplex" (2010, no prelo, pela editora Morcelliana), onde se expressa o conceito de que, no nosso mundo globalizado, a religião só pode encontrar lugar justamente como "religio duplex", ou seja, religião de dois planos, que aprendeu a se conceber como uma entre as tantas e a se olhar com os olhos dos outros, sem, contudo, perder de vista o Deus escondido, "ponto transcendental" comum a todas as religiões.
Como, apesar da globalização, nunca haverá uma única religião, uma única verdade, um único Deus, a "religio duplex" é aquele que nos permite ficar unidos e solidários no destino humano comum, para além de todas as diferenças. Uma tese, esta de Assmann, que dá muito o que pensar.
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O desconforto dos monoteísmos: o novo livro de Jan Assmann. Artigo de Marco Vannini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU