07 Agosto 2019
O documentário da Netflix sobre Cambridge Analytica e a fraude eleitoral na Argentina.
A plataforma Netflix disponibiliza desde a semana passada um documentário sobre como a empresa Cambridge Analytica condicionou eleições em diversos lugares do mundo, utilizando de forma ilegal dados pessoais de milhões de usuários de internet.
O impacto do filme na Argentina, dirigido por Jehane Noujaim e Karim Amer, se articula sobre a intervenção da CA nas campanhas eleitorais argentinas de 2015 e 2017 e o papel desempenhado por suas plataformas na configuração do clima político oposto ao kirchnerismo.
O artigo é de Jorge Elbaum, sociólogo e doutor em Ciências Econômicas, publicado por El Cohete a la Luna, 04-08-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A plataforma Netflix disponibiliza desde a semana passada um documentário sobre como a empresa Cambridge Analytica (CA) condicionou eleições em diversos lugares do mundo, utilizando de forma ilegal dados pessoais de milhões de usuários de internet. O título original do filme é The Great Hack.
Sua tradução literal é El Gran Hackeo, em espanhol (O Grande Hack, em português). Com o objetivo de conferir um caráter mais associado aos aspectos do direito pessoal à propriedade da informação (sobre questões ligadas ao mau uso do sistema democrático), Netflix a apresentou ao mundo hispanoparlante como Nada es privado (em português, é Privacidade Hackeada).
O escândalo internacional divulgado pela difusão das atividades de CA pôs em evidência que a origem da empresa se conectava com empreiteiros militares, organismos de inteligência e poderosos magnatas, todos comprometidos em tendencializar processos eleitorais em diversos países do mundo.
O impacto do filme na Argentina, dirigido por Jehane Noujaim e Karim Amer, se articula com a intervenção da CA nas campanhas eleitorais argentinas de 2015 e 2017 e o papel desempenhado por suas plataformas na configuração de climas políticos opostos ao kirchnerismo.
A empresa CA, dirigida pelo Alexander Nix, comprou o Facebook, proprietária do WhatsApp desde fevereiro de 2014, são 87 milhões de perfis completos capazes de delimitar 5.000 pontos de interesses de cada um dos mesmos [1]. Tal informação foi utilizada para orientar o voto de milhões de sufragistas em distintas partes do mundo e potencializar a vitória em diversos pleitos eleitorais.
Depois de três anos e meio de governo, o macrismo deu amplas evidências de uma marcada eficiência no uso do artifício e o engano para exercer específicas formas de captação, imposição de agendas e tergiversação da realidade. Um dos dispositivos mais utilizados foi a manipulação comunicacional apelando a ferramentas providas pela inteligência artificial, a big data, a posterior detecção de segmentos populacionais capazes de serem persuadidos e a elaboração de conteúdos sensíveis orientados a suas características específicas e individuais.
O vínculo da CA com a América Latina se remonta ao tempos menemistas, quando seu CEO Alexander Nix se instalou na Argentina e registrou uma sede corporativa em Buenos Aires sob o nome de Strategic Communication Laboratories (SCL), em Arenales 941 [2]. Nesse mesmo escritório, seu amigo e jogador de polo Lucas Carlos Talamoni Grether radicou sua empresa Black Soil, dedicada a utensílios agrícolas, da qual Nix aparece também como sócio, em seu formato de offshore radicada no Panamá.
Seus contatos locais, ademais, o relacionam com o pampeano Juan Pepa, que reside em Londres e Santa Rosa, de quem Nix foi sócio entre 2007 e 2010 na empresa Rubirosa Ltda. dedicada à comunicação estratégica, similar com a CA. Nix e Pepa compartilharam iniciativas caritativas na Associação Pro Alvear, encarregada de aumentar fundos para fins benéficos relacionados com a promoção social. Um dos padrinhos de Pro Alvear (no papel) é Maurício Macri.
O segmento textual do intercâmbio entre Damian Collins (DC) – integrante da Comissão de Assuntos Digitais do Parlamento Britânico – e Alexander Nix (AN) inclui o seguinte contraponto:
DC: Trabalhou na Argentina?
AN: Sim, trabalhamos na Argentina.
DC: Estou vendo uma nota que alguém compartilhou comigo de uma reunião do grupo SCL (A empresa mãe da Cambridge Analytica) de 27 de maio, onde há uma nota que diz: “Campanha antikirchnerista apresentada ao tomador de decisões, esperando devolução”.
AN: Correto.
DC: Mas para ser claro. As reuniões giravam em torno dessa premissa, que era uma campanha antikirchnerista, então estava trabalhando para um partido da oposição ou outra pessoa interessada em influenciar a política na Argentina, que não estava apoiando o governo.
AN: Essa seria a aparência.
Em janeiro de 2018, os jornais The Guardian e The Observer junto com o New York Times (NYC) divulgaram uma câmara escondida em que Alexander Nix afirmava ter influenciado nos processos eleitorais. Segundo os analistas de CA entrevistados para o documentário, o modelo de trabalho de CA consistiu, primeiramente, em instalar o temor e o ódio (para um sujeito predeterminado) entre aqueles segmentos da sociedade que são percebidos como presa fácil de tais sentimentos.
Para individualizar os receptores dos bombardeios de sentido se utilizaram rastreios de aspirações, gostos, fobias e sensibilidades de cada um dos perfis. Tais registros aparecem com marcas na história personalizada dos trânsitos que se realizam diariamente pelas redes, os usos que damos ao celular, a localização geográfica de onde se levam a cabo tais interações com outros. Em ocasiões essa informação pode se cruzar, ademais, com dados de seguros, transações bancárias, consultas médicas e/ou comunicações pessoais [4].
Essa engenharia permite a detecção precisa de conglomerados de sujeitos (denominados persuadíveis pela CA), agrupados em coletivos genericamente considerados indecisos ou grupos parcialmente indiferentes aos discursos políticos. Esse universo é o objetivo básico das plataformas que atuam como a CA: deixam de trabalhar sobre aqueles coletivos que já estão convencidos, no entanto, apontam, unicamente, ao setor mais influenciável, composto pelos sujeitos alheios ao universo dos debates políticos.
A acumulação de perfis (big data) se processa mediante algoritmos automatizados (inteligência artificial) conseguindo conformar subgrupos tipificados aos que se destinarão mensagens a medida: aos amantes de cachorros (por exemplo) os advertirá sobre o perigo de que o Frente de Todxs representava aos proprietários de cães nos edifícios. Aos idosos os advertirá, sub-repticiamente, sobre a potencial legislação de uma norma disposta a liberar aos presos sociais, com o objetivo de semear o pânico.
O filme produzido por Netflix deixa claro que as microssegmentações são mais eficazes caso se consiga, previamente, dividir artificialmente a sociedade. Na Argentina tal divisão conseguiu instituir mediante o denominado racha, a partir da qual se conseguiu canalizar posteriormente uma série crescente de etiquetas sintetizadoras de todos os males. De não existir à divisão (a divisão no campo popular), ensinam os testemunhos dados pelos analistas de CA, apareceria como mais árduo o trabalho de ancorar mensagens questionadoras ao interior dos grupos escolhidos.
A segmentação trabalha sobre minorias que, em caso de paridade, podem estabelecer uma diferença eleitoral definidora. Quando detectados fora da interação política, eles são agrupados e encaixotados por interesses específicos. Dada a delimitação de informações precisas, elas são abordadas a partir de seus desejos íntimos. No entanto, essas ferramentas alertam que a segmentação virtualizada não consegue suplantar a ação política clássica, territorial e face a face: ela só pode complementá-la em relação àquelas frações que a atividade política não consegue penetrar.
Uma vez instalado o mal, que conseguiu convencer uma parte da sociedade sobre a existência de inimigos (corruptos, violentos, anti-republicanos), possibilita-se a circulação de mensagens condenatórias entre os grupos de desavisados. Sem divisão prévia, campanhas de estigmatização marcadas e instituídas carecem de território fértil para permitir sua reprodução carioquímica. Em última análise, as operações da CA e as de todas as empresas (ou concepções políticas dedicadas à manipulação emocional e/ou eleitoral) reconhecem que são eficazes apenas para aqueles que não têm consciência crítica e conseguem ser presas fáceis da fantasmagoria personalizada.
Os analistas que estudaram em profundidade os efeitos da virtualização eleitoral consideram que essas ferramentas não podem ser comparadas com mecanismos genéricos de comunicação (TV, rádio, imprensa escrita), porque sua eficácia é orientada para influenciar os níveis mais profundos da sensibilidade dos receptores selecionados. Enquanto a mídia tradicional é voltada para um público médio e aspectos sociodemográficos básicos e genéricos, o direcionamento (obtido neste caso pela CA através da compra de informações personalizadas do Facebook, sem a autorização de seus proprietários), só consegue interpelar com maior precisão para destinatários específicos [5].
As investigações realizadas pela Comissão de Assuntos Digitais da Câmara dos Comuns, a Justiça dos Estados Unidos e o Parlamento Europeu, revelaram que o supremacista Steve Bannon foi um dos articuladores da campanha do Brexit, ligando CA com Nigel Farage, chefe do partido político eurofóbico UKIP, que acabou por se tornar o grande vencedor da consulta para o abandono da União Europeia pelo Reino Unido [6].
Algum tempo depois, Bannon tornou-se vice-presidente da CA, juntando-se a Donald Trump como um de seus líderes de campanha. Nesse papel, ele ajudou a arrecadar 250 milhões de dólares em contribuições, através das ferramentas oferecidas pelo Facebook. Através desta mesma plataforma, organizou o envio de 50.000 anúncios diários personalizados para microssegmentos detectados pela CA [7]. Um dos investidores mais proeminentes da empresa foi o atual Assessor de Segurança Nacional (Ministro da Defesa) de Donald Trump, John Bolton. Após o triunfo do Brexit, Bolton contribuiu com 1 milhão de dólares entre 2014 e 2015, período em que a CA trabalhou na campanha de Mauricio Macri promovendo segmentações de um tribunal anti-Kirchner.
A queixa contra a CA começou após uma investigação coordenada por uma jornalista britânica do The Observer, Carole Cadwalladr, que conseguiu entrevistar um dos proeminentes funcionários da CA, Christopher Wylie. Cadwalladr detalha em detalhes as atividades ilícitas promovidas por Bannon e Nix, incluindo a associação entre CA e a agência Palantir, formada para promover pesquisas de dados em diferentes partes do mundo [8].
O Palantir é uma start-up alavancada pelo fundo In-Q-Tel, de propriedade da CIA, de acordo com o NYT [9]. O chefe da Unidade Especial de Investigação do ataque da AMIA, Mario Cimadevilla, que renunciou ao cargo em março de 2018 (e denunciou o chefe da pasta do Ministério Germán Garavano para encobrimento), afirmou que Andrés Ibarra, responsável pelo ministério de modernização, foi negociando com Palantir a digitalização das informações referentes à causa AMIA [10]. A partir desses dados, a organização APEMIA, formada por familiares e amigos das vítimas do atentado, solicitou informações sobre o concurso (o valor ficou em torno de 2 milhões de dólares) que nunca foram respondidas [11].
Mais de 90% do tráfego de internet entre a América Latina e o mundo circula através de servidores instalados nos Estados Unidos. Os dados residuais dessas interações têm localizações físicas em nuvens instaladas nos países do norte. Washington define esse quantum de informações para apoiar sua segurança estratégica [12]. Embora o mundo digital tenha se tornado um elemento central do sistema social e econômico, os efeitos sobre a perda de soberania (pessoal e/ou nacional) que sua manipulação admite, nem as conseqüências o colapso do sistema democrático que potencialmente gera.
Cambridge Analytica é a maneira de fazer política do macrismo, dada sua necessidade intrínseca de instalar divisões artificiais, alheias às demandas sociais tardias das grandes maiorias sociais. Teremos que aprender a evitar quebras inúteis e a não adicionar aos rachas instituídos por aqueles que precisam dessas divisões. E aprender, entretanto, a questionar os desavisados, capazes de definir, em certas circunstâncias, a definição de opções eleitorais.
[1] Esse conglomerado de informações implica o reconhecimento detalhado de todos os interesses, práticas, consumos, desejos e aspirações de cada um dos 87 milhões de perfis entregues pelo FB à CA. Em cada um desses assuntos, a inteligência artificial hierarquiza aspectos de maior incidência potencial para influenciá-los e convertê-los em conteúdos odiosos contra inimigos previamente estigmatizados.
[2] Dados revelados pelas jornalistas Mariana Escalada e Agustín Ronconi do portal www.eldisenso.com.
[3] https://www.elcohetealaluna.com/sexo-mentiras-y-video/
[4] Na última quarta-feira, o Ouvidor de Buenos Aires, Guido Lorenzino, fez um pedido formal ao Gabinete do Chefe da Nação para saber se o banco de dados da ANSES foi utilizado para fins eleitorais. http://bit.ly/2YxB0ql.
[5] Moore, Martin: Democracy Hacked: How Technology is Destabilising Global Politics. Oneworld, Columbia, 2018.
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Argentina. A fraude antipatriótica, Cambridge Analytica e eleições - Instituto Humanitas Unisinos - IHU