20 Abril 2021
“Ninguém irá desligar a máquina de produção por vontade própria. Estamos construindo morte e desolação. Talvez isto nos faça reagir, e deste estado de emergência em que vivemos possa emergir algo da base que dê sentido e esperança de vida à nossa ação cotidiana, que torne possível reconstruir nossas formas de trabalhar, de nos unir, de nos cuidar, de entender o comum, de renovar a linguagem, que agora estão destruindo com o vírus como paradigma. Observando a linguagem, entenderemos o vírus”, escreve Jacobo Sucari, professor na Faculdade de Belas Artes, Universidade de Barcelona, pesquisador em arte, tecnologia e política, em artigo publicado por El Salto, 16-04-2021. A tradução é do Cepat.
No princípio era o Verbo e muito provavelmente no final será o “código”, qualquer que seja imaginável: uma série de signos que delimite o destino de nosso código genético na mutação final da espécie.
Mediante um poderoso slogan, o escritor William Burroughs sustentou que a “linguagem é um vírus” e que, dada a capacidade combinatória da linguagem, teria sido capaz de abrir as portas da natureza à consciência humana.
Para Burroughs, a linguagem é um vírus vindo do espaço e por isso nos supera e nos arrasta para a dimensão do desconhecido. A metáfora por certo é bela, e Burroughs foi capaz de lidar com ela durante longos anos em sua literatura e em sua própria vida. Atualmente, com a pandemia na rua e presos mais do que nunca à linguagem do poder, podemos pensar que o vírus que hoje nos consome, esse vírus que se denomina Covid-19, é justamente um criador de linguagem. Do slogan da linguagem entendida como um vírus vindo de outro planeta, passamos ao vírus como linguagem, configurado agora na terra.
Frente à incerteza em que a vivência da pandemia nos colocou, as certezas que podemos sustentar se referem ao jogo semântico que se estabelece em torno do vírus. Ou seja, na forma como se descreve e se nomeia o vírus a partir da dimensão da linguagem do poder e de sua corrente de transmissão que é a linguagem midiática. O vírus significa precisamente aquilo do qual nos é falado, seu modo de ser nomeado, os imaginários que configura, as vivências que nos dispõe, a ordem que torna possível.
Os fatos não podem ser definidos pelas dinâmicas da estatística que anuncia a quantidade de doentes e mortos na pandemia, mas pela situação fática do vírus, o duro princípio de realidade na qual o vírus nos submerge e que aflora na dimensão da criação de sentido por parte do poder, a tela de fundo que desenha sociedades cada vez mais permeabilizadas por um padrão unidimensional, mediante um refinado uso de engenharia linguística.
O código do vírus se configura e se expressa na forma de linguagem: o que se diz e o que se deixa de dizer a partir dos comandos unificados da ação contra a pandemia? Quais dinâmicas são potencializadas e quais são reprimidas na declaração de emergência?
A partir de setores críticos em relação à gestão da doença, foram sendo realizados diversos estudos sobre as formas específicas adquiridas por esta configuração interessada da realidade. Uma realidade onde militares e policiais continuam com suas funções repressivas, em um momento no qual a falta de quadros, funcionários, profissionais da saúde e de acompanhamento da pandemia, faz com que o sistema de atendimento público colapse. Uma realidade onde as famílias que assim desejam não podem cuidar de seus idosos.
O que esperamos para dinamizar todas as forças que temos na aplicação de fórmulas de cuidado social? Verdadeiramente, interessa cumprir esta demanda social de cuidados coletivos diante da doença? A doença e a cura continuarão vinculadas aos interesses dos laboratórios farmacêuticos com ações na bolsa? Os governos continuarão presos à custódia das patentes destes laboratórios e à obscuridade científica?
Em paralelo a esta linha de questionamentos, proponho considerar certos fatos como dinamizadores de certo princípio de realidade que seja capaz de configurar nosso presente a partir de algumas marcas irrefutáveis. É fato reconhecido que existem laboratórios onde se faz experimentos sem qualquer controle legislativo sobre a criação de novos vírus. Experimentos de biologia molecular de caráter militar ou científico, cuja especificidade é a guerra biológica, um setor de pesquisa que conta com enormes orçamentos e uma obscuridade total em suas ações.
Mascarar, ocultar e distrair seus cidadãos sobre tais ações e fatos que não querem que venham ao conhecimento coletivo é, há décadas, uma prioridade dos estamentos do poder global. O castigo imposto ao jornalista Julian Assange, o episódio Snowden e a cruel vingança à soldado Manning são a ponta de um iceberg sobre os limites que o sistema impõe à visibilidade da ação dos poderes fáticos.
O jornalismo, desde a guerra no Iraque, foi sofrendo as consequências desta estratégia da ocultação. Foram assassinados dezenas de jornalistas independentes. As guerras e os conflitos armados de todos os tipos são, hoje em dia, um território vazio de informação e livre de contrapontos que destaquem os modos das forças de ocupação. Nestes dias de transmissão de imagens em tempo real, a visibilidade de uma população massacrada se tornou uma reivindicação impossível.
Não acredito, no entanto, que alguém seja capaz de negar a existência de laboratórios de biotecnologia militar espalhados por uma infinidade de países, com interesses diversos, inclusive muitas vezes contrapostos. A França e os Estados Unidos, por exemplo, fazem experimentos junto com laboratórios chineses em armamento bacteriológico, biologia sintética e inteligência artificial.
Quem se tornaria responsável, caso estes laboratórios cometam um erro em uma nova configuração biológica sintética, com variações nocivas para a saúde geral e para o nosso código genético em particular? Diriam para nós o que aconteceu e, se sim, quem se responsabilizaria por isso? Você considera que se algo assim acontecesse, alguém assumiria a culpa? O que sabemos sobre as consequências das centrais atômicas no Japão e sobre a enorme quantidade de água contaminada com radiação lançada ao mar?
Sabemos que estas oficinas, laboratórios e grupos de pesquisa fazem parte de nosso mundo e, no entanto, prosseguem nisso sem que a sociedade civil seja capaz, sequer, de investigar quem, onde, quando, como, o quê?
No ano 2000, o Grupo de estudos ETC (Action Group on Erosion, Technology and Concentracion) batizou com a sigla BANG (Bits, Átomos, Neurociências, Genes) a convergência de tecnologias digitais, nanotecnologia, tecnociências cognitivas e biotecnologias, uma convergência de pesquisas que constituiu uma espécie de Big Bang tecnológico, já que as tecnologias moleculares e a nanoescala (aplicadas a seres vivos, materiais e comunicação) são a plataforma de desenvolvimento das outras novas tecnologias capazes de variar a ordem da manipulação genética e biológica.
As exigências de regulamentação destes laboratórios de pesquisa colidem com a obscuridade de parte de seus gestores (governos e corporações). A complicada gestão de legislar sobre estes laboratórios, por parte da maioria das democracias ocidentais, enfrenta tempos muito lentos em relação à velocidade que a pesquisa BANG assume.
A operacionalidade de uma vacina que nos permita deixar para trás a atual pandemia, buscada desde os primeiros dias da ação do vírus Covid-19, deixa supor que seu surgimento não fará mais do que aprofundar o controle das decisões que tomarmos sobre como queremos administrar nossa vida e morte. Sua aplicação pretenderá, muito possivelmente, ser generalizada e obrigatória, como deixa transparecer a criação de passaportes verdes para os segmentos de população vacinada.
Os lucros bilionários dos laboratórios com uma vacina que se configura como o passaporte entre a vida e a morte contêm todos os tópicos e virtudes da substância milagrosa nas mãos de interesses privados. Iremos permitir que o mercado de patentes controle uma vacina que se diz fundamental? Podemos acreditar que setores do poder que estão do lado da destruição de vida biológica, do desprezo pela vida humana e pelo bem-estar social, tal como se configuram nesta etapa neoliberal, estejam agora preocupados em salvar vidas e cuidar dos cidadãos?
Houve algum sinal concreto pelo qual governantes que despejam cidadãos de suas moradias, que submetem grandes camadas da população ao estado de pobreza, que encerram imigrantes em centros de detenção e que deixam morrer em mares fronteiriços milhares de pessoas que escapam de territórios de violência, pobreza e doença, agora, se compadeçam de nosso sofrimento e morte diante de um vírus? Podemos considerar que governos que, nas últimas décadas, não hesitaram em montar um aparato repressivo feroz diante de qualquer ação social que questione o status quo dominante, atuem agora em favor do comum?
Que novos canais entre os cidadãos e o poder este vírus e esta pandemia global abriram, para que se passe da grande austeridade à abertura sem limite do gasto público? Mudaram coisas tão profundas nas relações de poder para que ocorram essas mudanças, ou apenas assistimos a uma variação nas estratégias de poder?
Estratégias de poder que aprofundam as lacunas já abertas durante as últimas reconversões de um mercado de trabalho deslocalizado, com a privatização do público e a vontade de aniquilação do sistema de pensões, enfim, de tudo aquilo que o programa neoliberal vem aplicando há quatro décadas. Esse programa encontra na época da pandemia um excelente canal de aplicação, a partir da desmobilização das forças sociais capazes de oposição. O surpreendente desta situação é que o vírus em vez de ser disruptivo em relação ao estado em que vivíamos, tenta se converter em um vírus restaurador das utopias neoliberais, onde, além do mais, se impõe uma nova reconversão do mercado de trabalho de características feudais.
Este estado de guerra contra a população supõe a adoção de medidas para frear o vírus, mas aprofundam curiosamente o programa neoliberal em funcionamento. Não interessa solucionar os problemas urgentes da dizimada saúde pública, tampouco os econômicos que grande parte da população possa enfrentar. O esforço de guerra não se dirige a proteger o soldado raso, mas a lubrificar a produção da máquina de guerra: grandes corporações, bancos e sistema financeiro.
Não é a primeira vez que as elites adotam esta estratégia de combate e de guerra global. Nas últimas duas guerras mundiais, morreram cerca de 70 milhões de pessoas. Parecia difícil que outra guerra convencional pudesse convencer as populações a se sacrificar em prol de interesses nacionais obscuros. Desde a Guerra Fria, as guerras foram tomando uma nova dimensão e um terreno de ação diversificado. A nossa, a de agora, assume o território da linguagem a partir da engenharia linguística. Uma guerra capaz de “tomar nossas mentes e nossos corações”, assim como o governo norte-americano, durante a guerra do Vietnã, chamou o seu programa para tentar vencer a resistência do Vietcong. Naquele momento, não funcionou para eles.
As guerras contemporâneas, agora, são travadas e vencidas no território da linguagem, no da metáfora, onde o medo da morte se torna mais forte que a pulsão de vida, quando a incerteza permite o caos que encoraja a violência mafiosa a se apropriar do substrato social do comum.
Não se trata de ser negacionista, negativista ou apocalíptico, mas de frear o aparato de controle social e exigir transparência no aparato científico-militar já, há décadas, denunciado nos Estados Unidos. Destacar os aspectos destrutivos que cercam a produção capitalista global contemporânea, onde a destruição ambiental, biológica e social é de tal profundidade que as doenças e pandemias são enfermidades do modo de produção do capitalismo.
Lamentavelmente, o capital não pensa em parar diante desta contingência, nem diante de qualquer outra. Ninguém irá desligar a máquina de produção por vontade própria. Estamos construindo morte e desolação. Talvez isto nos faça reagir, e deste estado de emergência em que vivemos possa emergir algo da base que dê sentido e esperança de vida à nossa ação cotidiana, que torne possível reconstruir nossas formas de trabalhar, de nos unir, de nos cuidar, de entender o comum, de renovar a linguagem, que agora estão destruindo com o vírus como paradigma. Observando a linguagem, entenderemos o vírus.
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O vírus como linguagem: patentes, neoliberalismo e engenharia linguística - Instituto Humanitas Unisinos - IHU