30 Junho 2016
“A atual crise na União Europeia expõe uma crise teológica dentro do catolicismo, que não muito tempo atrás - entre a Segunda Guerra Mundial e o Vaticano II - aceitou e contribuiu significativamente para a legitimidade tanto do Estado-nação quanto das instituições internacionais / globais. O internacionalismo socialista-comunista está morto, mas não se sabe como o internacionalismo católico será capaz de desafiar o globalismo do paradigma tecnocrático”, escreve Massimo Faggioli , historiador italiano, professor da Villanova University e fundador do Institute for Catholicism and Citizenship, da University of St. Thomas, nos EUA, em artigo publicado por Commonweal, 29-06-2016. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Eis o artigo.
A semana passada foi um momento interessante para estar na Irlanda e participar da conferência "The Role of the Church in a Pluralist Society: Good Riddance or Good Influence?" (em português, 'O papel da Igreja em uma sociedade plural: livrar-se dela ou influenciá-la?'), do Instituto Loyola, no Trinity College. O Papa Francisco estava em uma viagem histórica à Armênia , o Concílio Pan-ortodoxo estava em andamento em Creta e o referendo Brexit estava sendo realizado no Reino Unido. (E para completar, o vice-presidente Joseph Biden apareceu no último dia da conferência, embora tenha sido apenas uma coincidência: ele estava no Trinity para receber um grau honorário.)
A conferência teve apelo internacional e contou com palestrantes de diferentes países. Entre os presentes, estavam Peter e Margaret O'Brien Steinfels, do Commonweal. A localização também foi notável, pois a Irlanda fica geograficamente entre a Europa continental e a América do Norte, e está passando por uma transição de um país solidamente e orgulhosamente católico para um país em que o papel da religião e da Igreja mudou, e não só por causa do escândalo de abuso sexual. Saí da conferência com três impressões distintas do debate atual sobre o papel da Igreja Católica na sociedade moderna.
A primeira, a respeito da divisão entre o catolicismo europeu e o norte-americano em relação às percepções sobre a modernidade laica. Muitos norte-americanos, por exemplo, consideram problemática a aceitação não-problemática da laicidade no catolicismo Europeu desde meados do século XX.
Mas a Europa é mais laica do que os Estados Unidos por alguma razão. Os católicos europeus consideram a laicidade e especialmente o Estado laico uma garantia contra a manipulação da religião para fins políticos e da Igreja pelo Estado - preocupações autênticas após períodos de fascismo e nazismo.
Nos Estados Unidos, entretanto, uma espécie de novo ‘agostinianismo’ político criou raízes, com a ortodoxia radical e a recente mudança na recepção do Vaticano II desfazendo a reformulação da relação entre o temporal e o sobrenatural que o Concílio, juntamente com Gaudium et spes, havia introduzido.
A segunda impressão diz respeito às consequências eclesiológicas de duas visões diferentes da modernidade.
Alguns palestraram em favor da possibilidade da Igreja de se engajar construtivamente com a cultura laica em uma sociedade plural. Hans Joas apresentou uma análise do pluralismo (de acordo com Uma era Secular, de Charles Taylor) em que a Igreja tem de trabalhar em conjunto com e aprender o significado do "pluralismo genuíno", no sentido de levar os outros a sério. (No início de junho, Joas deu uma longa entrevista ao Die Zeit, o noticiário semanal cultural mais importante da Alemanha, criticando a generosa política de acolhimento a imigrantes do país e vigorosamente lamentando a impossibilidade de debater honestamente sobre a imigração sem ser acusado de racista ou nacionalista). Patrick Riordan (Heythrop College) também defendeu o envolvimento com a sociedade laica em um trabalho que apresentou uma interpretação da eclesiologia de Agostinho como não necessariamente hostil à "cidade terrena". Da mesma forma, Bryan Hehir - que não pôde ir à conferência, mas cujo trabalho, "Estado e Igreja Mundial: A Narrativa Desde o Concílio Vaticano II", foi um dos melhores - defendeu as ideias de John Courtney Murray e do Vaticano II, e de Gaudium et spes, as quais ele acredita serem válidas até hoje devido ao pluralismo atual.
Mas a contribuição mais impressionante veio do Cardeal Reinhard Marx (Arcebispo de Munique e Freising, presidente da Conferência Episcopal Alemã e membro do Conselho dos nove Cardeais nomeados pelo Papa Francisco em abril de 2013). O Cardeal Marx disse, entre outras coisas, que "não é possível imaginar o futuro da Igreja sem referência à história da liberdade". Ele afirmou que o encontro entre Igreja e laicidade é inevitável: "o Estado deve ser laico. Cristãos do Oriente Médio nos dizem: o futuro é o Estado laico". Ele enfatizou que o debate sobre a liberdade e o pluralismo faz parte do passado: "Neste mundo, o desafio político atual não é a liberdade, mas a identidade e a segurança". A Igreja não pode desistir do esforço de ser uma Igreja pública - "não pode ser como um castelo olhando para o que está acontecendo no mundo" ;.
A terceira impressão está relacionada com o Brexit e diz respeito à trajetória histórico-teológica do catolicismo. A simultaneidade da conferência de Dublin e do Brexit me fez pensar sobre a estreita relação entre o desenvolvimento da teologia católica (especialmente a eclesiologia) no século XX e o desenvolvimento do catolicismo, de um catolicismo multinacional ao verdadeiramente internacional/ global.
O apoio católico ao projeto europeu após a Segunda Guerra Mundial (a partir de Pio XII, até os políticos mais importantes dos partidos democrata-cristãos que governaram a Europa depois de 1945) foi parte da transição das raízes nacionalistas, românticas da restauração teológica entre meados do século XIX e as décadas de 20 e 30.
No Vaticano II, a teologia católica internacionalizou o que tinha nascido como expressões de movimentos nacionais durante o século anterior (adoção do vernáculo; o novo papel das conferências episcopais nacionais; o sentimento anti-Curia; os movimentos sociais católicos anticapitalistas, antidemocráticos e antiliberais, etc.).
A qualidade internacionalista da Pacem in terris e da Gaudium et spes foi uma virada na doutrina em relação ao Estado e ao Governo na teologia católica. Foi também uma resposta ao mais poderoso internacionalismo da segunda metade do século: o comunismo. No Vaticano II, o catolicismo se tornou um defensor da globalização, que João XXIII havia trazido no discurso de abertura do concílio em 1962: "uma nova ordem das relações humanas".
Agora, tudo depende do tipo de globalização considerado— isto é, que tipo de relação há entre a globalização/modernização da Igreja Católica no Vaticano II e a globalização tecnocrática do capitalismo que veio depois do Concílio Vaticano II. Neste sentido, o Brexit pode ser visto como um subconjunto do debate sobre o Vaticano II e do período pós-Vaticano II, pelo menos entre os católicos.
Não é segredo que os católicos e os bispos católicos da Grã-Bretanha foram profundamente divididos pelo Brexit e que, para muitos católicos conservadores de lá, a oposição à UE e ao Vaticano II tem raízes semelhantes.
Os católicos tradicionalistas que hoje rejeitam a "nova ordem" — em termos de exclusão econômica e social, bem como de domínio do que o Papa Francisco chamou de "paradigma tecnocrático" na Laudato si' — tendem a colocar o Concílio Vaticano II e a União Europeia em uma só categoria de internacionalização e globalização. Eles escolhem uma Igreja tradicional, pré-global e um Estado-nação (embora este retorno ao Estado-nação seja para eles teologicamente não-problemático) em oposição à estrutura maior de um contexto eclesial globalizado e uma união política europeia. É uma oposição a um mundo muito mais complexo, politicamente e teologicamente, e às atitudes modernas e globalizadas em direção à vulnerabilidade da vida, do casamento, da família, da subsidiariedade, da imigração, da guerra e da paz. É uma oposição que recoloca em questão a percepção católica do poder político e, em particular, a percepção da Igreja sobre a soberania do Estado-nação e das instituições supranacionais/internacionais.
O Brexit impactará sobre a forma como o catolicismo europeu participa do projeto europeu. (O que não é tão diferente de como os católicos norte-americanos, em diferentes níveis, com diferentes responsabilidades, podem ou não se envolver com Donald Trump como provável candidato presidencial do Partido Republicano.)
A atual crise na União Europeia expõe uma crise teológica dentro do catolicismo, que não muito tempo atrás - entre a Segunda Guerra Mundial e o Vaticano II - aceitou e contribuiu significativamente para a legitimidade tanto do Estado-nação quanto das instituições internacionais / globais. O internacionalismo socialista-comunista está morto, mas não se sabe como o internacionalismo católico será capaz de desafiar o globalismo do paradigma tecnocrático.
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Existe um lugar para o "Internacionalismo Católico"? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU