03 Novembro 2019
Tem sentido que a esquerda e o progressismo desprezem as novas técnicas de comunicação vinculadas ao mundo digital? São realmente um instrumento que somente serve à direita?
O artigo é de Florencia Benson, publicado por Nueva Sociedad, edição impressa de Outubro de 2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
O “mundo algorítmico” – a síntese do denominador comum entre as múltiplas técnicas contemporâneas de gestão da percepção, da comunicação e da opinião pública – chegou para ficar, tal como previu Marshall McLuhan. Hoje em dia, o algoritmo é, em termos gerais, um insumo e um dado da realidade. No entanto, o Big Data, a inteligência artificial, o deep learning, as fake news, as “bolhas”, os bots e os trolls, formam parte de uma esfera de conhecimento e de práxis que ao olhar progressista parece exótica e não isenta de certo componente pitoresco, como um filme vintage. Por toda a América Latina, o progressismo manifesta certo desdém (mais ou menos explícito) à “técnica”, como se técnica e política pudessem se opor, ou, mais ainda, como se o conflito entre esquerda e direita em sua versão contemporânea fosse redutível a essa mesma fórmula: Big Data contra Política.
Por um lado, o ceticismo progressista para esses dispositivos está longe de ser injustificável: essa aparente “afinidade eletiva” entre as forças da direita e as ferramentas tecnológicas avançadas parece um combo monolítico, galvanizado. Por acaso é somente uma questão de orçamento ou de poderio econômico? Parece evidente que essa superioridade financeira se associa, ao menos nessa área, a um certo monopólio do conhecimento e do capital simbólico. Se estabelece, assim, um tipo de “supremacia digital” por parte da direita que, a priori, parece difícil de subverter. Por outro lado, se assim decidirem, o que poderiam fazer as forças progressistas para se apropriar dessas técnicas? Poderiam realmente equilibrar o campo de jogo? Existe por acaso uma política “por fora” do algoritmo? E, se existisse, qual seria?
Vejamos o caso da estrela em ascensão da política estadunidense, a deputada socialista de origem latina Alexandria Ocasio-Cortez (AOC), ponta de lança do grupo popularmente conhecido como The Squad, completado pela representante muçulmana Ilhan Omar, a afroamericana Ayanna Pressley e Rashida Tliab, de ascendência palestina. São todas mulheres com menos de 45 anos e pertencentes a grupos étnico-culturais que, além de serem minoritários, estão sendo atacados no contexto de ascensão do supremacismo branco, a xenofobia e o racismo histórico dos Estados Unidos. Essas quatro mulheres representam o exato oposto de Donald Trump, o homem branco, poderoso e grande, e também de Hillary Clinton, que pertence à “aristocracia” de Washington DC. Trata-se de mulheres que provêm das margens da imigração, de grupos minoritários, de história de luta, fome, guerra, epopeias variadas para cruzar fronteiras, se instalar na terra das oportunidades e “perseguir sua felicidade”. O mesmo procedimento de assimilação (apropriação, integração e diferenciação) que atravessaram em seu âmbito social foi replicado por elas dentro do ecossistema político, com excelentes frutos.
A estratégia desse grupo, em particular de Ocasio-Cortez, não foi a marginalização ou o sectarismo político, mas sim do envolvimento decidido nas estruturas políticas reais do país. A campanha de Ocasio-Cortez foi clara a respeito: se apropriou das ferramentas tecnológicas e as utilizou para amplificar seu discurso, polido e esquisitamente modulado, com uma lógica e due diligence à prova de balas. Ainda que sua candidatura, escassa em recursos, não tenha contado com algumas ferramentas digitais de que se utilizam os políticos mais poderosos, fez uso da inteligência social de sua equipe de profissionais. Assim, substituiu a escassez de fundos por especialistas no mundo digital, vinculados ao design, mas também às redes. Sem o apoio econômico dos lobistas tradicionais e com somente 300 mil dólares para realizar sua campanha para as primárias, desenhou uma estratégia de instalação de marca que foi muito além do discurso político que expressava. De fato, a companhia alternativa Tandem, que desenhou a campanha, utilizou muitas das estratégias com as quais geralmente se associa à comunicação na era do Big Data. Scott Starrett, o designer da campanha, já havia realizado trabalhos para Brand New Congress e Justice Democrats, duas organizações progressistas, tentando adaptar a linguagem aos novos meios digitais.
A meta foi vincular uma estética associada aos movimentos políticos de esquerda do passado com as demandas da nova juventude e dos setores marginalizados. Tratou-se, em toda regra, de uma campanha de branding. Ademais do trabalho de Tandem, Ocasio-Cortez contou com a colaboração de Naomi Burton e Nick Hayes, os verdadeiros responsáveis pela renovação das campanhas na esquerda estadunidense. Fundadores da produtora Means of Production, com base em Detroit, desenvolveram uma estratégia de vídeo e de viralização adaptada a um público millenial. E não é por acaso que essa estratégia tenha sido eficaz. Além do conteúdo político de Ocasio-Cortez, estava a trajetória de Burton, que trabalhou para algumas das companhias mais importantes dos Estados Unidos (aquelas que se localizam no lugar mais alto da lista Fortune), que acabou aplicando seus conhecimentos na campanha da candidata socialista. Ao seu trabalho, somou-se María Arenas, uma designer gráfica jovem, de origem filipina, egressa do Pratt Institute. Arenas tentou, com êxito, instalar as novas estratégias de marketing em uma campanha de corte essencialmente progressista.
Evidentemente, a comunicação política moderna – que não desdenha em dar prioridade às ferramentas digitais – foi chave no êxito da citada deputada socialista. Sua enorme quantidade de seguidores no Twitter e no Instagram foi alcançada, sem dúvidas, durante a campanha. E a retroalimentação permanente, a partir de stories, vídeos breves e imagens modernas, pôs de manifesto a entrada do progressismo em uma nova era da comunicação.
Tanto em sua campanha como agora no seu papel de congressista, Ocasio-Cortez aproveita cada manobra de ataque de seus oponentes, especialmente de Donald Trump, como exercícios pedagógicos para desconstruir, expor e neutralizar as estratégias, em uma autentico judô comunicacional. A deputada nova-iorquina se tornou uma “champion” do sistema e força os seus oponentes a jogar segundo as regras, mantendo-se dentro do quadrilátero e atendo-se ao fair play, deixando-os expostos como corruptos ou antidemocráticos. Isso não é somente uma estratégia política: é uma base vinculada a esse novo mundo comunicacional. Ocasio-Cortez estudou cada regra, cada processo, cada formulário, e os instrumentaliza a seu favor, como um mecanismo eficaz não somente para contrapesar e limitar o poder de seus oponentes, mas sim, sobretudo, como uma estratégia de marketing político sumariamente atrativa e exitosa. Constituiu sua narrativa em uma espécie de Hermione Granger (protagonista de Harry Potter) da vida real: uma heroína da impecabilidade, da astúcia, da coragem frente aos poderes corruptos, ancestrais, que ameaçam o american way of life.
Outro caso interessante que desafia a centralidade do algoritmo na comunicação política é a vitória de Andrés Manuel López Obrador (AMLO) nas eleições presidenciais do México em 2018. Enquanto a região girava para a direita, o México escolheu um candidato localizado à esquerda. López Obrador foi o favorito nas eleições, depois da péssima gestão de Enrique Peña Nieto. No entanto, ele foi o único com menos infraestrutura digital e de publicidade em sua campanha política. O Partido Revolucionário Institucional (PRI) e o Partido de Ação Nacional (PAN) tiveram maior desenvolvimento em termos de marketing e estratégias ligadas ao novo mundo algorítmico. Mesmo como favorito, López Obrador também tinha um estigma: havia sido derrotado duas vezes. E muitos acreditavam que, se vencesse, seria por uma margem bastante pequena. No entanto, sem ter a mesma capacidade de usar e manipular ferramentas digitais, ele obteve uma vitória muito mais confortável do que a esperada.
Em sua terceira postulação como candidato à presidência, abandonando o selo do Partido da Revolução Democrática (PRD) e formando o Movimento Nacional de Regeneração (Morena), em coalizão com partidos minoritários da esquerda e com outras forças mais diversas, incluindo um partido evangélico, López Obrador combinou elementos de forasteiro e coerência histórica que ele traduziu em sua estratégia de publicidade. Ele realizou uma campanha people-intensive, isto é, passeios clássicos pelos territórios, com uma comunicação discreta e muito cuidadosa nas redes sociais, em que nunca teve mais seguidores que seus concorrentes. Suas mensagens foram cuidadas seguindo uma linha de simplicidade, austeridade, humildade, que também são características marcantes do candidato. Em sua terceira tentativa, o atual presidente mexicano conseguiu capitalizar seu profundo instinto antissistema, incluindo o algoritmo. Isso ficou visível na proximidade com os setores mais humildes (especialmente indígenas e mulheres), na coerência entre austeridade pessoal e sua cruzada anticorrupção e na votação punindo os dois partidos tradicionais, o PRI e o PAN, mais entretidos com as lutas internas que abordam a crescente violência política e social que explode em todo o território. Nesta campanha, ao contrário das duas anteriores, López Obrador fez uso intensivo das ferramentas de comunicação política profissional, mas, em sintonia com sua mensagem antissistema, sem que ela fosse notada.
A busca pelo algoritmo progressista como pedra filosofal da política contemporânea é uma busca legítima e bem-sucedida, embora sua fórmula específica dependa do contexto. O ludismo é uma postura contraproducente, como foi demonstrado em diferentes campanhas progressistas nos anos anteriores. Em outras palavras, negar o algoritmo não o faz desaparecer.
Por que as estratégias Ocasio-Cortez e López Obrador funcionaram? Porque eles decifraram, acima de tudo, o código implícito de comunicação na era pós-Internet e apresentaram um ângulo que lhes deu uma vantagem competitiva entre a oferta eleitoral. Ou seja, não é apenas necessário entender e falar a linguagem do marketing digital, mas, acima de tudo, usar essas ferramentas para transmitir uma personalidade ou marca autêntica, nova (se não espontânea) e única.
A atual situação eleitoral em países da América Latina como a Argentina terá que ser seguida com atenção, pois é o teste mais claro – e talvez dramático – da hipótese “Big Data contra Política”: Se o partido no poder perder, isso não implica que o algoritmo tenha sido derrotado, mas sim um algoritmo específico. Pelo contrário, se fosse capaz de reverter o resultado adverso e obter a reeleição, enfrentaríamos a mais impressionante comprovação do poder do algoritmo de formar, e talvez liderar, as decisões políticas de um coletivo.
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Existem os algoritmos progressistas? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU