13 Setembro 2019
Um mergulho nas diferentes alavancas econômicas em ação para derrubar Francisco com base em pronunciamentos vistos como anticapitalistas.
O texto é de Nicolas Senèze, correspondente do jornal La Croix, em Roma, autor do livro “Como os Estados Unidos querem mudar o papa” (em tradução livre) publicado pela Bayard Éditions em setembro de 2019. O artigo é publicado por La Croix International, 16-08-2019. A tradução é de Isaque Gomes Correa feita a partir da versão inglesa disponível aqui.
Veja os três primeiros capítulos: O homem do escândalo, O acusador e A América contra o papa.
Autor: Nicolas Senèze
Título original: Comment l’Amérique veut changer de pape
Editora: Bayard Éditions, 276 p.
Ano: 2019
Na manhã de quarta-feira, 25-01-2017, Ordem Soberana e Militar Hospitalária de São João de Jerusalém, de Rodes e de Malta anuncia a renúncia de seu grão-mestre, o Fra’ Matthew Festing. No dia anterior, no gabinete do papa, foi o próprio Francisco quem, após uma discussão acalorada com o presidente da Ordem de Malta, exortou-o a assumir as suas responsabilidades e a submeter um pedido de renúncia, o que foi imediatamente aceito. O papa terminava assim com uma crise de dois meses entre o menor Estado do mundo, o Vaticano, e a Ordem de Malta, um Estado sem território, mas sujeito soberano de direito internacional.
Tudo começou no início de dezembro, quando o grão-mestre exigiu a renúncia do barão Albrecht von Boeselager, seu grande chanceler (uma espécie de ministro do Interior e Relações Exteriores), acusado de ser um “católico progressista, infiel aos ensinamentos da Igreja”, como mais tarde disse o alemão a parentes em um e-mail. O grão-mestre critica-o por ter autorizado a distribuição de preservativos em Myanmar no ano de 2005, como parte de uma campanha contra a Aids.
Confrontado com o grão-mestre, Albrecht von Boeselager, aristocrata de uma antiga família da nobreza alemã, que há anos trabalhava no ramo da caridade da Ordem de Malta – na qual ele criou, entre outras coisas, o Serviço de Ajuda Emergencial Internacional –, explicou que o assunto fora resolvido rapidamente e se recusou a renunciar (1).
Presente durante a discussão, o cardeal americano Raymond Burke, representante do papa junto à Ordem e, sobretudo, um dos principais opositores de Francisco além de um dos signatários das dubia sobre Amoris Laetitia, apoiou o grão-mestre. Antes dele, o Fra’ Matthew Festing insiste: se Albrecht von Boeselager precisar renunciar, é por causa da “vontade da Santa Sé”. Alguns dias depois, apesar de uma votação contrária do Conselho Soberano, seu órgão de governo, ele desliga o grande chanceler.
Uma carta enviada imediatamente pelo Cardeal Pietro Parolin ao Fra’ Matthew Festing, no entanto, salienta que o papa nunca quis esse desligamento. “Antes de mais nada, gostaria de lembrá-lo que estas medidas não devem ser atribuídas à vontade do papa ou a suas instruções”, escreveu o secretário de Estado da Santa Sé. “Como lhe disse em minha carta de 12-12-2016”, continua, “com respeito ao uso e à disseminação de métodos e meios contrários ao direito moral, a Sua Santidade pediu diálogo como meio de lidar e resolver possíveis problemas. Mas ele nunca falou em demitir ninguém!”
Parolin, portanto, pede que o desligamento de Albrecht von Boeselager seja suspenso até que a comissão criada pelo papa para estudar o caso emita as suas conclusões – uma comissão cuja competência é imediatamente desafiada pelo grão-mestre. Em pouco tempo, parece que esta crise é só mais uma oportunidade para embaraçar o papa. Dez dias depois que o grão-mestre da Ordem forçou o seu grande chanceler a renunciar, o seu próprio irmão, Georg von Boeselager, foi nomeado para o Conselho de Diretores do Instituto para as Obras de Religião – IOR. Junto de outros dois banqueiros, ele substituiu funcionários do Banco do Vaticano que, defendendo a ideia de se criar um fundo de investimento vaticano em Luxemburgo, ao que o papa se opunha, foram demitidos em maio de 2016.
A nomeação de Georg von Boeselager tinha sido preparada por várias semanas, mas quando o caso da distribuição de preservativos veio à luz, não demorou para muitos sugerirem que o papa definitivamente não sabia como se cercar de pessoas capazes na questão financeira. Isso mesmo que os documentos vazados da comissão preparatória para a reforma econômica e financeira da Cúria, criada por Francisco, estavam ainda na mente de todos, e o Mons. Battista Ricca, nomeado por Francisco como prelado do IOR, isto é, responsável por supervisionar os interesses da Santa Sé dentro do banco, é questionado por sua homossexualidade. Por vários meses, a reforma inteira das finanças vaticanas fica enfraquecida.
Já sob Bento XVI, foi por suas finanças que o Vaticano fora atacado com mais violência. O caso Vatileaks, vazamento de documentos do gabinete do papa, começou logo após o pontífice alemão dar início a uma grande limpeza nas finanças da Santa Sé, em particular as do IOR, onde os escândalos se multiplicaram.
Empresas duvidosas claramente usaram laços pessoais com este ou aquele prelado, mais ou menos ingênuo, para ocultar negócios sujos sob o selo de sigilo bancário do Vaticano. “A investigação da Máfia Capital realizada em Roma aos poucos revela uma rede de relações dúbias entre emissários de grupos ligados ao submundo e prelados menos escrupulosos do que alguns corretores da bolsa de valores”, diz o jornalista Nello Scavo, especialista em máfia. “É um emaranhado de interesses envolvidos: desde cardeais que se prestam a apoiar aparentemente iniciativas beneficentes a padres com chaves de cofres emprestados a padrinhos mafiosos” (2).
Ciente dos problemas, Bento XVI tentou corajosamente pôr fim a estas práticas, seguido por Francisco: de 2013 até o início de 2015, quando duas mil contas do IOR foram encerradas, algumas das quais congeladas e disponibilizadas ao sistema judiciário italiano, enquanto os procedimentos financeiros vaticanos e o centro das operações de transferência monetárias eram completamente revisados. Os controles são agora tais que, se quisermos fraudar o imposto de renda, o Vaticano está longe de ser uma solução invejável. “A reputação da Santa Sé e da Igreja está em risco”, insiste um vaticanista.
Em questões financeiras, o que é posto em dúvida é a capacidade do papa de administrar os fundos confiados a ele pelos fiéis para o governo central da Igreja ou para os pobres. Além disso, desacreditar a administração do Vaticano também semeia dúvidas sobre o discurso mais amplo da Igreja a respeito de questões econômicas e financeiras.
Pois, talvez até mais do que as máfias, é o próprio sistema financeiro que os papas encontraram no caminho. Vemos isso já em 2009 quando, na encíclica Caritas in Veritate, Bento XVI se pergunta sobre os excessos da economia liberal de mercado. “O mercado (…) estimulou antes de mais nada, por parte de países ricos, a busca de áreas para onde deslocar as atividades produtivas a baixo custo”, observa ele, notando que isso “motivou novas formas de competição entre Estados procurando atrair centros produtivos de empresas estrangeiras através de variados instrumentos tais como impostos favoráveis e a desregulamentação do mundo do trabalho. Estes processos implicaram a redução das redes de segurança social em troca de maiores vantagens competitivas no mercado global”, lamenta-se o papa.
Desde o começo, o texto suscita críticas de círculos econômicos e de todos os que fazem campanha para apresentar o capitalismo como o sistema econômico e político mais compatível com a doutrina católica. O autor Michael Novak assim lamenta o texto em que diz encontrar “mais caritas e menos veritas” (5). Pondo em dúvida um “trabalho em progresso que deixa algo a desejar”, ele crê que a encíclica não destaca suficientemente os benefícios do capitalismo para os pobres.
“Os benefícios trazidos aos pobres pela difusão das iniciativas econômicas e dos mercados (para uns, o termo ‘capitalismo’ é demasiado ‘desagradável’) deveria ter recebido mais consideração”, diz ele.
George Weigel, por sua vez, analisa o texto na publicação National Review, destacando em “amarelo dourado” as passagens que considera fazerem parte do pensamento de Bento XVI, e “em vermelho” as passagens introduzidas pelo Pontifício Conselho Justiça e Paz, cujo “pensamento convencional – esquerdista e, de forma alguma, original –” denuncia e que estaria distorcendo o texto papal de Centesimus Annus através do qual, em sua opinião, João Paulo II dera a sua aprovação ao capitalismo (6).
“Não me surpreendem as críticas feitas por vários círculos americanos contra a encíclica de Bento XVI”, respondeu o Cardeal Renato Martino, então presidente do Pontifício Conselho Justiça e Paz, para quem estes ataques “vindos de círculos americanos bem definidos revelam, em última instância, a vontade de fazer o papa dizer o que estes círculos gostariam, esquecendo aquilo que o magistério da Igreja afirma e que não está em conformidade com a posição deles, em particular sobre a globalização, sobre o mercado e sobre a defesa e salvaguarda da criação” (7).
Em 24-10-2011, dois anos após a publicação de Caritas in Veritate e tendo início nesta encíclica, o Pontifício Conselho Justiça e Paz, agora o Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral presidido pelo cardeal ganês Peter Turkson, publicou uma nota pedindo uma reforma do sistema financeiro mundial. Denunciando o “liberalismo sem regras e sem controle”, o documento chega a mencionar a possibilidade, após ampla consulta internacional, de se criar uma autoridade monetária global, recapitalizando os bancos com fundos públicos em troca de um “condicionando o apoio a comportamentos virtuosos e finalizados a desenvolver a economia real”, além da introdução de uma tributação sobre transações financeiras (8).
Tais heresias aos dogmas liberais provocaram imediatamente protestos da comunidade financeira, incluindo economistas católicos que também alertaram contra aquilo que descrevem como “um governo mundial”.
Dez dias após a publicação da nota, uma reunião do alto escalão no gabinete do Cardeal Tarcisio Bertone, secretário de Estado de Bento XVI, decide prontamente guardar o documento, enquanto o L’Osservatore Romano, o jornal do Vaticano, publica um texto de Ettore Gotti Tedeschi, presidente do IOR, analisando a crise mundial, mas sem retomar nenhuma das soluções recomendadas pelo Pontifício Conselho Justiça e Paz (9).
Essa rápida reação do mais alto escalão da hierarquia vaticana, que então alegava desconhecer por completo a publicação da nota do citado conselho pontifício, pode ser facilmente explicada. Além das críticas acadêmicas de figuras como Michael Novak e George Weigel, Caritas in Veritate igualmente provocou outras reações inesperadas. Foi de fato neste momento que começaram os primeiros ataques às finanças do Vaticano e aos vínculos que poderiam existir com círculos mais ou menos suspeitos.
Cinco meses depois da publicação da encíclica, a revista italiana Panorama anuncia que a Unidade de Informação Financeira do Banco da Itália e a polícia financeira investigam transações de lavagem de dinheiro na casa dos 180 milhões de euros realizadas numa agência do banco UniCredit localizada na Via della Conciliazione, em frente à Basílica de São Pedro, com muitos clientes morando no Vaticano, beneficiando-se da extraterritorialidade.
No ano seguinte, os tribunais italianos lançaram uma extensa investigação contra o presidente do IOR, Ettore Gotti Tedeschi, e contra o seu diretor-geral, Paolo Cipriani, por violação das leis de lavagem de dinheiro. Dezenas de milhões de euros do banco são em seguida bloqueados pela Itália, forçando o banco JP Morgan a pedir explicações ao IOR.
Em causa: a intensa atividade, na agência de Milão do banco americano, de uma conta do IOR pela qual passou 1.3 bilhão de euros em transferências dentro de poucos anos. A conta era sempre redefinida todas as noites de forma a não alertar as autoridades responsáveis pela supervisão.
Diante da ameaça de acabar associado como um paraíso fiscal, o Vaticano é obrigado a se submeter a padrões, impulsionados tanto pela comunidade internacional e pelos grandes bancos quanto pela opinião pública, em particular nos países doadores, liderados pelos EUA. No meio da crise financeira não é o momento de o Vaticano desagradar doadores ricos americanos ao questionar a doutrina econômica da qual eles são os defensores.
Francisco, latino-americano, viu em primeira mão os efeitos da crise econômica, especialmente durante a crise que abalou a Argentina de 1998 a 2002. Logicamente, a partir de 2013, o novo papa assume e amplifica o discurso econômico esboçado pelo seu antecessor. Na exortação apostólica Evangelii Gaudium, verdadeiro discurso programático do novo pontificado, ele se opõe diretamente à “teoria do gotejamento”, também conhecida como uma “recaída favorável”.
“Neste contexto, alguns defendem ainda as teorias da ‘recaída favorável’ que pressupõem que todo o crescimento econômico, favorecido pelo livre mercado, consegue por si mesmo produzir maior equidade e inclusão social no mundo. Esta opinião, que nunca foi confirmada pelos fatos, exprime uma confiança vaga e ingênua na bondade daqueles que detêm o poder econômico e nos mecanismos sacralizados do sistema econômico reinante” (10).
Chamada “trickle-down” em inglês, essa teoria, que evoca a imagem de taças das quais o champanhe jorra a taças postas no nível inferior, sustenta que as rendas dos mais ricos são sempre reinjetadas na economia a fim de contribuir para a atividade econômica e, assim, beneficiar toda a economia.
Notadamente nos EUA, ela é usada para sustentar que os cortes nos impostos de alta renda possuem um efeito benéfico na economia global e, portanto, beneficiam as rendas mais baixas. “Havia a promessa de que, quando o copo estivesse cheio, ele transbordaria, e os pobres se beneficiariam. Ao contrário, acontece que, quando ele está cheio, o copo magicamente cresce e, assim, não sai mais nada para os pobres” (11), criticou o Papa Francisco.
Essa crítica a um dos dogmas do liberalismo e o fato de Francisco, em sua exortação, atacar diretamente as “ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira [e que por isso] negam o direito de controle dos Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum”, imediatamente provocaram protestos nos círculos econômicos liberais.
“É um assunto explosivo, especialmente em um país como os Estados Unidos onde os ataques de inspiração ética contra a economia de mercado são raros no debate público. Os próprios manifestantes do Occupy Wall Street não tiveram a coragem de ir tão longe quanto o papa”, explica John Allen, na época vaticanista da CNN (13).
Do lado dos bancos, estamos nos defendendo. “Os sistemas econômicos baseados no mercado contribuem mais para o combate à pobreza mundial do que aquilo que se fez no passado para o combate da pobreza mundial”, diz James Glassman, economista do banco JP Morgan, o mesmo com o qual o IOR tivera problemas em 2010. Para ele, “os que se preocupam com a pobreza mundial deveriam ser mais gratos hoje em vez de lamentar”. É aquele cujo empregador precisou pagar US$ 1.7 bilhão às vítimas de Bernard Madoff para afirmar que “os que foram atingidos pela recessão vão se recuperar graças à recuperação contínua das economias mais desenvolvidas” (14).
Católico e ex-candidato republicano à vice-presidência dos EUA em 2012, Paul Ryan culpa a falta de conhecimento sobre o sistema americano por parte do papa, dizendo: “O papa é da Argentina, onde não há um capitalismo real, mas uma versão familiarista sem um sistema real de livre iniciativa, como na América”. Enquanto isso, Sarah Palin, ex-governadora do Alaska e porta-voz de longa data do movimento conservador Tea Party, observa que “o papa usou várias frases que têm algo de liberal”, também conhecido como “socialista” no outro lado do Atlântico.
Outra figura do citado movimento conservador, o radialista Rush Limbaugh, ouvido semanalmente por aproximadamente 20 milhões de pessoas, acusa Francisco de ser marxista e socialista: “É puro marxismo que sai da boca do papa. Capitalismo sem limites? Não existe em nenhum lugar. ‘Capitalismo sem limites’ é uma frase socialista para descrever os Estados Unidos. Sem limites, sem regulação”.
No entanto, e ao contrário do que aconteceu com Bento XVI, dessa vez o Vaticano não parou, e Francisco não se retratou do discurso denunciador de uma economia “que mata”. O papa passa a aprofundar e questiona até alguns atores do mundo econômico. Em 20-11-2014, a Igreja Católica na Inglaterra anuncia a criação de um curso de treinamento para a conscientização entre banqueiros sobre a doutrina social da Igreja, financiado pelo gigante do ramo alimentício Unilever e pela operadora de telefonia Vodafone.
“Levará certo tempo até que a doutrina social da Igreja substitua o neoliberalismo, mas estamos no caminho certo”, diz o cardeal-arcebispo Vincent Nichols, de Westminster, na Inglaterra. Cansado, um mês depois, o JP Morgan publica, para a surpresa dos investidores, uma avaliação negativa da Unilever e da Vodafone, imediatamente afetando as ações das duas companhias. A mensagem dos mercados é clara: na guerra contra o papa “marxista”, não haverá misericórdia para os “colaboradores”.
Um ano depois da publicação de Evangelii Gaudium, será a vez da encíclica Laudato Si’ se apresentar contra os círculos conservadores americanos, e em primeiro lugar os céticos do clima patrocinados pelas gigantes do petróleo. Os ataques começaram já antes da publicação do texto em que o papa convida a uma resposta mundial ao aquecimento global.
Nello Scavo conta como o Instituto Heartland, think tank conservador de Chicago, em seguida organiza encontros em Roma para tentar convencer círculos próximos ao Vaticano de que “não existe problema algum de aquecimento global”. “Embora tenha boas intenções, o Papa Francisco faria, aos seus seguidores e ao mundo, um favor se evitasse exercer a sua autoridade moral sobre o programa de ciência climática das Nações Unidas”, diz Joseph Bast, presidente instituto, que já recebeu US$ 1 milhão em doações das gigantes petrolíferas Exxon e Chevron.
Laudato Si’ publicada, o discurso não muda: o papa “não está bem assessorado pela ONU”, explica Jim Lakely, chefe de comunicação do Instituto Heartland, lembrando os católicos de que “o Santo Padre é uma autoridade espiritual, mas não uma autoridade científica” (15).
O tom será o mesmo nos círculos católicos conservadores, que recordarão os seus bispos do século XIX que relativizavam o magistério dos papas sobre política. “Quando a Igreja ensaia teorias políticas e debates científicos, penso que perde a sua influência e credibilidade”, diz Rick Santorum, político republicano. “O papa sabe do clima e desconhece até que ponto as mudanças climáticas das últimas décadas têm origem antropogênica. E Deus não tem nenhuma intenção de lhe dizer”, acrescenta Robert George, professor de direito na Princeton considerado um dos pensadores católicos mais influentes dos EUA.
Na Flórida, Dom Thomas Wenski, arcebispo de Miami, tenta explicar a políticos locais o que está em jogo “em um tema que não é nem de direita, nem de esquerda”, afirmando que Laudato Si’ “é mais importante do que as batalhas ideológicas”. No entanto, enquanto os republicanos tentam se remobilizar após a reeleição de Barack Obama em 2012, não há dúvida de um rompimento com a ala conservadora e um afastamento do Tea Party, grupo em que apenas 20% dos apoiadores acredita que o aquecimento global se deve a atividades humanas.
“Espero não ser indagado pelo meu padre por isto que vou dizer, mas não é o meu bispo, nem o cardeal ou o papa que ditam a minha política econômica”, diz Jeb Bush, governador da Flórida, que afirma que “a religião tem a ver com nos tornar pessoas melhores, e pouco tem a ver com política. Os homens não são responsáveis pela mudança climática, contrariamente ao que tentam nos fazer acreditar”, diz um outro pré-candidato à presidência republicano, o senador Marco Rubio.
Em seu discurso, no entanto, Francisco está longe de ser contrário à economia. “O papa não rejeita a economia ou o dinheiro em bloco, mas uma maneira particular de fazer economia ou uma maneira particular de usar o dinheiro”, diz o jesuíta Diego Alonso-Lasheras (16).
É de fato a “idolatria do dinheiro” que o papa argentino questiona. “O imperialismo atual do dinheiro tem uma idolatria inegável”, disse o Cardeal Bergoglio a Gianni Valente em 2002. “O atual imperialismo do dinheiro também mostra um inequívoco rosto idolátrico. E onde há idolatria, apagam-se Deus e a dignidade do ser humano. A economia especulativa não precisa mais nem do trabalho, não sabe o que fazer do trabalho. Ela persegue o ídolo do dinheiro que se produz por si mesmo. Por isso, não se tem remorso em transformar milhões de trabalhadores em desempregados” (17).
Quando se elegeu papa, ele repetiu a mesma coisa aos trabalhadores com quem se encontrou em setembro de 2013, em Cagliari (Sardinia): “Mas agora, neste sistema desprovido de uma ética, no centro existe um ídolo, e o mundo tornou-se idólatra deste ‘deus-dinheiro’. O dinheiro que manda! É o dinheiro que manda! Comandam todas aquelas coisas que servem este ídolo. E o que acontece? Para defender este ídolo, todos se aglomeram no centro, enquanto decaem as extremidades; decaem os idosos, porque neste mundo não há lugar para eles! Alguns falam deste hábito da ‘eutanásia escondida’, de não os curar, de não os ter em consideração... ‘Sim, deixemos de lado...’. E decaem os jovens, que não encontram um trabalho, e a sua dignidade” (18).
Paralelamente a esse discurso sobre o “ídolo” dinheiro, Francisco insiste em trazer o tema da influência negativa dele. “O dinheiro corrompe! Não há outra saída”, disse em uma homilia de setembro de 2013 na Casa Santa Marta. “Quem escolhe o caminho do dinheiro, no fim acaba se corrompendo. O dinheiro tem esta sedução” (19).
Já em 2009, em vídeo gravado para a Caritas Argentina, ele traz o exemplo dos jantares de caridade que desaprova: “Anos atrás, frequentávamos jantares luxuosos para arrecadar fundos para a Caritas. Joias e todos os tipos de itens caros eram leiloados. Isso é um equívoco”, falou o futuro papa. “Essas coisas não têm nada a ver com a Caritas. Isso é específico das ONGs. Ou fazemos parte de uma ONG ou fazemos parte da Caritas. Se somos parte dela, aceitemos que a nossa vida irá mudar. Inevitavelmente mudaremos o nosso estilo de vida. Iremos nos tornar amigos dos pobres e nos tornaremos pobres, na modéstia austera da vida”.
Um discurso que vai totalmente contra a teologia da prosperidade. No centro do movimento teológico pentecostal, “não existe a convicção de que Deus quer que os fiéis vivam uma vida próspera, isto é, economicamente rica, fisicamente saudável e individualmente feliz”, resumiram na La Civiltà Cattolica o padre jesuíta Antonio Spadaro e o pastor evangélico Marcelo Figueroa (21).
Eles apontam que “se Max Weber falava da relação entre o protestantismo e o capitalismo no contexto da austeridade evangélica, os teólogos da prosperidade difundem a ideia de que a riqueza é proporcional à fé pessoal”. Entre os exemplos que dão está a da pregadora Gloria Copeland, quem diz: “Damos um dólar pelo amor do Evangelho, e recebemos cem dólares; damos dez dólares, e em troca recebemos 1.000 dólares de presente; damos 1.000 dólares, e em troca recebemos 100 mil. Se dermos um avião, receberemos cem vezes o valor do avião. Se oferecermos um carro, vamos ganhar tantos carros que não mais precisaremos deles para o resto da vida”.
Essa visão de riqueza financeira como um sinal da bênção divina e saúde espiritual, enquanto a pobreza seria uma punição de Deus, permeia com força parte do pentecostalismo americano, onde corresponde a uma visão do “American Dream”. Mas os católicos não ficam de fora. Na Coreia do Sul assim como no Brasil, Francisco advertia os bispos contra a “tentação da prosperidade” (22) e contra as “modalidades empresariais” das igrejas ricas, questionando a concepção eclesial funcionalista que “constitui uma espécie de ‘teologia da prosperidade’ no aspeto organizativo da pastoral” (23).
Obviamente que o mesmo vale para os Estados Unidos, onde a Igreja vive sob a infusão de doadores ricos, eles mesmos influenciados pela teologia da prosperidade que os leva a olhar com suspeição estes pobres hispânicos, embora formem eles a maioria do catolicismo no país. E é realmente dos EUA que os ataques contra Francisco continuam a vir.
É o caso da Ordem de Malta. O caso dos preservativos em Myanmar, que serve como pretexto para o afastamento do grande chanceler Albrecht von Boeselager, foi sublinhado poucos meses antes por um “Instituto Lepanto para a Restauração de Todas as Coisas em Cristo”, escritório ultraconservador especializado em denunciar o “entrismo gay” na Igreja e os ataques contra as principais associações promotoras de desenvolvimento que questionam o liberalismo econômico ilimitado. Um dos seus líderes é o presidente do Partido Republicano na Virgina; um outro, famoso ativista dos círculos conservadores americanos, coordena a Aliança para o Bem Comum, entidade presidida por Keith Fournier, diácono da Diocese de Richmond e membro do grupo de apoio católico formado por Donald Trump durante a sua campanha.
Uma figura-chave aqui é o cardeal americano Raymond Burke, importante na oposição conservadora a Francisco e oficialmente “o cardeal patrono” da Ordem de Malta, isto é, atua como embaixador do papa. Ele também é um amigo próximo de Steve Bannon, então assessor estratégico de Donald Trump na Casa Branca.
Ligado ao Tea Party, Steve Bannon foi também o fundador do sítio eletrônico Breitbart, cujo correspondente em Roma explicou ao New York Times que os seus responsáveis pediam que promovesse os opositores do papa, incluindo o Cardeal Burke, “amigo do Sr. Bannon”, que igualmente “desconfia” de Francisco (24).
Anteriormente prefeito do Supremo Tribunal da Signatura Apostólica, Burke escanteado como patrono da Ordem de Malta, cargo principalmente honorário do qual ele, mesmo assim, tentará tirar vantagem para fazer da venerável instituição uma entidade contra o papa. Ele tira vantagem do fato de que o grão-mestre, Fra’ Matthew Festing, encontra-se em relação delicada com o seu gabinete, que não compartilha as orientações deste aristocrata britânico, o qual se dedica mais a caçar e à missa tradicional do que a ajudar os pobres e doentes, e quem tampouco aprecia o seu autoritarismo. O caso de Myanmar é a oportunidade perfeita para reconquistar o controle e impor sua autoridade livrando-se do grande chanceler.
Em janeiro de 2019, a publicação no WikiLeaks da carta do papa ao cardeal, e então a deste escrita ao grão-mestre, mostra que liberdades o Cardeal Burke tomou com as diretrizes papais: enquanto Francisco insistia no diálogo, o americano só falava de sanções! O papa frustra o ataque: convocado a se explicar, o grão-mestre se vê forçado a renunciar, enquanto Francisco põe a Ordem sub sua tutela por um tempo, efetivamente destituindo Burke de qualquer cargo.
Agora desocupado, Burke se aproxima de Steve Bannon. Os dois americanos participam juntos dos trabalhos no Instituto Dignitatis Humanae, criado em 2008 para promover os direitos humanos com base na antropologia cristã. Mas o projeto do instituto, que também tem o Fra’ Matthew Festing na comissão de patronagem, depois evoluiu. Este último há pouco fundara, em um mosteiro cartuxo do século XIII em Trisulti, sul de Roma, uma academia para “promover a civilização ocidental e os seus fundamentos judaico-cristãos segundo o pensamento nacional-populista desenvolvido por Bannon”, como explicou o seu presidente Benjamin Harnwell ao jornal italiano La Stampa (25). O seu sonho: que o mosteiro cartuxo de Trisulti se torne o centro de um Tea Party ao estilo europeu, reunindo os vários movimentos populistas do continente.
Assim, o Cardeal Renato Martino, também alvo de Dom Carlo Maria Viganò pela sua suposta homossexualidade, renunciou, em janeiro de 2019, do cargo de presidente honorário do Instituto Dignitatis Humanae, pedindo que Trisulti “seja verdadeira e efetivamente um lugar de encontro e, portanto, aberto a todos” e que o instituto não “se desvie” do objetivo principal, permanecendo leal ao papa, “de quem cujos os ensinamentos nunca devemos nos afastar”.
O ex-assessor de Donald Trump também encontra um ambiente favorável na Itália para as suas atividades europeias. Ele se tornou um aliado de Matteo Salvini, líder da Liga do Norte, que se tornaria ministro do Interior e vice-presidente do Conselho Italiano após as eleições de março de 2018 que levaram à inédita aliança dos nacionalistas da Liga com os populistas do Movimento 5 Estrelas (M5S).
Steve Bannon, para quem essas eleições significaram “uma rejeição do papa” pelo povo italiano, elogiou a si próprio pelo papel desempenhado nos debates entre os dois partidos, por se encontrar várias vezes com lideranças da Liga pedindo que juntassem forças com o M5S. “Vocês são os primeiros a de fato romperem o paradigma entre direita e esquerda. Poderão mostrar que o populismo é um novo princípio organizador”, disse ele a Salvini (27).
Os dois se conheceram pela primeira vez em 2016, em Washington. Salvini então passou a apoiar Donald Trump em sua campanha eleitoral. “O que disseram um ao outro permanece um mistério”, explica o sítio eletrônico investigativo americano Source-Material. “Mas uma importante liderança da Liga presente naquele dia falou que Salvini saiu do debate com um objetivo central: atacar o papa” (28).
Um outro representante da Liga contou ao jornal inglês The Guardian que Matteo Salvini de fato voltou de Washington convicto de que deveria alvejar o Vaticano, mas que a ala de seu partido mais próxima da Igreja procurou detê-lo. Ainda assim, “Salvini pensa sozinho e age sozinho”, declara a fonte citada pelo jornal, lembrando os múltiplos tuítes do futuro presidente do Conselho contra o papa, em particular sobre política migratória e o dia em que apareceu usando uma camiseta escrita: “O meu papa é Bento” (29).
Em março de 2019, em um encontro de movimentos populistas europeus em Milão, Bannon retorna à Itália para falar das eleições europeias de maio de 2019, onde esperava que uma frente populista viesse a defender os valores da Europa cristã, inclusive contra a Igreja Católica. Porque do lado do Vaticano, não se fica sem reação, mesmo que tenhamos medo de atacar frontalmente Salvini, hoje ministro italiano do Interior.
Em vista das eleições europeias, a La Civiltà Cattolica, revista jesuíta cujos textos são revisados pela Secretaria de Estado do Vaticano e dirigida pelo Pe. Antonio Spadaro, amigo próximo de Francisco, publicou um importante artigo escrito pelo presidente da Comissão das Conferências Episcopais da Comunidade Europeia, Dom Jean-Claude Hollerich, de Luxemburgo.
Jesuíta como o papa, o arcebispo adverte contra o “catolicismo autorreferencial com visões conservadoras e tradicionais ‘arriscando-se’ a criar dinâmicas que, ao final, irão devorar o próprio catolicismo” (30). Steve Bannon e Alexandre Douguine “são sacerdotes destes populismos que conjuram uma realidade pseudorrelgiosa e pseudomística que nega o centro da teologia ocidental, que é o amor de Deus e o amor ao próximo”, sublinha Hollerich (31).
Na ocasião da visita feita à Itália, Bannon também concedeu entrevista ao canal americano NBC, claramente fazendo do Papa Francisco um dos seus principais alvos. “Ele é o administrador da Igreja, mas é também um político. Este o problema: ele constantemente coloca todos os problemas do mundo nos movimentos populistas e nacionalistas”, diz, fazendo igualmente da luta contra os abusos sexuais o seu cavalo de batalha para “salvar” a Igreja de um papa que não faz o bastante (32).
Voltando-se, em seguida, a um assunto tradicionalmente caro ao puritanismo americano, ele particularmente ataca Francisco sobre a homossexualidade, achando-se em acordo, por exemplo, como ensaísta francês Frederic Martel, o qual, no polêmico livro intitulado Sodoma (33), retrata um Vaticano onde “80%” dos padres são homossexuais.
Em maio de 2019, os dois se reúnem em Bristol, palácio parisiense que Steve Bannon visitara poucos dias antes das eleições europeias. Segundo o sítio LifeSiteNews, o ex-assessor da Casa Branca chegou a propor a compra dos direitos do livro do autor francês para fazer um filme com base na obra (34). Embora os dois não tenham fechado o negócio, o projeto provocou a fúria do Cardeal Burke, a quem Martel dedica um capítulo inteiro de seu livro. O cardeal americano, em carta publicada no Twitter em 25 de junho, finalmente rompe todos os laços com Bannon e com o Instituto Dignitatis Humanae.
1) O seu pai foi um dos poucos sobreviventes da Operação Valquíria, ataque fracassado contra Hitler em 1944.
2) Nello Scavo, Les ennemis du pope, Geneviève Lambert (trad.), Montrouge, Bayard, 2016, p. 336.
3) Nicolas Senèze, “Le trésor du Vatican”, Pouvoirs, v. 162, n. 3, 2017, p. 63-73.
4) Bento XVI, Caritas in Veritate, 29 jun. 2009, § 25.
5) Michael Novak, “Tanta caritas, meno veritas”, Liberal, 5 ago. 2009.
6) George Weigel, “Caritas in Veritate in Gold and Red”, National Review, 7 jul. 2009.
7) Citado em Andrea Tornielli e Giacomo Galeazzi, Pope Francis. This Killing Economy, Geneviève Lambert (trad.), Montrouge, Bayard, 2015, p. 156-157.
8) Pontifício Conselho Justiça e Paz, para uma reforma do Sistema monerário e financeiro internacionalna perspectiva de uma autoridade pública com jurisdição universal, 24 out. 2011.
9) Frédéric Mounier, “Le Conseil pontifical Justice et Paix sous le feu des critiques”, La Croix, 14 nov. 2011.
10) Evangelii Gaudium, 24 nov. 2013, § 54.
11) Andrea Tornielli e Giacomo Galeazzi, op. cit. p. 258.
12) Evangelii Gaudium, § 56.
13) Nello Scavo, op. cit. p. 27.
14) James Pethokoukis, “A JP Morgan Economist (in Effect) Responds to Pope Francis”, American Enterprise Institute, 2 dez. 2013.
15) Nello Scavo, op. cit., p. 90.
16) Andrea Tornielli e Giacomo Galeazzi, op. cit., p. 70.
17) Gianni Valente, “Il volto idolatra dell’economia speculativa”, 30 jan. 2002.
18) Speech to the world of work, 22 set. 2013.
19) Homilia, 20 set. 2013.
20) Andrea Tornielli e Giacomo Galeazzi, op. cit., p. 39.
21) Antonio Spadaro e Marcelo Figueroa, “Teologia della prosperità. Il pericolo di un ‘Vangelo diverso’”, La Civiltà Cattolica, v. 4034, n. 3, 2018, p. 105-118.
22) Encontro com os bispos da Coreia. Discurso do Santo Padre, 14 ago. 2014.
23) Aos bispos responsáveis do Conselho Episcopal Latino-Americano – CELAM por ocasião da reunião geral de coordenação. Discurso do Santo Padre, 28 jul. 2013.
24) Jason Horowitz, “Breitbart’s Man in Rome. A Gentle Voice in a Strident Chorus”, The New York Times, 10 jan. 2017.
25) Salvatore Cernuzio, “In Ciociaria l’accademia teocon che tifa Salvini: ‘Ma non è vero che siamo contro Papa Francesco’”, La Stampa, 17 set. 2018.
26) Jason Horowitz, “Steve Bannon Is Done Wrecking the American Establishment. Now He Wants to Destroy Europe’s”, The New York Times, 9 mar. 2018.
27) Jason Horowitz, “Italy’s Populist Parties Win Approval toForm Government”, The New York Times, 31 maio 2018.
28) Stefano Vergine e Claudia Torrisi, “The heretic in the Vatican: How Pope Francis became a hate figure for the far right”, source- material.org, 13 abr. 2019.
29) Mark Townsend, “Steve Bannon ‘told Italy’s populist leader Pope Francis is the enemy’”, The Guardian, 13 abr. 2019.
30) Jean-Claude Hollerich, “Verso le elezioni europee”, La Civiltà Cattolica, quaderno 4052, 2019, p. 105-117.
31) Russian nationalist intellectual, influential in Vladimir Putin’s entourage.
32) Richard Engel e Kennett Werner, “Steve Bannon and U.S. ultra-conservatives take aim at Pope Francis”, NBCnews.com, 12 abr. 2019.
33) Frédéric Martel, Sodoma, Paris, Robert Laffont, 2019.
34) Maike Hickson, “Steve Bannon hints at making film exposing homosexuality in Vatican”, LifeSiteNews, 24 jun. 2019.
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‘Como a América quis mudar o papa.’ Capítulo 4: Enfrentando o poder do dinheiro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU