12 Setembro 2019
Nicolas Senèze, correspondente do jornal La Croix, em Roma, é autor do livro “Como os Estados Unidos querem mudar o papa” (em tradução livre) publicado pela Bayard Éditions em setembro de 2019.
O terceiro capítulo detalha as diferentes forças conservadoras que uniram esforços contra o papa nos EUA, publicado por La Croix International, 15-08-2019. A tradução é de Isaque Gomes Correia.
Os dois primeiros capítulos são "O homem do escândalo" e "O acusador".
Autor: Nicolas Senèze
Título original: Comment l’Amérique veut changer de pape
Editora: Bayard Éditions, 276 p.
Ano: 2019
Desde as origens dos Estados Unidos, os católicos tiveram dificuldade de encontrar o seu espaço na sociedade e nas instituições marcadas grandemente pelo protestantismo. Pois era realmente uma sociedade cristã “perfeita” que os primeiros colonos chegados da Inglaterra pretendiam estabelecer nestas novas americanas, onde o novo “povo escolhido” tinha o sentimento de estar investido de uma missão divina. Embora dissidentes da Inglaterra elisabetana, eles concebiam este projeto a partir de uma lógica claramente protestante e do qual os católicos – os “papistas” – estavam excluídos.
No momento da Declaração de Independência, os Pais Fundadores mais seculares dos Estados Unidos já haviam proclamado a liberdade religiosa, mas uma desconfiança permaneceu junto à minoria católica, muito embora muitos de seus membros haviam prometido combater contra os insurgentes.
Cientes das dificuldades de inserção em um sistema político e social profundamente marcado pela lógica protestante, os fundadores do catolicismo americanos tentaram se adaptar propondo, de início, uma organização aceitável pela maioria protestante.
No outono de 1784, o ex-jesuíta John Carroll, superior da missão católica para os 13 estados da América, escreveu aos padres de Maryland advertindo-os contra qualquer dependência excessiva de poderes extranacionais, em particular a Congregação para a Evangelização dos Povos, em Roma.
“Considero os poderes da Congregação não somente como impróprios, mas perigosos aqui”, dizia ele. “O ressentimento mostrado pelos nossos governos diante da interferência de qualquer jurisdição estrangeira é tal que não podemos esperar e, a meu ver, não devemos desejar-lhes que tolerem mais daquilo que é, sendo puramente espiritual, essencial à nossa religião, a saber, o reconhecimento da supremacia espiritual do papa e da Santa Sé como o centro da unidade eclesiástica” [1].
Carroll pretendia, portanto, estabelecer uma verdadeira “Igreja Nacional” nos EUA, certamente em comunhão com Roma, mas independente nos assuntos internos, a fim de implementar “esta liberdade eclesiástica que o espírito dos tempos e do nosso povo requer”.
Ele veio a ser o primeiro bispo de Baltimore em 1789 e impôs uma verdadeira americanização da Igreja, em particular com as missas em língua vernácula e uma participação ativa dos leigos na vida paroquial através dos “trustees”, leigos eleitos pelos fiéis, no modelo congregacional protestante, para gerir os assuntos temporais da comunidade paroquial.
Durante todo o século XIX, no entanto, o papado tentará distanciar os católicos americanos da igreja protestante: a liturgia latina foi restaurada e, embora Carroll tenha mantido o controle sobre as nomeações episcopais até a sua morte, elas agora eram decididas em Roma. Em 1822, Pio VII também reforçaria as prerrogativas dos bispos diante dos trustees que pretendiam participar na nomeação dos padres.
Esta recuperação por parte de Roma, promulgada pelo Conselho Provincial de Baltimore em 1829, que pôs fim ao sistema dos trustees, não bastou para inquietar a maioria protestante, que repreendia os católicos pela dependência a Roma. Assim, em 1842, criou-se a Associação Protestante Americana e o seu estatuto colocou em dúvida uma doutrina católica considerada ameaçadora às liberdades religiosas e civis nos Estados Unidos.
Aqui, as apostas são altas à medida que a imigração católica aumenta ao ponto de o catolicismo se tornar a primeira denominação religiosa do país em 1850. Assim, para combater o discurso protestante os bispos se esforçaram para excluir a autoridade papal na esfera temporal e insistiram na sua limitação às coisas espirituais. Era um exercício difícil na medida em que os papas constantemente reafirmavam a união do trono e do altar.
Quando Pio IX publica o Syllabus em 1864, listando 80 erros modernos condenados pelo magistério da Igreja – incluindo, por exemplo, o de que dizer que “A Igreja deve estar separada do Estado e o Estado, da Igreja” –, o arcebispo de Baltimore, Dom Martin Spalding, escreve uma carta pastoral em que explica que o papa condena sobretudo “os radicais europeus”, sem se referir ao sistema americano.
No final do século XIX, eram os próprios bispos americanos que estiveram na linha de frente para defender a compatibilidade dos princípios liberais americanos com o catolicismo, até mesmo tornando-o um modelo para toda a Igreja, às vezes em clara contradição com o novo ensino social desenvolvido pelos papas da época.
Em 1895, no entanto, embora reconhecendo na encíclica Longinqua Oceani a parte dedicada aos “costumes da bem-ordenada República no desenvolvimento do catolicismo nos Estados Unidos”, Leão XIII também afirmará que “seria verdadeiramente errôneo tirar a conclusão de que o modelo mais desejável de estatuto eclesiástico deve ser buscado na América. Se for este o desejo, no nível universal seria legal e oportuno o Estado e a Igreja serem, como na América, separados e divorciados” [2].
Uma condenação do “americanismo” foi reiterada mais firmemente em 1899, forçando os bispos dos EUA a se submeterem a ele. “Depois de tentar, em vão, promover a compatibilidade do catolicismo e da democracia, os americanos entram em um meio século de hibernação teológica”, resume Camille Froidevaux, especialista em catolicismo americano [3].
Uma outra consequência da condenação romana a respeito do americanismo foi um verdadeiro recuo nas instituições comunitárias, notadamente a ampla rede de escolas, orfanatos, hospitais e centros de bem-estar sociais. “A prioridade dos líderes católicos foi manter a sobrevivência dos fiéis e sua integridade religiosa”, explica Margaret O’Brien Steinfels [4]. “Os católicos geralmente se engajavam muito na sociedade, mas em benefício da própria comunidade”.
Se os católicos americanos não podem expressar abertamente o seu consentimento aos valores e princípios dos EUA, então a sua integração falará por eles. “Os católicos assimilaram, estudaram, enriqueceram e ocuparam cargos prestigiados”, escreve Lisa Sowle Cahill [5].
Foi somente após o final da Segunda Guerra Mundial que uma figura como o jesuíta John Courtney Murray pôde desenvolver, no nível teológico, a visão americanizante de uma aceitação da pluralidade religiosa. Ele foi uma das principais inspirações por trás da declaração Dignitatis Humanae, do Concílio Vaticano II, sobre liberdade religiosa. Essa nova abordagem permitia que os católicos tivessem uma participação mais nítida na vida política americana, mesmo que a suspeita dos protestantes em relação a eles levasse um tempo para desaparecer.
Lembremos o discurso do candidato democrata John Fitzgerald Kennedy para se justificar em 12-09-1960, em Houston: “Eu Acredito numa América onde a separação da Igreja e do Estado é absoluta (...) onde funcionário público algum busca ou aceita instruções do papa”, declarou. “Ao contrário do que alguns escrevem, não sou o candidato presidencial católico, sou o candidato democrata que acontece de ser católico. Não falo pela minha igreja em assuntos públicos, e a minha igreja não fala por mim”.
Esta breve história do catolicismo americano mostra como ele sempre esteve permeável às influências do protestantismo. A partir da década de 1970, no entanto, a versão evangélica do protestantismo substituiu gradualmente o protestantismo progressista. O neoliberalismo triunfante da década de 1980 veio acompanhado de uma revolução conservadora que desafiou as ideias progressistas do protestantismo dominante.
O catolicismo é poupado por essa mudança: em 1986, os bispos americanos criticam duramente a política econômica de Ronald Reagan; agora, as figuras trabalham para reconciliar o capitalismo e a doutrina social católica. Assim como os bispos americanos do século XIX tentaram promover o sistema político americano como a referência máxima para o catolicismo, também o filósofo Michael Novak tentou fazer do capitalismo ao estilo americano o modelo de liberdade econômica defendido pela Igreja. É neste sentido que ele tentará compreender a encíclica Centesimus Annus, de João Paulo II, apesar das reservas bastante claras que o papa polonês expressou sobre o liberalismo.
Esta aproximação dos católicos americanos com a doutrina econômica dominante no país, assim como a promoção que fazem dos valores da família, revigorados com João Paulo II, ajudou a reconciliá-los com os protestantes evangélicos. Os elogios dados pelas lideranças americanas católicas ao famoso pregador Billy Graham por ocasião de sua morte em fevereiro de 2018 testemunham desta evolução: embora inicialmente um forte crítico do catolicismo, o televangelista evoluiu especialmente sob a influência de João Paulo II, com quem estabeleceu uma calorosa relação.
Depois de sua eleição, o papa polonês também promoveu um reavivamento do catolicismo americano, que ele temia, precisamente, como sendo muito permeável às opiniões do protestantismo progressista, particularmente em questões morais. As nomeações feitas ao episcopado americano promoviam homens que se preocupavam menos com temas sociais e mais com assuntos do tipo aborto e ética sexual.
Uma das principais figuras desta retomada é o Cardeal Bernard Law, arcebispo de Boston de 1984 a 2002, após a revelação do escândalo de pedofilia na Igreja americana. Ao chegar em Boston, o então bispo Bernard Law foi calorosamente recebido: descendente de irlandeses, o seu perfil contrastava com o de seu antecessor, Dom Humberto Sousa Medeiros, imigrante dos Açores, que nunca se integrou ao catolicismo de Boston, profundamente irlandês.
Mas se o passado de Law como um defensor dos direitos civis é bem apreciado, a sua postura extremamente conservadora rapidamente afastará parte de seus seguidores. Vice-governador de Massachusetts, filho de Tip O’Neill, presidente da Câmara dos Representantes de 1977 a 1987, Thomas O’Neill disse aos jornalistas do jornal Boston Globe: “A intolerância de Law contra as visões progressistas de muitos católicos de Boston irritou não só uma geração, mas também a de seu pai”.
“O cardeal chegou e nunca entendeu a cidade, e esta incapacidade de entendê-la finalmente o isolou. É uma cidade que leva a sério o tribalismo e o seu catolicismo, mas que abre os braços aos desfavorecidos e àqueles que perderam tudo. E é ofensivo dizer, nesta cidade, que somos, de certa forma, menos católicoS porque não concordamos com a posição da Igreja sobre o aborto ou a contracepção. O Cardeal Law chegou e julgou as pessoas e os políticos a partir de um único tema: o aborto. Era quase como se o cardeal tivesse vindo para dizer: ‘Boston, você chegou até aqui, mas agora tem um novo papa, tem um novo cardeal, tem um novo conservadorismo, e somos nós. Você é progressista demais, e isso vai mudar’” [6].
Ao mesmo tempo, os bispos americanos esforçam-se para assumir a importante rede de instituições comunitárias que forjaram o catolicismo americano. A Igreja é então “uma instituição que perde apenas ao Estado federal, quando se pensa no tamanho dos orçamentos geridos pelas paróquias e no enorme aparato de escolas, universidades, hospitais e trabalhos sociais, com a herança patrimonial anexada a elas, em um país que não viveu nenhuma nacionalização das propriedades pertencentes às igrejas”, escreveu Dominique Decherf, autor especializado em temas religiosos [7].
Os orçamentos são enormes: US$ 7.6 bilhões para as paróquias, 10 bilhões para as escolas primárias e secundárias, 2.5 bilhões para programas sociais, aos quais são acrescidos enormes universidades e hospitais. No começo dos anos 2000, este vasto conjunto é ainda amplamente administrado por padres, correndo o risco de transformá-los em homens de negócios mais preocupados com as suas contabilidades anuais do que com a salvação das almas.
No início dos anos 2000, a explosão em plena luz do dia dos casos de pedofilia na Igreja alterou profundamente esta situação, pondo gradualmente os padres e bispos sob o controle dos leigos. De fato, nos anos de ocultação dos crimes de pedofilia, as dioceses começaram a se colocar, sem saber, nas mãos de advogados leigos, que negociavam as indenizações pagas às vítimas. A investigação, realizada pelo Boston Globe e resumida no filme Spotlight, de Tom McCarthy, em 2015, descreve essa “aliança profana” entre as lideranças eclesiais e advogados.
“Realmente, todos os que se voltaram à Igreja para denunciar atos de conduta sexual clerical imprópria receberam indenizações antes de entrarem com processos judiciais, acordos que não deixavam registros públicos dos crimes cometidos por padres abusadores. Os acordos de confidencialidade assinados pelas vítimas diziam que a Igreja poderia retomar a indenização paga se os detalhes dos abusos fossem divulgados, dando proteção adicional aos sacerdotes culpados. No fim, a arquidiocese conseguia esconder os crimes cometidos pelos padres. Mais que isso: as vítimas ficavam envergonhadas quando os advogados recebiam os honorários – geralmente um terço da indenização” [8].
Ao desacreditar a credibilidade da hierarquia católica, a revelação dos abusos sexuais pôs fim à sua onipotência. Em breve, os bispos foram forçados a se cercar de leigos para administrar a crise. Em Boston, o Cardeal Bernard Law reúne uma comissão comparada pelo Boston Globe a um “quem é quem” entre a elite católica da cidade: políticos, como o vice-governador Thomas O’Neill, os reitores da Universidade de Massachusetts e Boston College, a equipe de baseball Red Sox, banqueiros e advogados.
O primeiro encontro do grupo deu errado: Law não aceita que William Bulger, ex-presidente do senado estadual, o contradiga nem que os outros considerem uma renúncia de sua parte. “Um a um, os católicos influentes que alertavam o cardeal de que ele não respondera à crise com energia suficiente se afastaram”, diz o Boston Globe. O jornal, em seu livro investigativo, explica que “embora alguns dos católicos mais ricos e influentes não abandonaram Law, muitos o fizeram”.
Chegou-se ao ponto de que a festa anual nos jardins arquidiocesanos, onde mais de US$ 1.4 milhão era arrecadado anualmente para obras sociais, precisou ser cancelada, já que importantes doadores anunciaram que não fariam doações se o cardeal estivesse presente [9].
Assim, é prejudicando as finanças da Igreja que os católicos leigos colocam de joelhos uma hierarquia americana agora sob sua tutela. “Foi uma das principais lições da crise de 2002, com a criação de um conselho nacional e de conselhos diocesanos e regionais para supervisionar a implementação das medidas decididas pela Conferência Episcopal sobre os casos de abuso de menores”, continua Decherf. “É difícil imaginar, na França, um governador (o do estado do Colorado ainda ativo na época de sua nomeação), equivalente a um presidente de conselho regional, chefiar um órgão como esse, com juízes participando, ou o número 3 do FBI deixar o seu cargo para aceitar um posto permanente de chefia no num departamento responsável por estes assuntos com o presidente da Conferência Episcopal” [10].
De forma mais ampla, é uma boa parte da gestão administrativa da Igreja que passa sob a responsabilidade de uma versão renovada das frustrações do passado, inclusive nas dioceses, onde a gestão direta dos bispos aos poucos será acompanhada e controlada por conselhos de direção formados por lideranças leigas.
Na segunda metade da década de 2000, leigos ricos e influentes tomaram o poder em uma igreja americana e deram-lhe doações generosas, o exemplo mais famoso sendo o dos Cavaleiros de Colombo.
Um meio-caminho entre o Rotary e uma maçonaria católica, esta instituição foi criada em 1988, em um momento de afirmação da dimensão comunitária católica, para fornecer segurança às mulheres e crianças pobres. Com dois milhões de membros atualmente, ainda oferecendo seguros de vida, os Cavaleiros de Colombo lidariam com US$ 100 bilhões, o que rende anualmente cerca de US$ 2 bilhões.
Este montante é o suficiente para fazer doações generosas a instituições cristãs nos EUA e no mundo todo. Uma pesquisa de 2017 publicada pela revista National Catholic Reporter destaca que, embora uma parte significativa destas doações realmente vá para a caridade, a Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos e várias dioceses estão também em dívida com os Cavaleiros de Colombo, assim como o Vaticano, em que o Supremo Cavaleiro, Carl Anderson, ex-assessor da Casa Branca para o governo de Ronald Reagan, é membro de várias organizações [11].
O National Catholic Reporter mostra também que os Cavaleiros financiam muitas obras realizadas por elementos ultraconservadores, em sintonia com a mudança muito mais severa feita pela elite católica americana no final da década de 2000, especialmente em resposta à política de Barack Obama.
No centro da luta está o ObamaCare, reforma que obrigava os empregadores a financiar uma proteção social aos funcionários, que incluía um reembolso financeiro para uso de métodos contraceptivos e o aborto. Para os católicos americanos, este financiamento de atos contrários a seus princípios contradizia diretamente a liberdade de consciência deles: como veremos, tal financiamento será a base da luta que parte do catolicismo americano travará contra os democratas.
Os próprios Cavaleiros participaram ativamente neste sentido, por exemplo financiando a anual Marcha pela Vida e o Fundo Becket para a Liberdade Religiosa, que defende instituições e funcionários católicos que apresentaram objeções à implementação do ObamaCare e que se recusaram a pô-lo em prática.
Além disso, grande parte das ações dos Cavaleiros é destinada aos meios de comunicação. Por ano, eles doariam US$ 350 mil (40% do seu orçamento) ao sítio eletrônico Crux, criado pelo Boston Globe, que posteriormente se separou dele por falta de recursos publicitários. Da mesma forma, 1,5 milhão de dólares foi para o canal conservador Eternal World Television Network – EWTN, centro da rede de comunicação que inclui a Catholic News Agency, agência noticiosa on-line que opera em inglês, espanhol, português e italiano, e o semanário National Catholic Register, um dos primeiros sítios a publicar o depoimento de Dom Carlo Maria Viganò. A propósito, em entrevista ao New York Times, Timothy Busch, um dos diretores da EWTN, disse, antes de se retratar de seus comentários, que havia sido consultado ainda antes da publicação dos ataques feitos pelo ex-núncio apostólico.
Este advogado e empresário do ramo imobiliário especializado em complexos de luxo é uma das figuras mais eminentes da nova geração de leigos ricos que, hoje, constituem o núcleo discreto principal do catolicismo americano. “Timothy Busch é um homem rico e de grandes ambições”, diz o jornalista Tom Roberts, segundo o qual Busch defende um “catolicismo desinibido que se expressa em jantares de gala com vinhos e charutos, coquetéis para católicos tradicionais escolhidos a dedo, missas latinas para aqueles que desejam, seções do ‘Rosário Patriótico’ com leituras de George Washington e Robert E. Lee, e uma pausa para uma partida de golfe” [12].
Busch é também o fundador do Instituto Napa, que promove uma teologia conservadora e uma visão bastante libertariana de economia. “O evangelismo de ponta do Instituto Napa acontece em lugares como o resort e spa Meritage, em Busch, no Vale de Napa, na Califórnia, e em outros lugares de prestígio como o Trump International Hotel, em Washington”, diz Roberts. “Seus eventos nunca acontecem sem a presença de alguns cardeais e bispos (...) dando credibilidade e legitimidade aos debates”.
O instituto inclusive mantinha contratado Dom John Nienstedt, da Arquidiocese de Saint Paul e Minneapolis, como consultor ainda em 2018, apesar de seu desligamento do cargo de arcebispo por acobertamento de casos de abusos sexuais.
Tim Busch é ainda o fundador da Escola de Administração Busch (Busch School of Business), da Universidade Católica da América, que também promove um liberalismo econômico radical. O rico empresário não hesita em aplicar a sua visão empresarial à esfera eclesial. Em março de 2017, durante um congresso na cripta da Basílica da Imaculada Conceição, em Washington, ele enfatizou que “a evangelização do nosso país é obra de fundações privadas e ONGs católicas, como o Instituto Napa e o Legatus” [13].
Esta última entidade é um clube de empreendedores católicos que querem ser “embaixadores de Cristo nos mercados”, disse ele. Reservada a líderes empresariais com movimentações de, pelo menos, 5 milhões de dólares e uma contribuição anual mínima de 1,5 milhão, esta vasta rede foi cofundada por Tom Monaghan, criador da Domino’s Pizza.
Tendo vendido a maioria das ações da empresa em 1998, desde então Monaghan tem se dedicado a trabalhos fundados sob uma identidade católica, como a Universidade Ave Maria e a cidade construída em torno dela, que é concebida como uma verdadeira cidadela católica ao sul da Flórida, onde o aborto e a contracepção são proibidos e os homossexuais são vistos com suspeita.
Também membro da Legatus, Frank Hanna é um dos mais importantes filantropos católicos americanos, que abre com frequência o seu talão de cheques para o Fundo Becket, o Instituto Napa, a EWTN e o Instituto Acton, centro de pesquisa “dedicado aos princípios da liberdade religiosa, de um governo limitado, de livres mercados e da paz” que concede um prêmio anual chamado Milton Friedman Prize, em homenagem ao economista ultraliberal americano vencedor do Prêmio Nobel de economia em 1996. Hanna é doador generoso para o Centro de Ética e Políticas Públicas, criado pelo biógrafo de João Paulo II e extremamente conservador George Weigel, e para a Sociedade Federalista.
Este lobby conservador poderoso, que reúne 70 mil advogados por todo os EUA, já teve muita influência nas presidências de George Bush pai e filho, trabalhando com sucesso na nomeação do atual presidente da Suprema Corte, John Roberts, e dos juízes associados desta corte Samuel Alito e Clarence Thomas.
Sob o governo de Donald Trump, a Sociedade Federalista também participou na nomeação do novo juiz da Suprema Corte Neil Gorsuch. Por muitos anos, este lobby tem trabalhado no recrutamento de jovens e talentosos estudantes de direito que se destacam por uma postura conservadora, pondo-os em contato com juízes do alto escalão ou em grandes escritórios de advocacia: hoje, ela é uma vasta rede cujos membros ajudam uns aos outros na obtenção de emprego, incluindo na Suprema Corte, onde cinco juízes sucessivos se beneficiaram por participarem dela.
“Todo advogado conservador é membro da Sociedade Federalista”, resume Carrie Severino, principal assessora do Judicial Crisis Network, grupo jurídico conservador de laços estreitos com Leonard Leo, vice-presidente da Sociedade Federalista [14].
Depois de ter aprovado pessoalmente uma série de nomeações jurídicas federais desde o começo do mandato de Trump, Leo anunciou em fevereiro de 2018 que deixaria temporariamente a Sociedade Federalista para assessorar o presidente na nomeação do sucessor do juiz Anthony Kennedy, após o anúncio de que este iria se aposentar.
De fato, dos 25 candidatos indicados para a Casa Branca (e a maioria deles apontados por Leo), 24 são membros da Sociedade Federalista, que, após a confirmação de Brett Kavanaugh em outubro de 2018, estará diretamente envolvida na nomeação de quatro dos nove membros da Suprema Corte.
“Estamos em um momento no qual quase toda a Suprema Corte tem algo a ver com Leonard Leo”, afirma Severino. “Ninguém conhece o mundo jurídico conservador melhor do que ele”. Carl Tobias, professor de direito da Universidade de Richmond, no estado da Virginia, e especialista em nomeações jurídicas, diz: “Ele tem mais influência do que qualquer outra pessoa, e sei que o presidente George W. Bush é nele plenamente durante os seus dois mandatos. Mas nada se compara com o ponto a que chegamos com o atual governo”.
Isso mostra que os círculos conservadores – evangélicos e católicos – estão em festa sob a presidência de Donald Trump. Durante a campanha eleitoral, o candidato republicano não escondeu as promessas feitas: a nomeação de um vice-presidente a partir de suas fileiras e de juízes pró-vida para a Suprema Corte, a proteção da liberdade religiosa, o fim do financiamento federal para o planejamento familiar e restauração da Política da Cidade do México instituída por Ronald Reagan, que proibia os EUA de financiar políticas abortivas ao redor do mundo.
Além do planejamento familiar, cujo financiamento um Congresso dividido não queria reduzir, Donald Trump precisou manter a palavra: “Fiz um ótimo trabalho. Eles podem se orgulhar de mim”, disse em entrevista coletiva no dia 07-09-2018, respondendo a uma pergunta da EWTN após as eleições intercalares.
Um mês antes, em um congresso organizado pelo Instituto Napa, o seu fundador Busch deu as boas-vindas à recente nomeação de Kavanaugh à Suprema Corte, cumprimentando Leonard Leo, vice-presidente da Sociedade Federalista, que estava sentado perto dele.
“Com este novo juiz, conservamos os tribunais pelos próximos 40 anos. E com 51 assentos no Senado, em breve veremos algumas mudanças”, disse ele aos 250 participantes de um simpósio sobre “Reforma na Igreja”.
Organizado após as revelações de abusos sexuais ocorridos na Pensilvânia e, sobretudo, após o testemunho de Viganò, este encontro foi particularmente crítico ao Papa Francisco, a quem os participantes pediam uma mudança de rumo e onde, questionando o “problema da homossexualidade”, Busch chegou ao ponto de denunciar uma vasta e imoral conspiração homossexual no Vaticano.
Mas esta observação de Busch também ignorou soberbamente as acusações de estupro, feitas por uma mulher, contra Kavanaugh, que ameaçava a sua confirmação pelo Senado à Suprema Corte como um “duplo padrão” por parte de alguém que havia se colocado a atacar a corrupção sexual vaticana [15].
Para o historiador da Igreja Massimo Faggioli, a crise de abusos sexuais na Igreja criou, assim, um “vácuo de autoridade” em que católicos ricos tomaram a dianteira, transformando-se, em poucos anos, nos verdadeiros líderes do catolicismo americano:
“Não é um vácuo de poder, que ainda está nas mãos habituais (pelo menos por enquanto), mas de autoridade, que diz respeito a confiança e credibilidade. A natureza abomina o vácuo, e esse vácuo está sendo preenchido por aqueles que têm um talão de cheques aberto e uma agenda ideológica muito clara. O dinheiro está falando em alto e bom som. Os católicos com abundantes recursos financeiros e fortes conexões com as lideranças do episcopado estadunidense estão tentando preencher o vazio com uma agenda que oficialmente diz respeito à reforma. Mas, nos fatos, está corrompendo a Igreja ainda mais, na verdade, embora de um modo diferente. (…)”
“Há muito a dizer sobre como as lideranças da Igreja Católica se tornaram insensíveis à ameaça que o dinheiro representa para o caráter cristão da comunhão dos fiéis. Essa dessensibilização é uma das consequências do abandono de uma teologia que leva a sério o que Karl Marx chamou de ‘relações de produção’ e, ao contrário, adotou a ‘cultura’ e a ‘identidade’ como uma oposição ao materialismo”.
“Essa teologia pós-materialista da cultura, focada em ‘valores’, acabou servindo aos interesses daqueles que controlam as ‘relações de produção’ – a influente rede de ricos filantropos católicos de direita, que recentemente construiu fortes laços com os bispos conservadores nos Estados Unidos” [16].
Segundo o historiador, essa evolução seria comparável à crise pela qual passou a Igreja por volta do ano 1000, quando poderosos nobres territoriais tomaram o controle da instituição e seus recursos.
Eis a crise que levou à Reforma Gregoriana. Para Faggioli, é a independência da Igreja Católica contra os poderes do dinheiro que está em jogo nos Estados Unidos hoje. “O dinheiro é o combustível que dá a algumas vozes aquilo que se pode considerar um fardo excessivo”, explica Tom Roberts ao citar o exemplo de Busch, que “busca influenciar as instituições religiosas e moldar grandemente a narrativa católica ganhando influência nas universidades e nos meios de comunicação”. É contra este poder do dinheiro que o Papa Francisco luta.
Notas
[1] Letter to Maryland clerics, 1787, cidado em Jay Dolan, The American Catholic Experience. A History from Colonial Times to the Present. Nova York: Doubleday, 1985.
[2] Leo XIII, Longinqua oceani, 6 jan. 1895, § 6.
[3] Camille Froidevaux, “L’Église américaine ou l’échec d’un catholicisme “dans le siècle” (1780-1899),” Revue française de science politique, vol. 49, n. 1, 1999, p. 79-102.
[4] Quoted in Lisa Sowle Cahill, “L’éthique communautarienne et le catholicisme américain”, Recherches de science religieuse, vol. 95, n. 1, 2007, p. 21-40.
[5] Ibid.
[6] The Boston Globe, Betrayal. The Crisis in the Catholic Church, Boston: Little, Brown and Company, 2002, p. 149-150.
[7] Dominique Decherf, “The Catholic Church in the United States. A voiceless giant?” Studies, vol. 399, n. 12, 2003, p. 633-642.
[8] The Boston Globe, op. cit. at 47-48.
[9] Ibid. at 156-157.
[10] Dominique Decherf, op. cit.
[11] Tom Roberts, “Knights of Columbus’ Financial Forms Show Wealth, Influence”, National Catholic Reporter, 15 maio 2017.
[12] Tom Roberts, “The Rise of the Catholic Right”, Sojourners, març. 2019.
[13] Tom Roberts, “Conservative Donors Aim to Shape Catholic Narrative for the Wider Culture”, National Catholic Reporter, 21 dec. 2017.
[14] Jennifer Bendery, “"Trump Isn’t Remaking The Court. Leonard Leo Is”, The Huffington Post, 7 fev. 2018.
[15] Heidi Schlumpf, “At ‘Authentic Reform’, Conservative Catholics Rally to ‘Fix’ Church Failures”, National Catholic Reporter, 5 out. 2018.
[16] Massimo Faggioli, “The New ‘Two Orders of Christians’”, La Croix International, 8 out. 2018.
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‘Como a América quis mudar o papa.’ Capítulo 3: A América contra o papa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU