26 Fevereiro 2022
Todos devemos nos engajar a fundo para salvar a paz que é o supremo bem neste momento histórico: paz entre os homens e mulheres, paz entre as nações, paz com o Planeta Terra. Só assim poderemos evitar tanto o “inverno nuclear” quanto o “verão incandescente” devido à crise climática. Essas ameaças à sobrevivência humana no Planeta Terra estão interligadas.
A reflexão é do padre comboniano Alex Zanotelli, que foi missionário em Nairóbi e hoje vive no bairro Sanità, em Nápoles, um dos símbolos da degradação social da Itália. O artigo foi publicado em Il Manifesto, 25-02-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo ele, "Assim como a humanidade foi capaz de tornar o incesto um tabu, assim também deve fazê-lo com a guerra”.
Está escuro e são horas dramáticas. Sempre e somente a guerra: quando é que o ser humano renunciará à loucura da guerra? Estamos brincando com fogo, o fogo nuclear que nos levará direto ao “inverno nuclear”. Este é um momento de extrema gravidade, em que se confrontam duas potências nucleares, Rússia e Estados Unidos/Otan.
O ataque de Putin à Ucrânia é uma loucura, mas é igualmente louca a política da Otan ao incluir os países do ex-Pacto de Varsóvia. A Otan, que nasceu como uma aliança militar do Ocidente contra os países comunistas, não deveria ter desaparecido com a queda do Muro de Berlim?
Como é que a Otan continuou se armando até os dentes, a ponto de gastar mais de um trilhão de dólares por ano? Que fique bem claro que somos contra o imperialismo russo, assim como o imperialismo ocidental, mas Putin, do seu ponto de vista, não está se expandindo, mas está se defendendo.
E não era tarefa nossa bloquear esse cerco da Rússia há muito tempo? Esquecemos que os Estados Unidos, em 1961, reagiram da mesma forma, quando os russos queriam colocar mísseis em Cuba? Já naquela época evitamos uma guerra nuclear. Não aprendemos nada com a história? Continuamos no nosso delírio de onipotência? Não será porque nós, ocidentais, assim como os Estados Unidos – que ostentamos mais civilização –, somos prisioneiros do “complexo militar-industrial” ao qual todo esse mundo louco está submetido?
Militarizamos o céu, que também se tornou palco de confronto. Elon Musk já enviou 1.900 satélites para lá e quer enviar mais 42.000. A China já o está acusando de espionagem em favor dos Estados Unidos e tentou o seu míssil hipersônico que escapa de todas as defesas.
Já estamos nas “guerras nas estrelas”, como Reagan as chamava. Mas, não satisfeitos, estamos supermilitarizando a Terra, que se tornou um depósito de armas. No ano passado, os gastos militares mundiais foram de cerca de dois trilhões de dólares. E esse rearmamento é contagioso.
A pesada militarização da China já está levando as nações do Pacífico a fazerem o mesmo: Japão, Coreia do Sul, Malásia e Taiwan. Em 2020, até a África já ultrapassou os 43 bilhões de dólares em armas.
Mas ainda mais assustadora é a corrida ao rearmamento nuclear pelas grandes potências, especialmente Estados Unidos, Rússia e China. O governo Obama já havia reservado um trilhão de dólares para modernizar o seu armamentário atômico.
E assim temos as novas e mais mortíferas bombas atômicas, as B61-12, que em breve chegarão à Itália para substituir cerca de 70 velhas B61. A China, que hoje tem um arsenal de 200 ogivas nucleares, quer chegar a 2030 com pelo menos um milhar. Os Estados Unidos já têm mais de três mil prontas para o lançamento. A Rússia tem outras tantas.
O novo acordo militar entre Estados Unidos, Grã-Bretanha e Austrália (Aukus) para a defesa da zona do Pacífico aumentará essa corrida ao rearmamento nuclear. Os Estados Unidos já venderam submarinos atômicos para a Austrália. É por isso que os cientistas já colocaram os ponteiros do Relógio do Apocalipse “a 100 segundos do inverno nuclear”.
De fato, basta um “acidente de percurso” como o da Ucrânia – ou em Taiwan – para nos mergulhar no abismo. Será possível que só o Papa Francisco nos diga repetidamente: “Com convicção, desejo reiterar que o uso da energia atômica para fins de guerra é, hoje mais do que nunca, um crime contra toda possibilidade de futuro na nossa casa comum. O uso da energia atômica para fins de guerra é imoral, assim como é imoral a posse das armas atômicas. Seremos julgados por isso”?
Infelizmente, com amargura, devo constatar que o grande movimento popular contra os mísseis em Comiso, contra a guerra na Iugoslávia e no Iraque, não existe mais. Por que, nos últimos anos, infelizmente não conseguimos apaixonar os jovens e todos os italianos pela Paz? Os muitos grupos que trabalham pela Paz, muitas vezes esquecidos pela Política, devem se esforçar para criar um grande movimento nacional, para levar o povo da paz novamente às ruas, para convencer o governo da desmilitarização do território italiano. E eu também apelo às comunidades cristãs para que se comprometam com esse objetivo.
Neste momento tão difícil, devemos pedir unitariamente ao governo italiano que não apenas condene a invasão, mas também uma neutralidade ativa no diálogo com a Rússia para a retirada das suas tropas da Ucrânia, assim como a revogação do reconhecimento da independência das repúblicas de Donbass.
Além disso, se não for tarde demais, também deve pedir à Ucrânia que reconheça a autonomia de Donbass conforme previsto pelos acordos de Minsk. Para isso, é preciso que o governo italiano se esforce para convocar uma conferência internacional para iniciar essas negociações e restaurar a paz na Ucrânia.
Todos devemos nos engajar a fundo para salvar a paz que é o supremo bem neste momento histórico: paz entre os homens e mulheres, paz entre as nações, paz com o Planeta Terra. Só assim poderemos evitar tanto o “inverno nuclear” quanto o “verão incandescente” devido à crise climática. Essas ameaças à sobrevivência humana no Planeta Terra estão interligadas.
“Tudo está conectado” nesta Terra, lembrou-nos o Papa Francisco na Laudato si’. Não esqueçamos que as armas e a guerra pesam sobre o planeta tanto quanto o estilo de vida dos 10% mais ricos do mundo. Por isso, é fundamental o empenho de todos, especialmente dos pacifistas pela Paz, ousando também gestos corajosos como os do Pe. Tonino Bello e do movimento Beati i Costruttori di Pace quando entraram pacificamente em plena guerra em Sarajevo.
Devemos realizar aquilo que o amigo Gino Strada afirmou com tanta coragem: “Assim como a humanidade foi capaz de tornar o incesto um tabu, assim também deve fazê-lo com a guerra”.
E, como diz o Papa Francisco na Fratelli tutti, “perante esta realidade, hoje é muito difícil sustentar os critérios racionais amadurecidos noutros séculos para falar duma possível ‘guerra justa’. Nunca mais a guerra!” [n. 258].
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Potências nucleares se enfrentam: salvemos a paz com a paz. Artigo de Alex Zanotelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU