Direito internacional e falsos mitos. Artigo de Domenico Gallo

Foto: Pixabay

Mais Lidos

  • Alessandra Korap (1985), mais conhecida como Alessandra Munduruku, a mais influente ativista indígena do Brasil, reclama da falta de disposição do presidente brasileiro Lula da Silva em ouvir.

    “O avanço do capitalismo está nos matando”. Entrevista com Alessandra Munduruku, liderança indígena por trás dos protestos na COP30

    LER MAIS
  • Dilexi Te: a crise da autorreferencialidade da Igreja e a opção pelos pobres. Artigo de Jung Mo Sung

    LER MAIS
  • Às leitoras e aos leitores

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

23 Fevereiro 2022

 

"Não é por acaso que nas últimas horas se intensificam as violações da trégua na região de Donbass, visando provocar a intervenção militar da Rússia. Claro que ainda há espaço para a diplomacia, a paz ainda não está perdida, mas para reabrir a porta ao diálogo é preciso demolir os falsos mitos do Ocidente que nos levaram a esse impasse", escreve Domenico Gallo, juiz italiano e conselheiro da Suprema Corte de Cassação da Itália, em artigo publicado em Il Manifesto, 22-02-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

Segundo Karl Schmidt, “uma declaração de guerra nada mais é do que a identificação de um inimigo”.

Após o desaparecimento do inimigo histórico dos Estados Unidos e do Ocidente, constituído pela União Soviética, levou algum tempo para identificar na Rússia o novo inimigo, substituindo aquele que havia se dissolvido. É um processo que durou cerca de vinte anos. Começou em 12 de março de 1999 com a entrada, ou melhor, com a extensão da OTAN para a Polônia, República Tcheca e Hungria em flagrante violação aos acordos firmados com a antiga União Soviética pelos Estados Unidos, Reino Unido, França e Alemanha, como consta do documento datado de 6 de março de 1991 recentemente publicado pelo Der Spiegel.

Continuou com a extensão da OTAN a todos os outros países da Europa do Leste, incluindo aqueles nascidos da dissolução da União Soviética, como os países bálticos. Agora a tempestade estourou em torno da possibilidade de extensão da OTAN e de seus dispositivos militares no território da Ucrânia, país atormentado por eventos violentos após a chamada revolução Maidan de 2014, que levou à separação da Crimeia e à eclosão de uma sangrenta guerra civil da qual nasceram as duas repúblicas separatistas de Donbass.

O convite para entrar na OTAN e o fornecimento de armas e apoio econômico são uma boa forma de reacender o conflito de Donbass, que nunca arrefeceu, e de pressionar a Ucrânia a não aceitar a solução de paz prevista pelos acordos de Minsk II de 2015.

 

Mapa da Ucrânia, no Leste Europeu (Foto: Reprodução | Google Maps)

 

Quando Biden anuncia que a Rússia iniciaria a invasão da Ucrânia ontem, hoje ou amanhã, ele fecha o círculo ao identificar definitivamente a Rússia como o inimigo.

Portanto a declaração de guerra já aconteceu e veio de Biden e de seu secretário de Estado Blinken, para além das conversas sobre o desejo de manter uma negociação aberta. Para que se passe da guerra das palavras à das balas, é preciso de um pretexto, é necessário construir um acidente, verdadeiro ou falso.

Não é por acaso que nas últimas horas se intensificam as violações da trégua na região de Donbass, visando provocar a intervenção militar da Rússia. Claro que ainda há espaço para a diplomacia, a paz ainda não está perdida, mas para reabrir a porta ao diálogo é preciso demolir os falsos mitos do Ocidente que nos levaram a esse impasse. Nosso ministro das Relações Exteriores, repetindo um mantra recebido do outro lado do oceano, reiterou que a escolha da porta aberta da OTAN para a Ucrânia e a Geórgia representa "um princípio irrenunciável", pois todo Estado soberano tem o direito de escolher as alianças que deseja. A pretensão da Rússia de excluir a OTAN da Ucrânia seria inadmissível porque seja uma expressão do desejo de estabelecer uma zona de influência sua na Europa.

Na realidade, mais do que à Rússia, a pretensão de estabelecer sua própria zona de influência na Europa deveria ser atribuída à OTAN, tendo englobado todos os países do Leste Europeu em seu dispositivo político e militar. Mas o problema é outro, onde está esse princípio irrenunciável sobre o qual Blinken e todos os aliados da OTAN se escabelam em coro? Cada país é soberano quando é livre para fazer as escolhas de política externa e militar que julgar mais apropriadas. No entanto, desde que a Carta das Nações Unidas foi estabelecida, a soberania dos Estados foi despojada de suas garras no melhor interesse da convivência pacífica entre as nações.

Não apenas a faculdade de declarar guerra contra outras nações foi excluída da soberania, mas os estados membros também devem abster-se da ameaça do uso da força (Artigo 2, parágrafo 4). É à luz deste princípio verdadeiramente irrenunciável que a "liberdade" da Ucrânia de aderir à OTAN na condição de Estado soberano deve ser avaliada. Nenhum estado é livre para ameaçar seus vizinhos. A extensão do dispositivo militar da OTAN às fronteiras da Rússia, a poucas centenas de quilômetros de Moscou, é a concretização de uma ameaça em sentido objetivo.

Nem vale a pena argumentar que a OTAN, segundo seu ato constitutivo, é uma aliança defensiva, incapaz de articular uma ameaça no sentido técnico ou político. Este carácter de Aliança, se é que alguma vez existiu, perdeu-se definitivamente a 24 de março de 1999, quando a OTAN agrediu a ex-Jugoslávia, bombardeando-a durante 78 dias, com o resultado de desmembrá-la, separando o Kosovo do resto do país. E quanto à redefinição de papéis, em abril de 1999, em Washington, com a definição de uma nova OTAN na ofensiva engajada agora em missões e em guerras em todo o mundo.

Para parar a escalada, a primeira coisa a fazer é se livrar desse falso mito. Afinal, a entrada na OTAN não depende da vontade da Ucrânia, mas da vontade dela própria que, prosseguindo a sua estratégia de expansão, na cúpula de Bucareste de 2 de Abril de 2008, aprovou a chamada política das “portas abertas”.

O que não é dito é que a entrada da Ucrânia na OTAN deve ter a luz verde de todos os seus países membros, incluindo a Itália. Uma declaração de nosso astuto ministro das Relações Exteriores de que a Itália não aceitaria a entrada da Ucrânia na OTAN seria suficiente para colocar areia nas engrenagens da máquina de guerra e bloquear a passagem da guerra das palavras para a guerra das balas.

Será que Di Maio - que inclusive lembrou no Parlamento o artigo 10º do Pacto do Atlântico, que diz que toda expansão deve considerar a segurança dos aliados - e Draghi terão a coragem de evitar a guerra, desobedecendo aos EUA?

 

Leia mais