15 Janeiro 2020
O destino da instituição do “emérito” foi deixado para o próprio emérito: assim como ninguém está encarregado de aceitar a renúncia do papa, ninguém estava encarregado de dizer a Bento XVI o que ele pode ou não pode vestir, onde viveria, que tipo de comitiva pode ter. A assunção foi a de que a nova instituição regula a si mesma.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos EUA, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 14-01-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Não é por acaso que um dos teóricos sociais mais importantes, Max Weber, decidiu estudar a dinâmica do poder político e burocrático após passar um tempo na Roma pós-Vaticano I. O papado tem a ver com a história do crescimento de um aparato papal, mais do que uma teologia especulativa do ministério papal. Não há como entender a evolução do ministério petrino, do ofício do Bispo de Roma como papa da Igreja Católica Apostólica Romana, sem entender a constelação dos departamentos, ministérios, prelaturas e anexos eclesiásticos e seculares que giram em torno do Sucessor de Pedro.
Agora, um dos acréscimos recentes mais importantes na constelação dos ofícios que orbitam o ofício papal é o chamado “Papa Emérito”, título que Bento XVI criou para si após sua decisão de renunciar. Ele tomou essa decisão em algum momento de 2012 e a anunciou ao mundo – em um discurso proferido em latim – em 11-02-2013.
O “emérito” como instituição foi criado em tempo real naquelas semanas agitadas, pouco antes do conclave que elegeu o sucessor de Bento, o Papa Francisco. Este ofício foi criado sem o processo, geralmente lento – parcialmente visível e parcialmente invisível –, de se fazer mudanças estruturais no Vaticano. Essa nova instituição foi em grande parte improvisada, sem nenhuma tradição recente como referência, e foi inteiramente deixada para o “Papa Emérito” regular a si próprio.
O conclave que elegeu Francisco foi também extraordinário porque normalmente a eleição do novo “pai” segue-se alguns dias após o enterro do antecessor: algo como a morte do pai que cria o espaço necessário para um novo. Isto não pôde acontecer em 2013.
Dito isso, a instituição do “emérito” – que, de um ponto de vista eclesiológico, deveria se chamar “o Bispo de Roma Emérito e não “Papa Emérito” – deu certo em grande parte até março de 2013. Bento e Francisco têm uma relação percebida como boa entre o público: nesse sentido, [o filme] “Dois Papas” captura algo real do intercâmbio que aconteceu na transição – complicada e inédita – de poder, uma transição simbolicamente não consumada ainda.
No curso desta transição prolongada, houve, nos últimos meses, dois incidentes de grandes proporções. O primeiro foi a publicação, em abril de 2019, de um longo ensaio, assinado por Bento XVI, que “explica” a crise de abuso sexual na Igreja Católica ignorando todos os achados e as investigações científicos que nos dizem sobre a gênese do escândalo, focalizando uma narrativa social-política que culpa as revoltas da década de 1960.
Capa do livro de Bento XVI e Robert Sarah em defesa
do celibato sacerdotal. Publicação original em francês.
Foto: Divulgação
O segundo incidente foi o anúncio, esta semana, da publicação de um livro juntamente com o Cardeal Robert Sarah, prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, posto ao qual fora nomeado por Francisco em 23-11-2014. Bento negou qualquer intenção de ser um dos autores do livro, segundo notícias veiculadas na imprensa, e solicitou ao editor que removesse o seu nome da capa.
Em resposta, Sarah divulgou uma carta de Bento XVI em que este lhe diz para usar livremente o texto que havia escrito anos atrás, em um contexto inteiramente diverso. Tem ficado cada vez mais claro que o cardeal e os que auxiliam Bento XVI podem estar tirando vantagem da confiança ampliada a eles dada pelo religioso em idade avançada.
O livro é uma defesa do celibato clerical na Igreja Católica e, evidentemente, uma resposta ao debate ocorrido na preparação e celebração do Sínodo dos Bispos para a Amazônia, em outubro de 2019.
Tal é um incidente não por aquilo que o livro diz sobre o celibato clerical. Nesse assunto, existem inconsistências claras: entre aquilo que o livro parece dizer com aquilo que o teólogo Joseph Ratzinger costumava dizer; com aquilo que Bento XVI como papa decidiu quando acolheu na Igreja padres anglicanos casados conservadores; com a tradição da Igreja que sempre teve padres casados nas 23 igrejas católicas orientais em plena comunhão com o Bispo de Roma; com os documentos do próprio Vaticano II.
A questão não é nem sobre se é um ataque intencional contra o Papa Francisco. Objetivamente, a questão é a liberdade do Bispo de Roma em seu ministério, um ministério de unidade da Igreja, livre de interferência externa ou interna indevida.
Percebemos uma profunda ironia aqui. Para o debate sobre a manutenção do celibato clerical, a Igreja Católica, no Vaticano II, já mudou uma regra fundamental no ministério dos bispos que tem a ver, de algum modo, com a relação do tipo casamento e monogâmico (de acordo com os Pais da Igreja dos primeiros séculos) entre as igrejas locais e o seu principal clérigo, o bispo. O Concílio Vaticano II abriu caminho para a renúncia obrigatória de todos os ordinários a uma certa idade.
No período pós-Vaticano II, o Papa Paulo VI estabeleceu a idade de 75 anos e criou regras que determinavam a renúncia dos prelados por motivos de idade na Cúria Romana e para a exclusão dos cardeais acima dos 80 anos de participar do conclave que elege um novo papa.
Atualmente, algumas figuras com uma mentalidade tecnocrata funcional tomam conta do Vaticano II na burocratização do ministério episcopal. Mas, pelo menos, as regras que orientam a renúncia dos bispos foram discutidas, atualizadas periodicamente e tornaram-se parte da vida da Igreja. Muitos católicos – e todo o clero – conhecem a “data de validade” dos seus bispos.
Por outro lado, as regras para a renúncia de um Bispo de Roma, o papa, nunca foram debatidas, nem no Vaticano II. Este concílio facilitou a opção de um papa vir a renunciar (opção teoricamente sempre disponível segundo o direito canônico), mas esta opção permaneceu um tabu até 2013, também por causa do exemplo dado pelo Papa João Paulo II em sua recusa teológica e misticamente sustentada a renunciar.
Hoje, mais de 50 anos desde o Vaticano II, essa situação de incerteza é uma das consequências não pretendidas do concílio. É uma questão sobre a qual Ratzinger não seguiu – como ele normalmente fazia – no caminho de um estreitamento da importância das decisões conciliares. Pelo contrário, ele acelerou muito além daquilo que a maioria dos católicos imaginariam, pelo menos em 2013.
O destino da instituição do “emérito” foi deixado para o próprio emérito: assim como ninguém está encarregado de aceitar a renúncia do papa, ninguém estava encarregado de dizer a Bento XVI o que ele pode ou não pode vestir, onde viveria, que tipo de comitiva pode ter. A assunção foi a de que a nova instituição regula a si mesma.
Aqui, a Igreja paga o preço de um certo mito sobre a história da libertação bem-sucedida do papado para com restrições externas – os reis e imperadores, a nobreza romana, as 'sombras' italianas. O fato é que não há imperador mais exigente para a Igreja, hoje, do que o público em seu acesso “democrático passivo” à Igreja através dos meios de comunicação e mídias sociais. Não há como subestimar a importância da relação entre o papado e os meios modernos de comunicação.
Este livro sobre o celibato não é um conjunto de observações feitas de improviso, mas uma operação bem planejada com traduções em múltiplas línguas. Parece que o único tipo de regulação existente vem do mercado midiático-político no qual o “emérito” opera com a ajuda de seus operadores. O papado é um ofício solitário, mas o papa quase nunca está sozinho. Isso é mais verdadeiro ainda para o “Papa Emérito”, cujas idade e saúde demandam uma atenção próxima constante. Ele encontra-se rodeado por uma comitiva que tomou grande cuidado – nos meses antes do anúncio da renúncia – para proteger o seu status e posição no Vaticano.
O problema com o “emérito” é que o poder associado com o protagonismo na religião contemporânea, inclusive na Igreja Católica e, especialmente, no ofício do Bispo de Roma, não é mais exclusivamente um poder religioso juridicamente codificado. É por isso que esse tipo de intervenção constitui uma forma ilegítima de pressão contra o único papa. Não importa quais sejam as reais intenções de Ratzinger, ele se tornou parte de uma narrativa na qual os tradicionalistas querem “defender” o celibato enfraquecendo a unidade da Igreja.
Deve-se observar que nos EUA a percepção deste mais recente pronunciamento é, mais uma vez, bem diferente do modo como é percebido na Europa, onde há uma resistência muito menor a Francisco. Dada a aceitação entre alguns bispos e católicos conservadores americanos para com uma tal propaganda anti-Francisco, como a carta de ex-núncio apostólico Dom Carlo Maria Viganò, de agosto de 2018, a Igreja nos EUA continua a perigosamente se aproximar de uma situação que parece um convite a um cisma.
É difícil dizer que nos olhos daqueles que não gostam dos ensinamentos de Francisco não haja um magistério paralelo sendo escrito. No longo prazo, temos aí um enigma que os historiadores e teólogos precisarão descobrir quando o pontificado de Bento realmente – não canonicamente – acabar.
No curto prazo, este livro assemelha-se a um movimento preventivo – e diferente daquele do artigo de 2019 sobre a crise de abuso. Francisco nunca publicou um livro, uma encíclica ou uma exortação sobre o ministério ou o celibato sacerdotal. No processo sinodal, o papa tem a função de presidir o Sínodo dos Bispos que o “emérito” não tem. As exortações pós-sinodais de Francisco não se afastaram daquilo que fora discutido e decidido pelos próprios sínodos.
Este incidente ultrapassa os muros do Vaticano e as fronteiras invisíveis da virtualização do catolicismo na imprensa e nas mídias sociais. O simbolismo do “emérito” a se retirar em um mosteiro no Vaticano muito pouco significou para aqueles católicos aos quais Bento XVI nunca, em verdade, se retirou. O “emérito” prometeu oração e silêncio. Estes fiéis estão desobedecendo a Bento, ou Bento está desobedecendo a si próprio, ou, como agora parece provável, alguns prelados contrários a Francisco buscam ocultar suas conspirações no manto do emérito.
É de se perguntar que tipo de exemplo o “Bispo Emérito” de Roma tem dado às centenas de bispos eméritos diocesanos ao redor do mundo. O diretório de 2004 para os eméritos, o Apostolorum Successores, publicado pela Congregação para os Bispos, deixou claro que “o Bispo Emérito terá o cuidado de não interferir de modo nenhum, direta ou indiretamente, na condução da Diocese e evitará qualquer atitude ou relação que possa dar sequer a impressão de constituir como que uma autoridade paralela à do Bispo diocesano, com o consequente prejuízo para a vida e a unidade pastoral da comunidade diocesana”. À sua maneira, Bento XVI ensinou ao sucessor Francisco como ser e como não ser papa. Os católicos esperam que o mesmo valha para o próximo emérito.
Todos lembramos como as nomeações de alguns bispos foram feitas e anunciadas nos últimos dias de João Paulo II – decisões das quais Karol Wojtyla, prestes a morrer, quase certamente não tinha ciência. Hoje, ainda supomos que o “emérito” seja capaz de tomar decisões a respeito de como o seu nome é usado. Mas é difícil saber com certeza. Não apenas inexiste uma lei canônica concernente à situação criada por um papa incapacitado, a Igreja Católica evidentemente também precisa de uma lei concernente à situação criada por um “emérito” incapacitado e sua comitiva. Isso é uma coisa que será claramente possível de resolver no momento em que o Vaticano for capaz de legislar sem dar a impressão de estar limitando o “emérito” vivo.
Jamais saberemos oficialmente se alguém no Vaticano foi informado sobre tudo isso antes do vazamento tático à imprensa esta semana. O papel da Sala de Imprensa oficial do Vaticano nestes dias é o de evitar a impressão de um abismo entre o papa e seu antecessor. Há uns que estão agindo com responsabilidade nisso tudo, e outros que não estão. Protegendo-se detrás do “emérito”, existem responsabilidades que, infelizmente, escapam à análise sobre a qual ministério papal ou outro ministério pastoral da Igreja elas estão – ou deveriam estar – sujeitas.
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O mito da instituição autorreguladora do ‘Papa Emérito’. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU