14 Junho 2016
Acusar o presidente Obama de se calar sobre as raízes islamistas do massacre na boate gay de Orlando significa, por sua vez, calar sobre as raízes ainda mais profundas dessa violência endêmica. É muito mais complicado renovar a carteira de motorista de um Estado ao outro do que comprar uma arma de guerra. A paralisia sobre a questão das armas não é apenas política, mas também cultural.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University e fundador do Institute for Catholicism and Citizenship, da University of St. Thomas, nos EUA. O artigo foi publicado no sítio L'HuffingtonPost.it, 13-06-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A madrugada trágica de Orlando, na Florida, com os seus 50 mortos, não mudou o já consolidado roteiro da liturgia político-midiática que segue os "mass shootings" nos Estados Unidos: as últimas notícias na televisão, o gotejamento de notícias e comentários nas mídias sociais, o discurso do presidente de uma nação já mitridatizada a esse tipo de veneno, a expressão de condolências por parte de uma classe política que utiliza a oração pelas vítimas como desvio para não enfrentar do ponto de vista legislativo a questão da livre circulação de armas.
É uma liturgia que caiu, depois do massacre de Orlando, justamente no domingo de manhã, que tornava ainda mais insuportável a hipocrisia de um país que não quer dizer a verdade a si mesmo. E não é evidente que ele começará a dizer a verdade a si mesmo apenas porque esse massacre na boate gay bateu todos os recordes.
Os Estados Unidos não querem dizer a si mesmos que têm relação as centenas de milhões (sic) de armas de fogo que circulam sem verdadeiros controles no país; não querem dizer a si mesmos que tem relação o ódio contra gays e lésbicas semeados mais pelas Igrejas do que pelas mesquitas no país; não querem dizer a si mesmos que a raiva expressada pelo eleitorado de Trump levou a um clima de medo de alimentar a xenofobia, a islamofobia e o racismo que o candidato à presidência dos republicanos carrega com orgulho, como o boné vermelho "Make America Great Again".
É um Estados Unidos em grave crise política e civil neste verão pré-eleitoral de 2016; é um país que parece não conseguir contar consigo mesmo, sobre uma questão como a das armas, sobre a qual apenas os estadunidenses podem encontrar uma solução.
Surpreende que o amor pelos Estados Unidos por parte dos neoconservadores italianos e seu desejante medo de uma nova versão da guerra do Islã contra o Ocidente deslumbrem até mesmo aqueles que, dentre eles, conhecem os Estados Unidos. Desagrada ter que polemizar com o jornal Il Foglio, que (como eu já disse em outras ocasiões) entende os Estados Unidos profundos melhor do que outros. Mas acusar o presidente Obama de se calar sobre as raízes islamistas do massacre na boate gay de Orlando significa, por sua vez, calar sobre as raízes ainda mais profundas dessa violência endêmica.
Por um lado, é indubitável que não se pode compreender o ataque contra a boate de Orlando sem considerar o ódio homofóbico (como, ao contrário, fizeram os líderes republicanos). Mas a violência homicida homofóbica nos Estados Unidos não nasce com a presença islâmica no país ou com o risco de infiltração por parte de elementos influenciados pelo Islã radical.
Basta ver as relações entre certos elementos das hierarquias eclesiásticas católicas e os blogueiros católicos homofóbicos nos Estados Unidos (um dos quais, recentemente, admitiu já ter tido um relacionamento homossexual).
Dizer que nenhum católico fez massacres contra gays e lésbicas nos Estados Unidos significa calar sobre o clima de violência verbal e de intimidação criado em torno daqueles que, na Igreja Católica, lutam por uma nova linguagem sobre a questão LGBTQ. Basta perguntar a um jesuíta como James Martin (bombardeado diariamente por "hate messages"), ao jornalista Tony Spence (demitido pelos bispos estadunidenses por ter criticado as leis sobre a liberdade religiosa de claro conteúdo antigay na Carolina do Norte e na Geórgia). Basta ver o tipo acolhida que recebeu, por parte do conservadorismo católico estadunidense, o já famoso "Quem sou eu para julgar?" do Papa Francisco em julho de três anos atrás.
Por outro lado, qualquer estatística sobre a violência com armas de fogo nos Estados Unidos nos últimos dois, cinco, dez, 15 ou 20 anos diz que o problema não é a raiz islamista (ou cristianista) daqueles que usam as armas, mas o fato de que as armas estão disponíveis e são adquiríveis de mil maneiras diferentes por qualquer pessoa.
A questão não nasce com a al-Qaeda, com o 11 de setembro de 2001 ou com o ISIS, assim como não nasceu com o Ku Klux Klan. A circulação de armas nos Estados Unidos é um dos pecados originais do projeto nacional dos Estados Unidos, junto com a colonização, que levou à eliminação dos povos "nativos" e à escravização dos africanos na América.
A interpretação "originalista" da Segunda Emenda da Constituição é uma folha de figo jurídica que não esconde a simbologia política do mito do cidadão armado.
Não é de se admirar que Obama tenha se tornado inerte diante da questão: eleger um presidente negro era, em si mesmo, um atentado ao monopólio do monopólio dos Estados Unidos brancos, construído também por aquela tradição de cidadania armada. Os mesmos que agora arrancam os cabelos por causa da inércia de Obama diante dos massacres são os mesmos que, por oito anos (ainda antes de ele ser eleito presidente), montaram a campanha de deslegitimação da sua personalidade política, também com base em "Obama vai tirar as armas de vocês".
Nos últimos anos, alguns Estados liberaram a circulação de armas nos exercícios públicos e até mesmo nos campi universitários; em algumas universidades, são realizados para os professores seminários sobre como lidar com as situações perigosas e sobre como evitar que se desencadeie a violência em estudantes que poderiam estar armados.
É muito mais complicado renovar a carteira de motorista de um Estado ao outro (como está acontecendo comigo nestes dias) do que comprar uma arma de guerra. A paralisia sobre a questão das armas não é apenas política, mas também cultural: entre os católicos estadunidenses, parece ainda impossível concordar entre católicos democratas e republicanos sobre o fato de que a questão do controle de armas é uma questão pró-vida não menos séria do que o aborto e a eutanásia.
Eu não sou um admirador acrítico de Barack Obama. Como o kennedismo, o obamismo foi mais uma declaração de estilo do que uma mudança de regime. Para não falar da sua política externa médio-oriental, é preciso dizer que o realismo niebuhriano de Obama não o ajuda quando ele deve gerir a tensão entre poder do Estado e lei religiosa, como lhe aconteceu no início da polêmica com os bispos estadunidenses sobre a lei de reforma da saúde.
Se há uma crítica a se fazer contra Obama, é o seu atraso para enfrentar a questão: apenas para dar um exemplo, no longo discurso pelo massacre de Tucson, em janeiro de 2011 (que atingiu a parlamentar Gabrielle Giffords), há apenas uma breve e tímida passagem sobre o controle de armas.
Acusá-lo de calar sobre a raiz islamista do massacre de Orlando significa ignorar não só a causa primeira da violência nos Estados Unidos, mas também ignorar as recentes tentativas de Obama de superar a inércia da classe política sobre o controle de armas, invocando justamente o risco de indivíduos radicalizados em solo estadunidense.
É inverossímil acusar Obama de ser "soft on radical Islam" – de ser suave com o islamismo radical. A menos que nos chamemos Donald Trump.
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Circulação de armas, um dos pecados originais do projeto nacional dos EUA. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU