19 Janeiro 2022
"Compreende-se, então, o sentido da denúncia do Papa Francisco, que não é fruto da insensibilidade para com os animais, mas da sensibilidade para com as pessoas. É a preferência dada aos primeiros sobre os segundos que ele critica, tanto em termos de abertura à vida e de cuidado das crianças abandonadas, como em termos de responsabilidade para com o bem comum de toda a sociedade, a começar pelos seus membros mais idosos", escreve Giuseppe Savagnone, professor de doutrina social da Igreja no departamento de jurisprudência da LUMSA (Libera Università degli Studi Maria SS Assunta de Roma), sede de Palermo, em artigo publicado por Tuttavia, 18-01-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Desta vez, o Papa Francisco aprontou mesmo! Ele se colocou contra os animais ou, mais precisamente, contra aqueles que os pegam e os cuidam em vez de filhos. Foi durante uma audiência há alguns dias: “Hoje”, disse ele, “as pessoas não querem ter filhos, no máximo um. E muitos casais não querem. Mas eles têm dois cachorros, dois gatos. Sim, cães e gatos ocupam o lugar das crianças”. Nunca tivesse dito isso! Onda de críticas nas redes sociais, em defesa dos pobres bichinhos. Mesmo na imprensa houve repercussões críticas.
No Il Fatto Quotidiano, Morena Zapparoli, em nome de todos os tutores de cães e gatos, disse que a afirmação de Bergoglio "nos feriu". E tentou explicar ao papa o porquê: “Para nós, um cão ou um gato é uma criatura para cuidar, porque não somos nós que os possuímos, mas eles que nos possuem. Para nós, são seres capazes de nos oferecer um amor incondicional sem pedir nada em troca porque nos escolheram para compartilhar um trecho do caminho pelo tempo, muito curto, que Deus lhes concedeu na Terra. Para nós eles sabem falar sem a necessidade de usar a nossa linguagem, com os olhares, com seus focinhos úmidos contra o nosso rosto, com os seus ronronares, com o seu rabo alegre balançando no ar, e dizem mais do que mil palavras diriam”.
O artigo concluía com a acusação de que o pontífice estava em contradição com o nome que escolheu: "Para nós [os nossos animais] são tudo e não poderíamos imaginar viver sem eles e, quando morrem, uma parte de nós morre com eles. Sem polêmica, caro Francisco, mas o Santo cujo nome você leva certamente concordaria conosco”.
Talvez uma breve referência ao contexto em que Francisco falou, que era o de uma catequese sobre a paternidade substituta de São José, possa ser útil para entender os termos reais da questão. Precisamente em referência a isso, o pontífice lembrou que "não basta colocar um filho no mundo para dizer que alguém também é pai ou mãe". Na realidade, "sempre que alguém assume a responsabilidade pela vida de outro, em certo sentido exerce em relação a ele a paternidade". E "ter filhos, paternidade e maternidade, é a plenitude da vida de uma pessoa".
Daí a valorização, na prática, da instituição da adoção, que se baseia na “atitude tão generosa e bela” de quem faz uma “escolha” que “está entre as formas mais elevadas de amor e de paternidade e maternidade”. Daí também a esperança de Francisco "que as instituições estejam sempre prontas a ajudar neste sentido de adoção, cuidando com seriedade, mas também simplificando o processo necessário para que o sonho de tantos pequeninos que precisam de uma família possa se realizar, e de tantos casais que desejam doar-se por amor”.
Um desejo extremamente atual, em uma situação como a italiana que vê, por um lado, muitas crianças sem pais abandonadas em lares adotivos e, por outro, muitos casais, desejando adotar uma criança, obrigadas a recorrer à adoção internacional – cada vez mais problemática e arriscada - pelas dificuldades e morosidades burocráticas a que está sujeita a instituição de adoção no país.
É nesse quadro que se insere a crítica do Papa a uma sociedade em que a paternidade e a maternidade parecem ter se tornado uma escolha cada vez menos atraente: "Vemos que as pessoas não querem ter filhos e muitos casais não têm filhos porque não querem ou têm apenas um. Mas eles têm cães e gatos, que ocupam o lugar das crianças - acrescentou, falando de improviso -. Essa negação da paternidade e da maternidade nos tira a humanidade. E assim a civilização se torna mais velha e sem humanidade”.
O problema, como é bastante evidente, não é o respeito pelos animais, mas diz respeito à incapacidade das pessoas de assumirem a responsabilidade parental. Os dados estatísticos relativos à taxa de natalidade na Itália são uma clara indicação dessa incapacidade. De acordo com o relatório do Istat de dezembro passado, o último levantamento estático, relativo a 2020, registra um novo recorde mínimo de nascimentos, 405.000, contra 740.000 óbitos.
Um déficit que não está vinculado a motivações estritamente econômicas - ou pelo menos não apenas a estas -, visto que se deve à população de cidadania italiana (-386 mil), enquanto para os estrangeiros residentes no país o saldo natural permanece amplamente positivo (+50,584). O problema não é estritamente econômico. O declínio da paternidade corresponde ao declínio mais profundo do espírito de doação, que nela atinge seu ápice natural.
Está em jogo a incompreensão da liberdade, cada vez mais entendida egocentricamente como expressão da própria autonomia, e não como responsabilidade para com o outro. Para esta "liberdade" os filhos são um obstáculo, muito mais do que um animal de estimação (aliás, não devemos esquecer a prática absurda de abandonar cães e gatos na véspera das férias de verão, quando eles também se tornam um empecilho e são tratados como lastro a se livrar).
Daí as previsões sombrias que, novamente o Istat, faz sobre o futuro demográfico na Itália: uma população residente que de 59,6 milhões em 1º de janeiro de 2020 cairá para 58 milhões em 2030, para 54,1 milhões em 2050 e 47,6 milhões em 2070. Em 2048, mortes duplicarão os nascimentos e em 2050 a proporção entre jovens e idosos será de 1 para 3. Com consequências devastadoras também no sistema previdenciário. O papa também mencionou isso na audiência geral: quem cuidará dos idosos, quem os sustentará, quando não puderem mais trabalhar?
A lógica da aposentadoria é que exista um número de trabalhadores que, com suas próprias contribuições, sustente os aposentados: filhos que assumem, por sua vez, depois de criados, a responsabilidade pelos próprios pais. Mas se um casal tem apenas um filho, ou mesmo nenhum, as contas não batem.
Compreende-se, então, o sentido da denúncia do Papa Francisco, que não é fruto da insensibilidade para com os animais, mas da sensibilidade para com as pessoas. É a preferência dada aos primeiros sobre os segundos que ele critica, tanto em termos de abertura à vida e de cuidado das crianças abandonadas, como em termos de responsabilidade para com o bem comum de toda a sociedade, a começar pelos seus membros mais idosos.
Além disso, o problema não diz respeito apenas à questão da natalidade. Em outro discurso controverso, durante uma audiência de jubileu em maio de 2016, na Praça São Pedro, Francisco alertou contra confundir a piedade "com a compaixão que sentimos pelos animais que vivem conosco". E continuou: "Acontece que às vezes sentimos esse sentimento pelos animais e ficamos indiferentes aos sofrimentos dos irmãos".
Também naquela oportunidade houve muitas reações polêmicas. Lorenzo Croce, presidente da Associação Italiana para a Defesa dos Animais e do Meio Ambiente, definiu as palavras do papa como "irresponsáveis e enganosas" e o convidou a cuidar dos padres pedófilos em vez de "dar lições a nós que amamos tanto homens como animais como todas as criaturas de Deus". Mais uma vez, porém, teria sido necessário pouco para entender que o problema do pontífice não é desvalorizar os animais, mas reagir à desvalorização que as pessoas humanas sofrem em relação a eles.
Perante a multiplicação, nas nossas cidades, de clínicas veterinárias e pet shops (agora existem também cursos profissionalizantes para "tosadores", "uma profissão muito requisitada", dizem na Internet), não podemos deixar de nos perguntar a quantos seres humanos é negado um mínimo de cuidado e bem-estar. Da mesma forma, diante dos numerosos anúncios televisivos relativos aos mais refinados produtos alimentares para cães e gatos, é natural fazer uma comparação com as condições de vida miseráveis de tantos homens e mulheres nas nossas periferias urbanas. Para não falar daqueles que vivem em países subdesenvolvidos e lutam diariamente contra a fome e as doenças...
A história da Igreja está cheia de santos - não só São Francisco de Assis, como erroneamente se acredita! - que amavam os animais e tinham um relacionamento muito bom com eles. E o maior teólogo da tradição cristã, Tomás de Aquino (ao contrário de pensadores modernos como Descartes), estava convencido de que eles têm alma e são capazes de experimentar prazeres e sofrimentos, alegrias e dores, mesmo que desprovidos da faculdade racional própria dos seres humanos. Não é o desprezo pelos animais, mas o amor pelas pessoas que motiva as denúncias do Papa Francisco. Mas talvez seja mais cômodo contestar o que ele não diz do que levar a sério o que ele quer dizer.
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O papa, os filhos, os animais. Artigo de Giuseppe Savagnone - Instituto Humanitas Unisinos - IHU