14 Janeiro 2020
"Desde o anúncio de sua renúncia quase sete anos atrás, muitos especulam sobre o perigo de haver dois papas na Igreja Católica. Embora tecnicamente, uma vez renunciado, Bento tenha perdido sua autoridade papal, muitos o reverenciam e o honram como papa".
O comentário é do jesuíta estadunidense Thomas J. Reese, ex-editor-chefe da revista America, dos jesuítas dos Estados Unidos, de 1998 a 2005, e autor de “O Vaticano por dentro” (Ed. Edusc, 1998), em artigo publicado por Religion News Service, 13-01-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Em um novo livro, “Das profundezas dos nossos corações: sacerdócio, celibato e a crise da Igreja Católica” [em tradução livre], o Papa Emérito Bento XVI e seu coautor, o cardeal conservador Robert Sarah, defenderam, com toda força, o celibato, argumentando que o sacerdócio e a abstinência sexual estão integralmente ligados. Ele sustenta que mesmo os padres casados deveriam se abster de fazer sexo após a ordenação.
Algo assim seria novidade para 11 dos doze apóstolos, incluindo Pedro, o primeiro papa, os quais eram casados. Dizer que devemos ser celibatários para que sejamos bons padres contradiz a realidade e é um insulto aos sacerdotes e ministros casados das igrejas protestantes e orientais.
Verdade seja dita: depois do período apostólico, houve regras na Igreja que exigiam a abstinência de sexo antes de se rezar a missa, mas esse ensinamento certamente não veio de Jesus. Era uma imitação de regras semelhantes dos sacerdotes levíticos que precisavam se abster de sexo durante o período de serviço deles no templo. Isso não era grande problema, uma vez que a missa era celebrada somente aos domingos. Mas quando se tornou um evento diário, acabou impossibilitando o matrimônio.
O que de fato aprendemos com este livro é o perigo de ter dois papas na Igreja Católica. O Papa Francisco está seriamente considerando uma proposta que permite que homens maduros casados sejam ordenados, proposta saída do mais recente Sínodo dos Bispos para a Amazônia, em outubro de 2019. Este livro irá dificultar mais ainda as coisas para Francisco.
O sínodo, em sua maior parte composto por bispos da região amazônica, sustentou que a Igreja nesta parte do mundo precisa desesperadamente de padres, e não há homens suficientes que se dispõem a abrir mão do casamento e da família como o preço pela ordenação. Em uma votação de 128 por 41, os bispos votaram a favor da ordenação de homens casados maduros.
No momento, só sabemos deste novo livro com base em excertos publicados na imprensa. Quando o livro sair em meados de fevereiro, historiadores e teólogos poderão analisar por completo os argumentos apresentados. Isto deverá ser feito com respeito, mas também com o reconhecimento de que as palavras de Bento não mais carregam nenhuma autoridade papal.
Desde o anúncio de sua renúncia quase sete anos atrás, muitos especulam sobre o perigo de haver dois papas na Igreja Católica. Embora tecnicamente, uma vez renunciado, Bento tenha perdido sua autoridade papal, muitos o reverenciam e o honram como papa.
Na maior parte do tempo, Bento assumiu um perfil discreto e não falou nem escreveu muito desde que se retirou. No entanto, sempre que o fez acabou sendo motivo de manchetes, promovendo debates em torno de como as suas opiniões diferiam daquelas defendidas por Francisco. Isso é problemático para uma Igreja que preza a unidade no magistério papal.
Parte do problema é que Bento fora pobremente assessorado sobre a forma como a Igreja deveria lidar com os papas. Claramente, a Igreja precisa repensar as suas regras para situações como esta. Não é desejo nosso aprisioná-los, como fez o sucessor do Papa Celestino, mas a Igreja necessita deixar claro que só há um papa.
Eu sugeriria cinco regras para se lidar com os papas aposentados, buscando esclarecer que há somente uma autoridade ulterior na Igreja Católica.
A primeira delas é que o papa aposentado não seja mais chamado de papa e que não seja chamado de papa emérito. Assim que renunciar, ele deveria ser chamado de Cardeal Emérito e Bispo Emérito de Roma. Teria o status que tem a maioria dos cardeais aposentados.
A segunda regra é que ele deveria retornar ao seu nome original; não deveria mais ser chamado pelo nome papal. Obviamente, tudo o que ele disse ou fez enquanto papa pode ter o seu nome papal anexado, mas tudo o que fizer após a renúncia estaria sob o seu nome original.
Assim, Bento seria chamado Cardeal Joseph Ratzinger, Bispo Emérito de Roma. O mesmo valeria para Francisco caso renuncie.
Algumas monarquias seguem este padrão. Quando renunciou, Eduardo VIII se tornou Duque de Windsor. Ele não era rei emérito. Na Holanda, que viu duas rainhas renunciarem por motivos de idade, elas se tornaram princesas novamente após a renúncia.
A terceira regra: o papa aposentado deveria tirar a batina branca e voltar a usar vestes pretas ou vermelhas de cardeal. Na Igreja Católica, os símbolos são importantes. Os símbolos comunicam, eles ensinam. Se não somos o papa, então não devemos vestir branco. Ter dois homens vestindo branco e sentados um próximo do outro os faz parecer iguais quando eles não são.
A quarta regra é onde o papa aposentado deveria morar.
Alguns acharam que a estada de Bento no Vaticano foi um erro. Uns sugeriram Castel Gandolfo, residência de verão do papa.
Certamente, essa cidade, que fica a aproximadamente 25 quilômetros de Roma, iria gostar da ideia, visto que tem sofrido com um declínio no turismo porque Francisco não a visita.
Outros sugeriram que Bento retornasse para a Alemanha, mas esta ideia levanta dúvidas sobre a segurança. Ninguém quer um ex-papa assassinado ou sequestrado sob sua jurisdição. Seria o Vaticano ou o governo alemão quem daria a proteção? Há também implicações legais ao deixar o território vaticano. Dado que Bento não seria mais um soberano, estaria ele sujeito a intimações, depoimentos ou extradição em casos de abuso sexual?
Tem também o perigo de que um lugar fora do Vaticano se torne um local de peregrinação para os opositores do atual papa. O que não seria bom.
Dadas estas complexidades, o melhor seria deixar a residência do papa aposentado para que seja negociado entre o novo pontífice e ele. O novo papa, como o superior religioso do papa aposentado, teria a palavra final.
A quinta regra é sobre se o papa aposentado pode falar sobre assuntos da Igreja.
As atuais circunstâncias são um tanto irônicas, visto que o Cardeal Ratzinger, como chefe do dicastério doutrinal do Vaticano, ficou conhecido por silenciar teólogos dos quais discordava. É também irônico ouvir acadêmicos progressistas, que prezam a liberdade de expressão, queixarem-se quando Bento fala ou escreve.
Como proponente de um debate aberto e livre na Igreja, não posso, em princípio, dizer que os papas aposentados deveriam ficar em silêncio. Acho que devemos confiar na prudência que eles têm e no respeito pelo ofício do papado. Na verdade, não acho que exista alguma maneira de silenciar um papa que venha a renunciar, especialmente um papa como Bento, quem passou a maior parte de sua vida como teólogo e professor.
Se as primeiras três sugestões dadas acima fossem seguidas, qualquer coisa que um papa aposentado dissesse ou escrevesse seria menos ameaçador, porque tanto legal como simbolicamente só haveria um papa na Igreja Católica.
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Dois papas é demais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU