29 Agosto 2018
Réplica do Cardeal Coccopalmerio, Presidente Emérito do Pontifício Conselho para os Textos Legislativos, à crítica feroz que um sítio desferiu contra ele após a recente entrevista publicada no Vatican Insider.
O artigo é publicado por Vatican Insider, 23-08-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eu gostaria de responder ao artigo publicado no sítio Bussula Quotidiana, assinado por Luisella Scrosati, intitulado "Coccopalmerio saqueia os textos da Igreja" e que se refere à entrevista concedida por mim a Andrea Tornielli para o Vatican Insider datada de 30 de julho de 2018, com o título "A comunhão ao cônjuge não católico, eis por que é possível".
A intervenção de Bussola Quotidiana me dá a feliz oportunidade de esclarecer o meu pensamento sobre o difícil tema da intercomunhão.
Vou proceder por pontos, nos quais relato as observações da autora e tento dar minhas explicações.
1. No início da ampla arguição, a autora lembra que o cânone 844, § 4º do Código de Direito Canônico "se existir perigo de morte ou urgir outra necessidade grave (mais corretamente: grave e urgente – confronta "urgeat") a possibilidade de ministrar os sacramentos a um protestante." Na sequência imediata, a autora afirma que o entrevistador coloca seu foco sobre duas expressões usadas por João Paulo II: "casos particulares" (Encíclica "Ut unum sint", n. 46) e "circunstâncias especiais" (Encíclica "Ecclesia de Eucharistia", n. 45). Segundo o entrevistador, tais expressões parecem aumentar os casos de possível administração dos sacramentos, para além dos casos restritos previstos pelo cân. 844, §4. Segundo a autora, no entanto, essas duas expressões referem-se estritamente ao cân. 844, §4 e reafirmam seu sentido. Sempre segundo a autora, o cardeal Coccopalmerio seguiria a interpretação dada pelo entrevistador.
A esse respeito, gostaria de salientar que não é esse o caso. E, de fato, ao fazer a exegese do cân. 844, § 4º, ou seja, para entender o que exatamente se entende por necessidade grave e urgente, não parto das expressões “casos particulares" ou "circunstâncias especiais", mas sim afirmo que o Código e, portanto, o cân. 844, §4 é essencialmente dependente do Concílio Vaticano II e deve, portanto, ser interpretado com base neste. Por tal motivo, considerei o texto de "Unitatis redintegratio", n. 8.4. De fato, tenho a convicção de que o autêntico significado do cân. 844, §4º e, portanto, da "necessidade grave e urgente" na situação do próprio texto, deve ser derivado do ensinamento da "Unitatis redintegratio", n.8, 4.
Resulta útil, para a clareza do discurso, reler e comparar os dois textos.
“Esta communicatio (com outro termo: intercomunhão) depende principalmente de dois princípios: da necessidade de testemunhar a unidade da Igreja e da participação nos meios da graça. O testemunho da unidade frequentemente a proíbe. A busca da graça algumas vezes a recomenda."("Unitatis redintegratio", n.8,4)
"Se existir perigo de morte ou, a juízo do Bispo diocesano ou da Conferência episcopal, urgir outra necessidade grave, os ministros católicos administram licitamente os mesmos sacramentos também aos outros cristãos que não estão em plena comunhão com a Igreja católica, que não possam recorrer a um ministro da sua comunidade e o peçam espontaneamente, contanto que manifestem a fé católica acerca dos mesmos sacramentos e estejam devidamente dispostos". (cânon 844, §4)
Acrescento duas explicações relacionadas à "Unitatis redintegratio", n.8, 4.
Quanto ao primeiro dos dois princípios, "testemunhar a unidade da Igreja" significa, essencialmente, o seguinte: quando a Igreja católica administra os sacramentos a um batizado, afirma com esse ato que esse batizado está com a Igreja católica em comunhão plena. Por essa razão, a Igreja católica não poderia administrar os sacramentos a um cristão não católico que está com a Igreja católica em comunhão não plena. Nesse caso, a administração dos sacramentos comportaria o perigo do indiferentismo eclesiológico e do escândalo resultante, entendendo por indiferentismo eclesiológico a afirmação errônea de que não há diferença entre estar ou não estar com a Igreja católica em comunhão plena e entendendo com escândalo resultante a convicção equivocada derivante logicamente da afirmação errônea.
Quanto ao segundo dos dois princípios, "a participação nos meios da graça" significa, essencialmente, o seguinte: os batizados, enquanto batizados, têm a necessidade espiritual de receber o dom da graça santificante não de um modo qualquer, mas sim de um modo específico, ou seja, com a administração dos sacramentos. Isso vale - obviamente - também para os batizados não católicos. Sejamos claros: os batizados não católicos têm a necessidade espiritual de receber a graça santificante através da administração dos sacramentos. Isso comporta logicamente que os batizados não-católicos, nos casos em que não podem receber a administração dos sacramentos de seus ministros, têm a necessidade espiritual de recebê-los pela Igreja católica. Tudo isso podemos considerar como compreensível e lógica determinação da "gratia procuranda" (onde se repare no uso do gerúndio como um sinal de necessidade).
2. Nesse ponto, a argumentação da autora se torna complexa, então não é fácil entendê-la e dar-lhe uma resposta. Cito apenas esta passagem "Sua Eminência ... continua "por sua parte" a saquear os textos do Magistério. Referindo-se ao texto do decreto do Vaticano II sobre ecumenismo, ‘Unitatis redintegratio’, 8, Coccopalmerio explica que ‘essa communicatio’ é regulada por dois princípios: testemunhar a unidade da Igreja; fazer participar nos meios da graça. Ela é, na maior parte, impedida do ponto de vista da expressão da unidade; a necessidade de participar à graça, por vezes, a recomenda”. (Parece que as palavras entre aspas são uma minha explicação. Na verdade são uma citação da "Unitatis redintegratio", n. 8, 4). A autora continua dizendo: "Desse texto, Cardeal Coccopalmerio propõe uma interpretação totalmente pessoal, como se a Santa Sé nunca a tivesse fornecido".
Respondo dizendo que a minha interpretação do texto da "Unitatis redintegratio", n. 8, 4 consistiu em enfatizar as palavras nas quais é expresso o princípio da necessidade espiritual de conferir a graça santificante aos cristãos não católicos por pare da Igreja católica não de um modo qualquer, mas sim com a administração dos sacramentos. O princípio da "gratia procuranda", ou seja, da necessidade espiritual como indicado acima determina que, às vezes, a administração dos sacramentos aos cristãos não católicos seja não apenas possível, mas também recomendada.
Sinceramente não entendo como eu teria saqueado os textos acima mencionados do Magistério citando, literalmente, o texto da "Unitatis redintegratio", n. 8, 4 e tendo apenas repetido aquilo que o texto expressa.
3. Outro ponto de contestação: "Após ter deixado a gramática de lado, o cardeal Coccopalmerio também despacha de férias o léxico: "a grave necessidade" a qual – como vimos - referem-se todas as intervenções sucessivas à promulgação do cân. 844, desaparece para dar lugar, em definitivo, ao 'caso excepcional', que se torna critério dirimente, e ‘a grave necessidade espiritual para a salvação eterna’, da ‘Ecclesia de Eucharistia’, 45 torna-se uma simples ‘necessidade espiritual’".
Eu percebo que a resposta não parece fácil. Tentemos, pois, entender um pouco mais.
Sabemos que a "Unitatis redintegratio", 8, 4 estabelece dois princípios, ou seja, duas necessidades: evitar o perigo do indiferentismo ou de escândalo; conferir graça santificante através da administração dos sacramentos. Os dois princípios ou as duas necessidades devem ser respeitados juntos. Podemos dizer isto: nos casos em que o perigo de indiferentismo e de escândalo não pode ser evitado, não é possível administrar os sacramentos; nos casos em que é possível evitar o perigo do indiferentismo e do escândalo, é possível, aliás, recomendado, administrar os sacramentos. Desses dois princípios deve partir a exegese correta do cân. 844, §4. Que - evidentemente - leva em consideração ambos os princípios, mas parece particularmente preocupado em evitar o perigo do indiferentismo e do escândalo. E então, indica dois casos, que considera seguros, no sentido de que em tais condições não deveria ocorrer o perigo do indiferentismo e do escândalo: o perigo de morte e a necessidade grave e urgente.
Quanto ao perigo da morte, não há dúvida interpretativa. Quanto à necessidade grave e urgente, devemos nos perguntar o que exatamente isso significa. Podemos citar o seguinte exemplo: se um cristão não católico deve se submeter a uma operação cirúrgica de grandes proporções (mas sem perigo de morte) e deve submeter-se a isso em um curto espaço de tempo, tal caso constitui uma necessidade grave e urgente. Pois bem, resulta claro que, nesse caso específico, justamente por causa da situação de necessidade grave e urgente, evita-se o perigo do indiferentismo e do escândalo: todos, de fato, podem constatar que a administração dos sacramentos a um não católico configura nesse caso a resposta da Igreja católica a uma necessidade espiritual grave e urgente.
4. Outra objeção e outra citação: "A afirmação mais grave ainda está por vir. Depois de ter brigado com o léxico e a gramática, o cardeal Coccopalmerio decididamente chega às vias de fato com a ortodoxia ... que é uma condição exigida para os cristãos não-católicos ... ou seja, ter a mesma fé da Igreja sobre os sacramentos?". A autora contesta a minha resposta, segundo a qual, para nos limitar à Eucaristia, é necessário e suficiente acreditar no que Jesus ensinou na Última Ceia: este é o meu corpo, este é o meu sangue, e, portanto, acreditar que depois da consagração o pão é o corpo de Jesus e o vinho é o sangue de Jesus. Não resulta por outro lado necessário aderir a doutrinas teológicas, mesmo que do mais alto valor, como a da transubstanciação. E, em vez disso, de acordo com a autora para ter na Eucaristia a mesma fé da Igreja católica também seria necessário aderir à doutrina da transubstanciação.
Aqui devo honestamente repetir a minha convicção de que para ter na Eucaristia a mesma fé da Igreja católica não resulta necessário aderir a doutrinas teológicas, nem mesmo àquela de transubstanciação. No entanto, analisando bem, se um fiel acreditar que após a consagração o pão tornou-se o corpo de Jesus e o vinho tornou-se o sangue de Jesus, adere por si próprio e obviamente também à doutrina da transubstanciação: de fato acredita que o ser do pão transformou-se no ser do corpo de Jesus, a substância do pão se transformou na substância do corpo de Jesus e assim para a substância do vinho; portanto, acredita que aconteceu uma transubstanciação. Considero que não existam problemas nesse ponto ou sejam necessárias outras explicações.
5. Um último aspecto sobre o qual a autora chama a atenção seria o seguinte: na minha entrevista eu não relembraria, e, portanto, não exigiria todas as condições que tornam lícita a administração dos sacramentos a um protestante e que seriam "se há um perigo de morte ou outra grave (e urgente) necessidade ou o indivíduo e ... que desejam recebê-los e os pedem livremente e que têm a mesma fé da Igreja nesses sacramentos".
Posso explica que tais condições foram listadas por mim na primeira resposta ao n. 4, b (note-se que a lista da autora não é completa porque faltam as seguintes: estejam bem dispostos e não possam ter acesso ao ministro da sua confissão) e que nesse momento era só necessário indicar exatamente a exegese da grave e urgente necessidade segundo o estatuto do cân. 844, §4 e em essencial dependência do ensinamento da "Unitatis redintegratio", n. 8.4.
6. Poderia, talvez, resultar útil, para os pacientes leitores, apresentar em síntese e com sequenciamento lógico as observações feitas nas linhas anteriores.
a) A exegese do cân. 844, § 4 deve essencialmente depender do ensinamento da "Unitatis redintegratio", n. 8, 4.
b) A grande afirmação de tal texto consiste, em minha opinião, no princípio da "gratia procuranda", ou seja, na afirmação da necessidade espiritual de que a graça santificante seja conferida a todos os batizados, não de modo qualquer, mas sim com a administração dos sacramentos.
c) Isso comporta logicamente que os batizados não católicos nos casos em que não podem receber a administração dos sacramentos por parte de seus ministros, têm a necessidade espiritual de recebê-los pela Igreja católica.
d) Em todo caso, ao administrar os sacramentos da Igreja católica aos batizados não-católicos deve ser evitado o perigo do indiferentismo e do escândalo: nos casos em que não é possível evitar o perigo não é possível administrar os sacramentos; nos casos em que é possível evitar o perigo, é possível administrar os sacramentos.
e) O problema realmente crucial é agora o seguinte: quais são os casos em que resulta possível evitar o perigo do indiferentismo e do escândalo? Nós vimos que o cân. 844, § 4, apresenta dois, isto é, o perigo de morte ou uma necessidade grave e urgente, indicando-nos que tais casos são casos seguros, ou seja, nos quais é seguramente possível evitar o duplo perigo.
f) No entanto, podemos considerar que existem outros casos em que é possível evitar o indiferentismo e o escândalo. O critério para identificá-los deveria ser uma condição de excepcionalidade. Pode ser entendido e explicado da seguinte maneira. Um cristão não católico encontra-se em uma condição de excepcionalidade que determina nele o pedido dos sacramentos. A Igreja Católica responde ao pedido administrando os sacramentos. Todos na comunidade eclesial, ou mesmo fora dela, podem facilmente e honestamente interpretar o ato da Igreja católica não, certamente, como afirmação de indiferentismo, mas sim, claramente, como resposta ao pedido feito por um não católico que se encontra em condição de excepcionalidade. Em outras palavras, todos podem facilmente e honestamente considerar que a administração dos sacramentos nessas condições de excepcionalidade não significa que a Igreja católica considere um não católico do mesmo modo que um católico, mas significa somente que ela adota um comportamento consoante com uma condição de excepcionalidade.
Podemos oferecer alguns exemplos do que foi dito. Uma mãe, não católica, participa da celebração da missa em que o filho católico irá receber a primeira Comunhão e para não ficar separada, nesse momento excepcional, de seu filho, pede para receber a Comunhão com ele. Essa condição de excepcionalidade é conhecida por todos, e, portanto, todos na comunidade eclesial, ou mesmo fora dela, podem facilmente e honestamente reconhecer que a Igreja católica, administrando a comunhão a essa mãe, não a considera como católica, mas apenas lhe permite de não se separar do seu filho nesse momento. Um filho, não católico, participa da celebração da Missa em ocasião do funeral de seu pai e, nessa circunstância excepcional, pede para receber a Comunhão. Mesmo o caso do casal misto que participa da Missa na Igreja católica pode configurar uma condição de excepcionalidade conhecida por todos.
Em suma - queremos repeti-lo - a condição de excepcionalidade deveria levar todos a considerar que a Igreja Católica administrando os sacramentos a um não católico não pretende considerá-lo como um católico, mas apenas quer adotar um comportamento consoante a uma condição de excepcionalidade.
Nos exemplos citados acima e em outros que poderiam ser supostos, a condição objetiva da excepcionalidade e a subjetiva interpretação correta do ato da Igreja católica são elementos essenciais. Quanto à interpretação correta, precisamos ressaltar que muito depende da maturidade das pessoas que são, a cada oportunidade, chamadas a interpretar corretamente o gesto da Igreja católica. Em todo caso, nessa questão é necessário julgar cada caso de maneira singular e concreta. Por tal motivo, o texto do cân. 844, § 4, afirma muito sabiamente: "a juízo do Bispo diocesano ou da Conferência Episcopal".
Vamos retornar - para concluir o discurso - ao ensinamento de "Unitatis redintegratio” n.8, 4 e à disposição do cân. 844, §4.
"Unitatis redintegratio”, n.8, 4 ensina claramente que, quando resulta garantido o primeiro dos dois princípios, o da unidade da Igreja, então o segundo princípio, aquele da "gratia procuranda", manifesta a sua força e permite, aliás, recomenda, que os b sejam administrados.
O cân. 844, § 4º, que depende essencialmente do texto anterior, recebe do mesmo uma interpretação dinâmica, no sentido de que os dois casos, do perigo de morte e da necessidade grave e urgente devem ser considerados dois casos exemplares, embora não únicos, em que se verifica uma condição de excepcionalidade que exclui na administração dos sacramentos por parte da Igreja católica a batizados não católicos o perigo do indiferentismo e do escândalo e aplica o princípio da "gratia procuranda".
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Comunhão aos cristãos não católicos, a referência é o Concílio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU