21 Fevereiro 2020
Moon Ribas é dançarina e em tempo real recebe em seus pés sinais de que a Terra está tremendo. É catalã, ativista ciborgue e tem sensores que lhe permitem detectar os movimentos sísmicos. Trinta mil embriões permanecem congelados a 196 graus abaixo de zero, em nitrogênio líquido, em bancos de institutos de fertilidade da Argentina, suspensos ao longo do tempo. Bill Gates propõe cobrar impostos pelos robôs. Uma orangotango chamada Sandra que mora em um santuário nos Estados Unidos, foi recebida como pessoa não humana e com passaporte internacional.
Deste presente à série Years and years, onde b, a jovem da família Lyons, confessa aos pais que é “trans ... humana”, há apenas alguns traços de diferença. A série é um futuro que parece ser mais atual do que imaginamos e, entre todos esses temas, há um fio que se entrelaça em um piscar de olhos, ou em um livro que o reúne: Inteligencia artificial y derecho (Editora: Rubinzal Culzoni). Nele, o constitucionalista e pesquisador Andrés Gil Domínguez se pergunta e discute como a Justiça contempla (ou chega tarde) ao novo mundo que se transforma em um clique em direção à quarta revolução industrial.
É preciso ir por partes, no começo era o caso da orangotango Sandra. Era famoso em todo o mundo: depois de um habeas corpus em 2014, para tentar resgatá-la das condições em que vivia no então zoológico de Buenos Aires, ela foi declarada “pessoa não humana” e “um ser senciente”, após uma ação promovida por Pablo Buompadre, presidente da Associação de Funcionários e Advogados pelos Direitos dos Animais, e Gil Domínguez. Graças à sentença, reconheceu-se que Sandra tinha direito à vida, liberdade e a não sofrer nenhum dano. Com esse caso, a discussão abriu outras portas para ver quais outros seres eram sencientes e a Justiça se pôs como um tiro contra o abuso de animais, questão que, até então, vinha se desenvolvendo em câmera lenta.
Durante todo esse processo, Gil Domínguez estudou, pesquisou e começou a concluir, cada vez mais convencido de que o antropocentrismo, como base de direitos e do jurídico, começava a entrar em crise. “Essa ideia de senciência como elemento determinante na hora de considerar um sujeito como parte da estrutura democrática que precisa ter direitos me levou a pensar nas possíveis novas formas que a Inteligência Artificial está desenvolvendo”, explica. Essas novas singularidades vão ter uma senciência eletrônica e, a partir daí, isso gerará um grande debate sobre se falamos apenas de pessoas humanas e não humanas ou se as pessoas eletrônicas também serão titulares de direitos que serão complementados conosco”.
Para que não haja escandalizados por tanto futuro, explica: “Esse desenvolvimento tecnológico que anteriormente era antecipado no cinema, agora está sendo visto ao vivo. Os algoritmos estão em nossa vida. A biotecnologia começa a prolongar processos vitais. Até a finitude começa a entrar em crise, também na identidade genética. São paradoxos transumanistas porque hoje, por exemplo, as pessoas que recorrem a técnicas de reprodução humana assistida estão em condições de gerar um filho ou filha com menor incidência do acaso, pela seleção do melhor embrião disponível. Agora, devido ao desenvolvimento das Inteligências Artificiais dos algoritmos, podem ser gerados outros tipos de subjetividades. Hoje, há discussões sobre questões de gênero nas relações entre seres humanos e robôs, e humanoides que desempenham o papel da prostituição. O que resta para começarmos a discutir as relações amorosas entre um humano e um humanoide? ”
A entrevista é de Natalia Gelós, publicada por Clarín-Revista Ñ, 19-02-2020. A tradução é do Cepat.
Qual foi a principal contribuição do caso Sandra?
A senciência começou a ser o elemento determinante para que um agente seja incluído no sistema democrático. Antes te reconheciam quando era autônomo. Depois de muito tempo, começaram a ser incluídas as pessoas com deficiência. Essa era a base do sistema democrático neoliberal. O caso da orangotango supera isso. O fato de ser sensível, a capacidade de desfrutar o prazer e sentir a dor, é a fronteira a partir da qual se deve reconhecer direitos e proteção.
O que é necessário para que a Justiça responda às novas situações?
É uma tomada de consciência evolutiva, com grandes marcos, como o caso da orangotango Sandra e, a partir daí, um desenvolvimento progressivo, mas a quarta produção industrial reduziu todos os tipos de processos. Com Sandra, vemos grandes mudanças em um período muito curto, se o compararmos com outras mudanças que incorporaram pessoas como sujeitos. As novas gerações já nascem com a constatação dos seres sencientes com direitos, sendo assim, terão outra visão de mundo.
Na Argentina, existem milhares de embriões de laboratório congelados. Qual é o lugar da lei nessa questão?
O que eu proponho é que hoje, com o desenvolvimento de técnicas de reprodução humana assistida, quando há um embrião indesejado para implantação por quem o gerou, não podemos falar de adoção, porque seres vivos são adotados, não podemos falar de doação, porque as coisas são doadas e um embrião não é uma coisa, por isso proponho a figura da embrionação, um elemento novo que recebe um determinado status e é transferido para quem o deseja. Dessa maneira, é dado um tratamento especial a essa situação tão particular.
Para a Justiça, o que são esses embriões congelados?
É um vácuo legal não constitucional. Do ponto de vista constitucional, a união de gametas feminino e masculino tem uma proteção. Não é uma mesa, não é um copo. Essa proteção especial que vai aumentando na medida em que se desenvolve. Hoje, a discussão passa por ver se esses embriões podem ser geneticamente modificados, se podem ser clonados. Isso está impactando o antropocentrismo clássico, porque se você tem essas possibilidades e as realiza, esse embrião gerado através de um esperma e um óvulo na biologia comum pode iniciar um processo de transumanismo. Esse embrião deve ter uma tutela especial. Essas são as pesquisas que são feitas. Por isso, quando não há vontade da mulher, no direito penal se gera um choque de direitos. A mulher tem direito à saúde, a decidir sobre o seu corpo, e por aí passa o debate.
A justiça não acompanha o ritmo dessas mudanças?
A justiça sempre está muito atrás. Em termos legais, deveria começar a discutir qual será a proteção que será dada aos robôs humanoides. O Parlamento Europeu confiou à Comissão Europeia um regulamento, que pressupõe que em algum momento a Inteligência Artificial Forte nos vencerá e, na transição, solicita que comecem a ser discutidas formas de reconhecimento da personalidade eletrônica.
Existem outras questões, finitude, por exemplo. Já está sendo considerado quando será o momento em que vamos dar morte à morte. Temos uma finitude que está contida ou determinada pelo orgânico, mas outros componentes do nosso corpo poderiam sobreviver. E o que o transumanismo delineia, com um melhoramento do orgânico por meio da nanotecnologia, biotecnologia que façam que um dia sejamos imortais.
E quais debates desencadeiam essa situação?
Uma perspectiva assim, faz com que você discuta muitas situações, porque se pensa a família, o casal, a fidelidade, os filhos, para um determinado número de anos, mas imagine se pudéssemos estender a finitude para 130 anos. Como seria? Como seria a relação com os filhos? Se terei 140 anos de vida, terei a mesma perspectiva de família? São questões que fazem você projetar a partir da tecnologia e que, em termos de direitos, sensibilizam.
Você também fala sobre a ligação das crianças com a Internet e sobre lhes oferecer ferramentas para que percebam quais conteúdos consumir. Em um algum ponto, é semelhante à Educação Sexual Integral?
É que o nível atual de conectividade é uma parte estrutural do ser. Hoje, você tem uma identidade digital. Os vínculos são digitais. E as crianças que vierem serão muito mais digitais. Então, a forma de protegê-los não pode ser a mesma que tínhamos quando, no mundo audiovisual, você falava do horário de proteção à criança e que horas iam dormir, e os cinemas colocavam “Proibido para menores de 18 anos” e não podia entrar.
A conectividade hoje é tão ampla, tão abrangente, que o ensino consiste em prepará-los para estar conectados e terem a habilidade de ir conversando com os pais e ir percebendo o que podem ver ou não. A proibição, a desconexão, gerará mais danos do que benefícios em um mundo hiperconectado. Você precisa prepará-los para que, vivendo nessa comunidade digital, tenham a capacidade de construir essa subjetividade na conectividade.
Por isso fala sobre o direito à Internet como um Direito Humano?
Geralmente, ao longo da história, os diferentes modelos constitucionais tiveram um padrão: o direito aos direitos. No direito constitucional liberal, foi a liberdade de privacidade. Hoje, para mim, está sendo construído um novo direito aos direitos: o acesso à Internet. É o novo direito humano que dá fundamento a todos os outros. Sem esse, não teremos acesso à saúde, educação, liberdade e privacidade... Devemos trabalhar para construí-lo e garanti-lo. Hoje, a forma de acessar direitos é pela Internet.
Para entrar nas discussões que abrirá a senciência artificial, você fala do vínculo entre direito e dor. Como isso se aplicaria?
O direito tem sido a transformação da dor em um poder das pessoas para superá-la. Trata-se de reparar para evitar sua recorrência no futuro. Isso foi marcado por grandes lutas de homens e mulheres que batalharam para que seu sofrimento não se repetisse. O desafio, pensando no futuro, é se os robôs humanoides, os robôs, ou o que quer que comece a ter senciência eletrônica, terão que passar pelo sofrimento que os humanos passaram para reconhecer seus direitos, ou serão reconhecidos sem passar por essa etapa. Essa é a principal ponte.
O Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove o XIX Simpósio Internacional IHU. Homo Digitalis. A escalada da algoritmização da vida, a ser realizado nos dias 19 a 21 de outubro de 2020, no Campus Unisinos Porto Alegre.
XIX Simpósio Internacional IHU. Homo Digitalis. A escalada da algoritmização da vida.
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Direitos na era do algoritmo. Entrevista com Andrés Gil Domínguez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU