22 Novembro 2014
A cena da Última Ceia se abre – não por acaso – sobre o espaço geométrico de uma perspectiva infinita, destinada infinitamente. Evento absoluto, que se aproxima todas as vezes, e todas as vezes se afasta, como uma onda, a partir da mesa em que nós mesmos nos sentamos.
A opinião é do teólogo e padre italiano Pierangelo Sequeri, reitor da Facoltà Teologica dell'Italia Settentrionale, em artigo publicado no jornal Avvenire, 20-11-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A celebérrima Última Ceia de Leonardo da Vinci, composta entre 1494 e 1498, começou a se tornar um "mito", como Guido Lopez observou espirituosamente, quando ainda não estava completa.
Em um primeiro momento, já por causa daquela extravagante e empolgante ideia de tratar toda uma parede como uma tela de pintura, em vez de como um muro de afresco. E, depois, por causa daquele seu ritmo da composição aparentemente de "capricho e fantasia", bebericando os tempos e distribuindo inesperadamente as pausas, segundo o testemunho do bom padre prior (Matteo Bandello) do convento dos dominicanos Alla Grazie, ao qual ela tinha sido atribuída por Ludovico, o Mouro, na glória dos Sforza.
O ritmo da composição e da pintura era, na realidade, ritmo do pensamento e da inteligência artística, como depois se veria. Dizemos "veria", mas também poderíamos dizer "entreveria": pois a pintura começou a sua longa e inexorável marcha de afastamento de nós (e da sua impressão original), que ainda não acabou (Antonio de Beatis, em 1517, já a anunciou em via de desgaste).
Certamente, também faz parte do mito essa longa perseguição, essa história infinita da Última Ceia, perdida e reencontrada: na realidade, nunca completamente perdida e nunca totalmente reencontrada (hábeis compositores de ficção obtiveram com isso remunerativas atrações enganosas).
Nem mesmo a guerra, no entanto, que fez literalmente o vazio ao seu redor, poderia subtraí-la. A última longa restauração, sobre cujo o destino o mundo inteiro ficou com o coração na garganta, merecidamente conquistou os corações e as mentes. A pintura, no entanto, continua sendo objeto de um assédio ainda mais compacto de visitantes de todas as partes do mundo, quase como se fosse preciso se apressar para ter uma última chance de contemplá-la, antes que se afaste novamente (e talvez para sempre).
A imagem evoca a cena da Última Ceia de Jesus, lugar do Evento (e do seu mistério), em que a luta entre a composição e a decomposição dos laços se encontram no seu ápice: ou seja, no ponto de máxima evidência e de mais indecifrável enigmaticidade.
O quadro da intimidade convivial, em que Jesus sela um laço de fidelidade irrevogável ("amou-os até o fim"), é perfurado pelo anúncio de uma dolorosa traição: que se obstina a permanecer na sombra da duplicidade e da simulação, em vez de se declarar – ao menos – como incredulidade e abandono.
Judas é o ponto de queda, dessa descomposição do laço. Mas a onda da sua distância vai repercutir sobre todo o grupo. Nunca Jesus esteve tão perto dos seus, nunca eles pareceram estar tão distantes. A eficácia da dramaticidade dessa falha da descomposição dos discípulos foi celebrada, e com razão, como uma extraordinária qualidade dessa composição de Leonardo.
O Cenáculo, ou seja, a representação da Última Ceia, é um gênero afirmado (especialmente em Florença) bem antes de Leonardo, e continuaria depois dele. Mas não sem ele, agora. O seu modo de restituir a tensão dos dois opostos – a composição e a decomposição dos discípulos – permanecerá inatingível. A onda que os discípulos formam, ao longo da mesa da intimidade convivial, abalada pelo anúncio de Jesus, ilustra a individual descontinuidade dos movimentos pessoais da reação, com um ritmo de contraponto quase musical.
Uma harmonia dinâmica, uma concordia discors das linhas, que parece única a toda comparação: o punctum aqui (as "notas") são as mãos, mais do que os rostos. Daí deve resultar "o homo e o conceito da mente sua".
Menos notado é o fato de que, nessa onda que sacode o grupo, os discípulos parecem estar concentrados sobre si mesmos. Não há afeição em relação a Jesus nesse instante: o ressentimento e a suspeita entre os discípulos prevalecem. Como se eles estivessem chafurdando dentro da questão sobre a identidade do traidor, varridos pela inquietação da ferida que diz respeito a eles e os ofende, mais do que pela participação na ferida que perfura Jesus, antes mesmo (e talvez ainda mais profundamente) do que aquelas dos pregos da cruz.
Jesus, do seu lado, já está além dessa dilaceração: ele a olha de cima, como prova já atravessada e vencida por ele mesmo, para que possa ser – não agora – pelos seus.
A enigmática agilidade de Jesus deve ser aprofundada, acredito, ao menos tanto quanto foi a minuciosa análise do abraçar-se dos discípulos. Os discípulos deverão se libertar do ressentimento e encontrar o caminho da afeição.
A cena se abre – não por acaso – sobre o espaço geométrico de uma perspectiva infinita, destinada infinitamente. Evento absoluto, que se aproxima todas as vezes, e todas as vezes se afasta, como uma onda, a partir da mesa em que nós mesmos nos sentamos.
O inconsciente no cristianismo, que nos coloca à prova e não deve ser removido, permanece à espera de reconciliação, para todas as épocas, nesse ponto exato. No seu momento de máxima intensidade, o gênio de Leonardo parou o enigma em pleno voo. Cabe a nós resolvê-lo.
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Diante da ''Última Ceia'', um enigma a ser resolvido - Instituto Humanitas Unisinos - IHU