22 Fevereiro 2020
"O que a esquerda e os movimentos sociais podem fazer frente às fake news, o poder algorítmico e o big data? Que papel podem exercer ao novo capitalismo tecnológico?", é a reflexão que faz Sofia Scasserra, economista, professora e pesquisadora do Instituto del Mundo del Trabajo Julio Godio da Universidad Nacional de Tres de Febrero - Untref, de Buenos Aires, Argentina, em artigo publicado por Nueva Sociedade e reproduzido por CPAL Social, 20-02-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Para a economista as organizações sociais devem promover debates sobre a propriedade dos dados, algoritmos, censura, segurança, vigilância e novos direitos trabalhistas.
Falar das novas tecnologias está na moda. A palavra cyber se repete frequentemente. Tudo o que a contém nos parece como interessante, novo, atrativo e não entendível. Em definitivo, se nos mostra como algo mágico. Certamente, o espaço web oferece uma ferramenta que é cada vez mais técnica e, em alguns casos, incompreensível. No entanto, as dificuldades na compreensão não deveriam ser a desculpa para que os movimentos sociais não formem parte do debate tecnológico e, sobretudo, político, em respeito à tecnologia.
A tecnologia é uma ferramenta e, como tal, seu destino não está escrito de antemão. É inegável que se empoderou de boa parte de nossas vidas e que formatou nossas relações econômicas, políticas e sociais. Porém isso não significa que não possamos outorgar-lhe uma direção: definir para onde queremos que se conduza. A possibilidade de utilizar a tecnologia para o bem (e que seus benefícios alcancem a todos) é tão real como a possibilidade de que seja utilizada de maneira ruim e que seus benefícios sejam monopolizados por alguns poucos. No que se refere à tecnologia, o central é seu desenho e sua regulação. Isso pode evitar que seja conduzida para onde querem aqueles que detêm o seu poder.
O primeiro grande tema de debate em escala global é a propriedade dos dados. Diz-se muito que o “big data” gerado a cada momento a partir de qualquer dispositivo eletrônico (principalmente o telefone móvel, porém também qualquer outro conectado à internet) é hoje o maior gerador de lucros em escala global. Diz-se que os dados são a nova “prata de Potosí”, evocando uma matéria-prima altamente valiosa que o mundo mais desenvolvido extraía explorando a América Latina, e sem deixar absolutamente nada na região. Porém, no caso da prata, a propriedade se define de forma clássica: pertence a quem a possui. Em troca, no caso dos dados, as coisas são mais complicadas. Ademais de que possam ser copiados, o acesso aos dados habilita a geração de lucros, inclusive quando não se tem sua propriedade. O forte lobby existente na Organização Mundial do Comércio - OMC para conseguir a propriedade dos dados e proibir o acesso por parte de governos, evidencia essa situação. Necessita-se uma regulação que os transforme em “prata” para eliminar qualquer possibilidade de partilhar os lucros e isso é o que as grandes empresas de tecnologia estão impulsionando.
Nesse contexto, debate-se sobre a propriedade desses dados: são dos usuários que os geram? São da empresa que facilita o software para “produzi-los”? Dado que um indivíduo somente frente a uma transnacional como o Google tem um poder nulo de negociação de direitos, são propriedade do Estado ou esse teria uma nova função, de ser mediador sobre as permissões e controles frente a essas empresas? Trata-se de perguntas, hoje, sem respostas.
Entre as posturas mais radicais encontra-se aquela que assegura que “os dados são daquele que os produz”. O produtor, portanto, deveria ser dono da mercadoria e o proprietário dos meios de produção. “Se os dados são meus, devem me pagar para tomá-los de mim” é a postura que se deriva desta afirmação. Se o que gera lucro às empresas é o manejo de dados e o dado existe porque o cidadão o gera, este deveria ter alguma retribuição pela extração dos mesmos. Como é evidente, os empresários assegurarão algo bem distinto. Argumentarão que o usuário já tem um pagamento, que é a possibilidade de utilizar o aplicativo gratuitamente. Isso, segundo eles, é uma forma de retribuição. No entanto, o certo é que, igual aos canais de televisão, também obtém lucros por publicidade, pela venda de serviços corporativos e pela venda de dados. Efetivamente, os níveis de lucros não têm relação alguma com os benefícios sociais que entregam pelo uso dos aplicativos.
A este panorama deve se somar a perda de benefícios sociais em termos de desenho e implementação de políticas públicas pela falta de acesso à informação por parte dos Estados e o avassalamento de direitos como a privacidade, a desinformação e a obrigatoriedade de aceitar termos e condições para poder utilizar uma plataforma onde muitas vezes cedem direitos. Uma visão mais moderada levaria a estabelecer marcos regulatórios reais para que a propriedade fique nas mãos das empresas, porém com um Estado que se reserve a poder exigir acesso aos dados no caso de ser necessário, que gerencia permissões através de mecanismos de intermédios de controle social (organismos de controle autárquicos) e que estipule outros esquemas inovadores de regulação.
Ainda que até pouco tempo fosse desconhecida para os cidadão comuns, a palavra “algoritmo” já está na boca de todos. Os algoritmos podem ser definidos como um conjunto de instruções ordenadas que permitem solucionar um problema concreto. Hoje são chaves no desenvolvimento da inteligência artificial e da industrialização digital.
Numerosas análises indicam que, com a presença cada vez mais marcada dos algoritmos, o capitalismo do conhecimento se encontra em xeque, dado que uma vez que se conhece um código-fonte somente falta copiá-lo para replicar uma tecnologia. Por esse motivo, os códigos-fontes que implementam os algoritmos estão protegidos por leis de propriedade intelectual que preservam seu segredo. Esse ponto é tão substancial e importante que é já incluído em diversos acordos de livre comércio e criou uma verdadeira caixa-preta onde são tecidas as normas que regulam e ordenam a sociedade. Os algoritmos regulam tudo: a ordem de resultados em uma busca do Google, a quantidade de vezes em que uma máquina de cassino declara um ganhador e até a assinatura de benefícios sociais por parte de um Estado. Esses algoritmos são secretos e geram controvérsias. Se torna cada vez mais evidente que, em alguns casos, necessita-se acessar esse código para auditá-lo e saber que não há discriminação, verificar que não descumpram direitos, comprovar que o algoritmo esteja feito de uma forma contrária à lei ou simplesmente que não tenha decisões que repercutam negativamente na vida humana. Por outro lado, o debate em torno à propriedade intelectual evidenciou que, quando não existem segredos, a sociedade se beneficia. Isso se faz latente em áreas como a medicina, onde o conhecimento por parte dos usuários permite acessar medicamentos com melhor custo e saber os seus componentes. O mesmo ocorre com os algoritmos. Uma postura radical implica pedir a abertura de códigos. Isto é, que não estejam amparados pela lei de propriedade intelectual e que todos possam acessar para melhorá-los e auditá-los. Em troca, uma postura mais conservadora implicaria pedir que o Estado tenha somente algoritmos de código aberto, revisáveis e auditáveis. Na esfera privada, poderiam existir mecanismos legais para poder auditar em caso de suspeita de discriminação e que essa auditoria possa ser levada adiante tanto por auditores públicos quanto privados. A partir do Estado deveriam fomentar e proteger licenças creative commons, um sistema pelo qual cada cidadão pode patentear novas ideias e determinar que sua ideia pode ser utilizada por todos.
Notícias, vazamentos de contas e sites e roubo de informações estão na ordem do dia. Eles são a demonstração palpável de que a segurança do computador é uma questão de primeira ordem. Embora os casos conhecidos sejam aqueles que, devido à sua magnitude, tenham sido mais amplificados pela mídia, o problema afeta os cidadãos em seu trabalho diário. No entanto, existem muitos cidadãos que nem sabem ou percebem o problema.
A criptografia de informações é de maior importância para proteger nossos dados pessoais, nossa privacidade e nosso dinheiro. Um sistema de segurança ruim é equivalente a deixar a porta da nossa casa aberta e esperar que os ladrões (que neste caso podem vir de qualquer país do mundo) não entrem em nossa casa. Mas os sistemas seguros são, na maior parte, caros. Quanto mais seguro, mais caro. Não é de admirar, então, que eles estejam se tornando propriedade dos ricos e poderosos do mundo. De fato, estão sendo promovidas negociações na OMC para deixar, a critério de cada empresa, o nível de segurança em computadores que ela terá, sem que o Estado tenha o poder de regulamentar padrões mínimos. Isso levaria à criação de empresas de ponta com altos padrões de segurança, mas acessíveis apenas aos ricos. Em troca, haveria empresas com padrões mais baixos, acessíveis aos setores mais vulneráveis da sociedade. Estes estariam mais expostos ao roubo e a hackers. A verdade é que existem soluções mais baratas, mas a falta de conscientização também aumenta a irresponsabilidade e o gerenciamento de custos. No mundo contemporâneo, é inadmissível que as empresas decidam sobre a segurança dos computadores de todos os cidadãos e manejem os dados do usuário sobre o desconhecimento da população. É necessário estabelecer padrões mínimos para todos. Nos casos necessários, poder-se-ia até subsidiar pequenas e médias empresas para que elas possam acessar esses níveis de segurança e não serem forçadas a fechar seus negócios porque não podem competir. A segurança do computador não deve ser um luxo para poucos.
Outra questão importante é a quantidade de conteúdo publicado na web, especialmente nas redes sociais. Há uma corrente de pensamento que faz lobby para que as empresas assumam o papel de polícia e eliminem o discurso de ódio das redes. Isso parece bom no começo. Censure o conteúdo machista e de ódio na web para que não espalhem seu ódio pela Internet e possam controlar a formação da opinião pública em direção a discursos mais construtivos. Mas a verdade é que esses discursos não deixarão de existir censurando-os e sempre descobrirão como filtrar. Por outro lado, é questionável conceder tal poder a grandes empresas transnacionais que podem decidir, sob seus critérios e padrões, o que censurar e o que não. Muitas pessoas dirão que hoje já exercem esse poder de censura (e é verdade), mas não são endossadas por lei e, quando o fazem, campanhas importantes são formadas contra eles. De fato, em muitos casos, eles são forçados a restabelecer contas censuradas e alterar suas políticas devido à má imagem que a censura mantém. Se fosse tomada a decisão de conceder às empresas o poder de polícia nas redes sociais, o que garantiria que elas não bloqueiem comentários políticos por serem consideradas odiosas, mesmo que não haja insultos expressos? E se eles bloquearem vídeos de demonstração? A ampliação das manifestações no Chile, para colocar apenas um caso, ocorreu nas redes sociais. O que foi visto lá era substancialmente diferente do que o discurso da grande mídia relacionava. Se as empresas tivessem o monopólio da censura da rede, os cidadãos não teriam acesso às informações reais do que estava acontecendo lá. Dar às empresas a capacidade de intervir pode comprometer o livre fluxo de informações nas redes e incentivar informações tendenciosas. Não deve haver autorização para censurar conteúdo de qualquer tipo, incluindo discurso de ódio. Diferente é o caso de atividades ilegais, como pedofilia ou tráfico de vida selvagem, que devem ser processadas por sua natureza ilegal.
Boa parte das cidades mais importantes do mundo encheram-se de câmeras de reconhecimento facial. Elas estão por toda parte, reconhecem a população e, segundo as autoridades, cooperam com a eliminação do crime. A verdade é que as falhas do sistema já são evidentes. De fato, houve sérios problemas com sistemas que reconhecem como pessoas suspeitas que não estão sendo procuradas. Cidadãos inocentes de crimes foram privados de liberdade por longas horas. Os danos causados em termos de humilhação e perda de tempo são irreparáveis. Mas este não é o único problema. Um Estado que tenha essa capacidade de controlar sua população pode usá-la para o mal. As manifestações contra o governo poderiam ser controladas simplesmente reconhecendo os participantes e tentando intimidá-los mais tarde. Uma ditadura com esses sistemas poderia produzir massacres reais. É por isso que os setores mais radicais consideram que a eliminação dos sistemas de reconhecimento facial de todos os espaços públicos deve ser reivindicada. Uma posição mais moderada sustentaria a necessidade de reivindicar uma moratória, solicitando que não se avance nessa direção e as que já foram instaladas sejam progressivamente eliminadas.
Novas tecnologias impactam o mercado de trabalho. Nesse sentido, é necessário começar a pedir a conquista de novos direitos trabalhistas. Os trabalhadores estão conectados 24 horas por dia. Mesmo que não respondamos uma mensagem comercial, ainda temos nossos telefones celulares e recebemos mensagens comerciais que se acumulam na caixa de entrada. Hoje, o direito ao desligamento do trabalho é necessário, mais do que nunca. Mas não é o único direito a conquistar. Os empregadores também lidam com grandes quantidades de trabalho e informações privadas sobre os trabalhadores. A proteção dos dados dos trabalhadores torna-se fundamental para que esses dados não sejam utilizados contra o mesmo trabalhador nem possam alimentar sistemas algorítmicos de gerenciamento do trabalho. Por outro lado, os sistemas automáticos estão alcançando autonomia a ponto de os trabalhadores estarem desempregados, mas o sistema continua funcionando (como o Home Banking), tirando a visibilidade das reivindicações dos trabalhadores. Assim como os trabalhadores não podem ser contratados para substituir os que estão em greve, os sistemas automáticos que substituem os trabalhadores não devem ser ativados. Precisamos ressignificar o direito de greve, para que essa importante ferramenta de visibilidade não seja perdida quando a negociação falhar.
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Estes são apenas alguns dos novos problemas enfrentados por nossas sociedades atualmente. As organizações sociais, em coordenação com especialistas, podem e devem promover esses debates. Dadas as mudanças que estão ocorrendo, essa reflexão – com uma perspectiva humana, solidária e latino-americana – é cada vez mais essencial.
O Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove o XIX Simpósio Internacional IHU. Homo Digitalis. A escalada da algoritmização da vida, a ser realizado nos dias 19 a 21 de outubro de 2020, no Campus Unisinos Porto Alegre.
XIX Simpósio Internacional IHU. Homo Digitalis. A escalada da algoritmização da vida.
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Capitalismo, tecnologia e movimentos sociais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU