27 Outubro 2017
Países em desenvolvimento têm cada vez mais pressionado contra o regime de propriedade intelectual imposto a eles pelas economias avançadas nos últimos 30 anos. Eles têm razão, não apenas a produção de conhecimento é importante, mas também que esse conhecimento seja utilizado colocando a saúde e o bem-estar das pessoas à frente do lucro das empresas.
O artigo é de Joseph E. Stiglitz, Dean Baker e Arjun Jayadev, publicado por ALAI, 25-10-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Joseph E. Stiglitz foi vencedor do Prêmio de Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel em 2001 e da Medalha John Bates Clark em 1979, é professor universitário da Universidade de Columbia, e co-presidente da Comissão de Especialistas para Mensuração do Desempenho Econômico e do Progresso Social (High-Level Expert Group on the Measurement of Economic Performance and Social Progress) na OCDE e economista-chefe do Instituto Roosevelt. Stiglitz. Já foi vice-presidente e economista-chefe do Banco Mundial e diretor do Conselho de Assessores Econômicos do Presidente dos Estados Unidos, durante o mandato de Bill Clinton, fundou a Initiative for Policy Dialogue em 2000, um think tank sobre desenvolvimento internacional com sede na Universidade de Columbia. Seu livro mais recente é The Euro: How a Common Currency Threatens the Future of Europe (O Euro: Como uma moeda comum ameaça o futuro da Europa, Bertrand Editora).
Dean Baker é co-diretor do Center for Economic and Policy Research em Washington, DC.
Arjun Jayadev é Professor de Economia na Universidade de Azim Premji e economista no Institute for New Economic Thinking.
Quando o governo sul-africano tentou emendar suas leis em 1997 para que medicamentos genéricos acessíveis para o tratamento do HIV e da AIDS fossem disponibilizados, todo o poder jurídico da indústria farmacêutica global se abateu sobre o país, atrasando sua implementação e demandando um custo humano. A África do Sul acabou vencendo, mas o governo aprendeu a lição: não tentou mais colocar a saúde e o bem-estar de seus cidadãos em suas próprias mãos desafiando o regime de propriedade intelectual (PI) global convencional.
Até agora. O gabinete sul-africano está se preparando para finalizar uma política de PI que promete ampliar substancialmente o acesso a medicamentos. A África do Sul, sem dúvida, vai enfrentar todos os tipos de pressão bilateral e multilateral dos países ricos. Mas o governo está certo, e outras economias emergentes e em desenvolvimento deveriam seguir seus passos.
Nas últimas duas décadas, tem havido forte resistência do mundo em desenvolvimento ao atual regime de PI. Em grande parte, isso ocorre porque os países ricos tentaram impor um modelo único ao mundo todo, influenciando o processo de regulamentação na Organização Mundial do Comércio (OMC) e forçando que sua vontade sobressaísse por meio de acordos comerciais.
Os padrões de PI tipicamente preferidos pelos países avançados são desenvolvidos não para potencializar a inovação e o progresso científico, mas para potencializar os lucros das grandes farmacêuticas e de outras empresas que podem influenciar as negociações comerciais. Não é nenhuma surpresa, portanto, que grandes países em desenvolvimento com bases industriais substanciais – como África do Sul, Índia e Brasil – estejam encabeçando o contra-ataque.
O objetivo principal desses países é a manifestação mais visível da injustiça da PI: a acessibilidade de medicamentos essenciais. Na Índia, uma emenda constitucional de 2005 criou um mecanismo exclusivo para restaurar o equilíbrio e a justiça dos padrões de criação de patentes, salvaguardando, assim, seu acesso. Superando vários desafios em processos nacionais e internacionais, a lei foi criada a fim de se adequar aos padrões da OMC. No Brasil, a ação precoce do governo no tratamento de pessoas com HIV/AIDS resultou em várias negociações bem sucedidas, reduzindo consideravelmente os preços dos medicamentos.
Esses países estão certos em sua plena oposição a um regime de PI que não é justo nem eficiente. Em um estudo recente, revemos os argumentos sobre o papel da propriedade intelectual no processo de desenvolvimento. Mostramos que grande parte das evidências teóricas e empíricas indicam que as instituições econômicas e as leis de proteção ao conhecimento nas economias avançadas atuais são cada vez mais inadequadas para reger a atividade econômica global e não servem para atender às necessidades dos países em desenvolvimento e mercados emergentes. Na verdade, são hostis ao atendimento das necessidades humanas básicas, tais como assistência à saúde adequada.
A raiz do problema é que o conhecimento é um bem público (global), tanto no sentido técnico de custo zero de utilização como no sentido mais amplo de que um aumento no conhecimento pode melhorar o bem-estar global. Diante disso, a preocupação tem sido que o mercado possa fornecer menos conhecimento do que o necessário, e a pesquisa possa não ser incentivada adequadamente.
A partir de meados do século XX, a sabedoria popular era que essa falha de mercado poderia ser melhor retificada pela introdução de outra: os monopólios privados, criados através de severas patentes rigorosamente aplicadas. Mas a proteção à PI particular é apenas um caminho para resolver o problema do incentivo e do financiamento à pesquisa, e tem sido mais problemático do que o previsto, mesmo em países avançados.
O crescente “patent thicket” (emaranhado de patentes) em um mundo de produtos que exigem milhares de patentes reprimiu, por vezes, a inovação, havendo mais gastos com advogados do que com pesquisadores, em alguns casos. E a pesquisa muitas vezes não se concentra em produzir novos produtos, mas em expandir, ampliar e alavancar o poder de monopólio concedido pelas patentes.
A decisão de 2013 da Suprema Corte dos EUA de que genes de ocorrência natural não podem ser patenteados testou se as patentes estimulam a pesquisa e a inovação, como afirmam os defensores, ou as dificultam, restringindo o acesso ao conhecimento. Os resultados são inequívocos: houve aceleração na inovação, levando a melhores exames diagnósticos (para a presença, por exemplo, de genes BRCA relacionados ao câncer de mama) a custos muito mais baixos.
Há pelo menos três alternativas de financiamento e incentivo à pesquisa. Uma são os mecanismos centralizados de fomento direto à pesquisa, como os Institutos Nacionais da Saúde (National Institutes of Health) e a Fundação Nacional da Ciência (National Science Foundation), dos Estados Unidos. Outra alternativa é descentralizar o financiamento direto, por exemplo, por meio de créditos fiscais. Ou então um órgão governamental, fundação privada ou instituto de pesquisa premiar inovações de sucesso (ou outra atividade criativa).
O sistema de patentes pode ser pensado como um prêmio. Mas esse prêmio impede o fluxo de conhecimento, reduz os benefícios que derivam dele e distorce a economia. Por outro lado, a última alternativa a este sistema aumenta o fluxo de conhecimento, mantendo uma licença creative commons, como nos softwares de código aberto.
As economias em desenvolvimento deveriam usar todas essas abordagens para promover a aprendizagem e a inovação. Afinal, os economistas têm indicado há décadas que o determinante de crescimento mais importante – portanto, que gera ganhos em desenvolvimento humano e bem-estar – é a mudança tecnológica e o conhecimento que ela promove. O que separa os países em desenvolvimento dos países desenvolvidos é uma lacuna tanto em conhecimento como em recursos. Para potencializar o bem-estar social global, os formuladores de políticas devem incentivar fortemente a difusão do conhecimento dos países desenvolvidos para os países em desenvolvimento.
Mas enquanto a teoria para um sistema mais aberto é robusta, o mundo move-se na direção oposta. Nos últimos 30 anos, o regime vigente de PI construiu ainda mais barreiras ao uso do conhecimento, muitas vezes distanciando os retornos sociais da inovação e os retornos particulares da ampliação. Os poderosos lobbies de economia avançada que estruturaram esse regime claramente priorizaram o último, o que se reflete em sua oposição a disposições que reconhecem os direitos de propriedade intelectual associados ao conhecimento tradicional ou à biodiversidade.
A atual adoção generalizada de proteção severa à PI também não tem precedentes históricos. Mesmo entre os primeiros industrialistas, a proteção de PI chegou muito tarde e, muitas vezes, foi deliberadamente evitada para possibilitar a industrialização e o crescimento rápidos.
O atual regime de PI não é sustentável. A economia global do século XXI será diferente da do século XX pelo menos de duas maneiras críticas. Em primeiro lugar, o peso de economias como África do Sul, Índia e Brasil será substancialmente maior. Em segundo, a "economia sem peso" – de ideias, conhecimento e informação – será responsável por uma parcela crescente da produção, tanto nas economias desenvolvidas quanto nas em desenvolvimento.
As regras relativas a "governança" do conhecimento global devem mudar para refletir essas novas realidades. Um regime de PI ditado pelos países avançados há mais de 25 anos, em resposta à pressão política de alguns dos seus setores, faz pouco sentido no mundo atual. Potencializar os lucros de poucos, em vez de potencializar o desenvolvimento global e o bem-estar de muitos, também não fazia muito sentido na época – exceto em relação às dinâmicas de poder.
Essas dinâmicas estão mudando, e as economias emergentes devem assumir a liderança na criação de um sistema equilibrado de PI, que reconheça a importância do conhecimento para o desenvolvimento, o crescimento e o bem-estar. Não apenas a produção de conhecimento é importante, mas também que esse conhecimento seja utilizado colocando a saúde e o bem-estar das pessoas à frente do lucro das empresas. A possível decisão da África do Sul de permitir o acesso a medicamentos pode ser um marco importante no caminho rumo a esse objetivo.
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Propriedade intelectual para a economia do século XXI - Instituto Humanitas Unisinos - IHU