02 Março 2022
Mais de vinte anos após os conflitos que dilaceraram o território da ex-Iugoslávia, a guerra voltou a explodir no continente europeu. No momento, é difícil fazer previsões, mas, quaisquer que sejam os desenvolvimentos nos próximos dias, agora está claro que a ação da Rússia contra a Ucrânia configura-se como uma invasão militar de ampla dimensão.
O comentário é de Giuseppe Savagnone, professor de doutrina social da Igreja no departamento de jurisprudência da LUMSA (Libera Università degli Studi Maria SS Assunta de Roma), sede de Palermo, em artigo publicado por Tuttavia, 25-02-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Olha o lobo, olha o lobo!
Há semanas, o presidente estadunidense Biden o havia anunciado, insistindo em sua iminência, apesar das solenes desmentidas e dos sarcasmos com que suas previsões eram sistematicamente recebidas do lado russo. Mesmo muitos observadores ocidentais pensavam que a massiva concentração de tropas e veículos pesados nas fronteiras da Ucrânia, embora certamente não pudesse ser classificada como um simples exercício militar, tinha sobretudo a função de exercer pressão psicológica para obter garantias de que a ex-república soviética permanecesse fora da OTAN.
Até o presidente ucraniano Zelenskyi havia demonstrado certo desconforto com o clima de alarme que as repetidas advertências do governo estadunidense estavam criando em seu país, deixando entender que ele as considerava exageradas. Até as últimas notícias de uma retirada militar russa pareciam confirmar que os sinais de Washington não passavam de um histérico "olha o lobo, olha o lobo" sem consistência.
Em vez disso, os fatos provaram que Biden estava certo. E agora estamos aqui falando de uma situação de emergência que nos lembra tristemente um passado que nos parecia ter ficado para trás para sempre. A política de Putin em relação à república ucraniana tem uma notável semelhança com aquela de Hitler quando, em 1938, após anexar a Áustria à Alemanha, pretendeu fazer o mesmo com uma vasta região da Tchecoslováquia, os Sudetos, insistindo no fato de que uma alta porcentagem de alemães vivia neles.
Já em 2014, a Rússia havia anexado a Crimeia. Também neste caso a justificativa era a presença nesta região do estado ucraniano de uma alta porcentagem de pró-russos. Agora o mesmo roteiro foi reproduzido para a região de Donbass, que apresenta características semelhantes, mas desta vez estendendo a ofensiva a toda a Ucrânia.
O que é alarmante, porém, não são apenas as escolhas militares: talvez ainda mais inquietantes sejam as motivações, delirantes, apresentadas por Putin para justificá-las. Começando por aquela inicial, segundo a qual foi a República Ucraniana que havia atacado. Uma argumentação que lembra aquela do lobo da fábula de Fedro que, encontrando-se bebendo do riacho a montante do infeliz cordeiro, o acusou de turvar sua água...
Na mesma linha, as outras acusações, feitas pelo Kremlin contra o governo ucraniano, de ser nazista e de ter praticado genocídio contra a etnia russa de Donbass. Quando todos sabem que o verdadeiro problema da Rússia é a virada que recentemente levou a Ucrânia – que ficou por muito tempo na órbita russa mesmo após a proclamação de sua autonomia – a posições próximas ao mundo ocidental, deixando entrever uma possível entrada na OTAN.
Em suma, estamos diante de uma política que, como no tempo de Hitler, não tem medo de invocar argumentos claramente irracionais para realizar os atos mais extremos. Isso torna impossível o diálogo, que de fato foi iniciado várias vezes - primeiro com o primeiro-ministro francês Macron, depois com o chanceler alemão Scholz, depois com o próprio Biden - e depois sempre interrompido.
Alguns leem nesses extremos o sinal do desespero de Putin, destinado a desembocar na crise final de seu regime. Francamente, estou mais inclinado a ver nisso uma aplicação lúcida dos ditames do maquiavelismo. Não é novidade. Enquanto no mundo grego a política era pensada em continuidade com a moral - para Aristóteles ela é o seu ápice -, na idade moderna, a partir de Maquiavel, a política foi considerada algo alheio à consciência e à moral.
Reciprocamente, estas últimas foram cada vez mais interpretadas por todo o pensamento moderno em termos exclusivamente intimistas e subjetivistas, o que impossibilitou sua transposição para o plano da vida pública. Daí uma concepção da política como um conjunto de meios adequados para atingir qualquer fim e, portanto, como uma arte puramente instrumental, mero exercício de poder, desvinculado do problema do valor dos fins em si. A partir daí, simetricamente, uma concepção de consciência que estabelece seus fins - seja a felicidade que caracteriza uma vida boa, ou a virtude que acompanha aquela justa - em chave estritamente privada.
Para Maquiavel, os princípios éticos são importantes, mas não valem para a esfera pública. A famosa expressão segundo a qual "os fins justificam os meios" não é um princípio da moral privada - seria a sua destruição - mas vale onde a moral não tem mais jurisdição, isto é, na política, onde tanto os fins como os meios são destituídos de todo significado de valor. Isso também é o que se pensa em nossas democracias liberais. O pesadelo do estado ético hegeliano, com suas recaídas totalitárias, fez com que fossem vistas com desconfiança todo apelo ao bem e ao mal na vida político-institucional, tornando improvável um retorno à ideia de “bem comum”.
Prefere-se usar a fórmula muito mais asséptica do "interesse geral", que não diz respeito à esfera ética, mas àquela utilitária, mesmo que concebida como equilíbrio e balanço dos diversos interesses particulares. O equívoco é extremamente difundido. “Hoje, parece que só uma democracia formal seja ‘funcionalmente’ possível, enquanto toda via ou solução ‘substantiva’ deveria ser colocado entre as formas arcaicas e dogmáticas da organização política da sociedade. Da mesma forma, a cidadania não consistiria mais de fins comuns (em um “destino” comum), mas apenas de regras (instrumentos, procedimentos) acordadas em conjunto” (Donati).
Mas "as regras, embora necessárias, não podem representar sozinhas (...) aquele ponto de unificação, em que toda sociedade (também, e em determinados aspectos ainda mais, a "sociedade complexa" da pós-modernidade) precisa dar um sentido de convivência entre os homens. Portanto, impõe-se, necessariamente, uma busca renovada de valores comuns e compartilhados, graças aos quais o desafio da complexidade possa ser aceito e superado” (Campanini).
Compreende-se, assim, por que o Ocidente se encontre em dificuldade para resistir à ofensiva de Putin. Em particular a Europa, cuja falta de um verdadeiro horizonte de fins de valores comuns a torna incapaz de passar da mera coordenação funcional a uma efetiva unidade política, condição indispensável para chegar àquela militar. Faltando os fins, as regras processuais permanecem. E os interesses econômicos, que, no entanto, como todos os interesses, são particulares e, ao invés de unir, dividem.
Não são capazes de fornecer uma alma que unifique os vários membros e a torne um único corpo. Não surpreende, portanto, que a Europa, para além das declarações, se veja desorientada diante da ameaça do colosso e se veja obrigada a centrar-se em sanções econômicas tão problemáticas quanto prejudiciais também para a economia de quem as adota... Basta pensar que a sua dependência do gás russo torna em parte irrealista suas belicosas declarações de um embargo comercial e bancário.
Assim, os europeus são obrigados a contar com os estadunidenses para serem protegidos do expansionismo russo e buscar, com tentativas diplomáticas improvisadas por este ou aquele líder, ter um peso político que de fato lhes é negado. Se a Europa não encontrar uma alma, é muito difícil que o futuro das suas relações com a Rússia possa ser aquele de um diálogo igualitário. A política não é apenas técnica e uma unidade neste terreno só será possível quando, para além dos interesses divergentes, os países do continente forem capazes de se encontrar numa única perspectiva de valor.
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Guerra: a Europa sem alma - Instituto Humanitas Unisinos - IHU