03 Agosto 2018
A intercomunhão e o caso particular da comunhão concedida ao cônjuge não católico precisam lidar com "uma questão delicada, a de equilibrar de forma sábia dois princípios: o princípio da necessidade de conferir graça com a administração dos sacramentos deve sempre levar em conta o princípio da necessidade de não contradizer a comunhão eclesial". Quem afirma isso nesta entrevista com o Vatican Insider, é o Cardeal Francisco Coccopalmerio, presidente emérito do Pontifício Conselho para os Textos Legislativos.
A entrevista é de Andrea Tornielli, publicada por Vatican Insider, 01-08-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em 20 de fevereiro de 2018, a Conferência dos Bispos da Alemanha emitiu um documento sobre a intercomunhão eucarística, no qual é especificamente analisado o caso de um casal, em que um deles é católico e o outro não-católico, e que participam na Missa celebrada na Igreja Católica. E examina-se a possibilidade de o padre católico administrar a comunhão ao cônjuge não católico. O senhor estudou por décadas (a partir da tese de doutorado na Pontifícia Universidade Gregoriana, publicada sob o título "A participação de não-católicos ao culto da Igreja Católica", 1968) o complexo problema da intercomunhão. O que pensa do documento da Conferência episcopal alemã?
É certamente um documento importante e muito interessante, escrito com muito cuidado por pessoas competentes no problema da intercomunhão, especialmente nos sacramentos. No entanto, não pretendo expressar minha opinião sobre o mérito de tal documento que ainda está sendo examinado pelas autoridades eclesiais competentes. Eu, porém, acredito que vai ser uma boa oportunidade para discutir o problema da intercomunhão, especialmente dos sacramentos, a fim de esclarecer algum dos complexos aspectos desse delicado assunto.
Podemos então começar recordando exatamente o que prevê o Código de Direito Canônico?
Já que me pede uma resposta exata, eu gostaria de apresentar uma resposta articulada. Vou dividi-la em quatro pontos, fazendo a exegese do cânon 844, §§ 3-4
1. O texto leva em consideração duas categorias de fieis, ou seja, cristãos não católicos, a saber: "Os membros das Igrejas orientais" (§ 3) e os "outros cristãos", isto é, os membros de Confissões cristãs ocidentais no sentido de existentes no Ocidente desde a época da Reforma (§ 4).
2. Para ambas as categorias de cristãos, o texto afirma que "os ministros católicos podem licitamente administrar os sacramentos da penitência, da Eucaristia e da unção dos enfermos" (§§ 3-4).
3. Sobre ambas as categorias de cristãos, o mesmo cânon afirma que "não têm plena comunhão com a Igreja católica" (§§ 3-4). O que significa - dito positivamente - que esses cristãos estão com a Igreja católica em comunhão verdadeira, embora não plena (cf. especialmente a Constituição conciliar Lumen gentium, n.15; Unitatis redintegratio, n 3,1; 22, 2).
4. Para administrar licitamente aos cristãos não católicos os três sacramentos acima mencionados, a Igreja católica estabelece certas condições:
a) para os membros das Igrejas orientais, as condições são duas: que espontaneamente peçam os sacramentos e estejam devidamente dispostos, ou seja, arrependidos ao pedir o sacramento da penitência e estejam na graça santificante para acessar ao da Eucaristia;
b) para os cristãos pertencentes às confissões ocidentais, as condições são múltiplas: devem solicitar os sacramentos espontaneamente; devem estar bem dispostos; não podem acessar o ministro de sua confissão; devem demonstrar que têm, nos sacramentos solicitados, a mesma fé da Igreja católica; devem estar em perigo de morte ou em outra necessidade grave e urgente, a ser julgada como tal pelo bispo diocesano ou pela Conferência Episcopal.
O senhor lembrou que o cânon 844, § 4 requer para a administração dos sacramentos da Igreja Católica aos cristãos não católicos pertencentes às confissões ocidentais, uma necessidade grave e urgente. Por outro lado, na encíclica Ut unum sint de João Paulo II, no número 46 fala-se de "casos particulares". E em outra encíclica do Papa Wojtyla, Ecclesia de Eucharistia, no número 45, fala-se de "circunstâncias especiais". Levando também em consideração essas variantes significativas, o que exatamente significa "necessidade grave e urgente"?
O Código de Direito Canônico depende essencialmente do Concílio Vaticano II. Portanto, a resposta para a pergunta do que exatamente significa necessidade grave e urgente deve ser encontrada nos textos do Concílio e nos documentos pós-conciliares, documentos que reproduzem mais de perto o próprio Concílio e estão comprometidos em traduzi-lo em normativa canônica. Infelizmente, no âmbito de uma entrevista, devemos nos limitar a acenos. Então, eu quero considerar aquele que, na minha opinião, é o texto mais importante no nosso argumento, ou seja, a Unitatis redintegratio, n. 8.4, que assim se expressa: "Esta communicatio (sacramentos) depende principalmente de dois princípios: da necessidade de testemunhar a unidade da Igreja e da participação nos meios da graça. O testemunho da unidade frequentemente a proíbe. A busca da graça (gratia procuranda) algumas vezes a recomenda.
Um texto claro e ao mesmo tempo complexo. Pode nos explicar os dois princípios e sua importância para entender melhor do que estamos falando?
O primeiro princípio é a necessidade de expressar com fidelidade e, por isso, não contradizer a comunhão eclesial. Vamos tentar ser bem claros. Se a Igreja católica administra os sacramentos aos cristãos não católicos, isto é, para aqueles que estão com a Igreja católica em comunhão verdadeira, embora não plena, acaba na prática por tratar os cristãos não católicos da mesma forma que os católicos, isto é, aqueles que estão em comunhão plena. Daí dois perigos: o do indiferentismo eclesiológico e o do consequente escândalo. O indiferentismo eclesiológico é a afirmação errônea de que não há diferença entre estar ou não em comunhão plena com a Igreja católica. O consequente escândalo é a convicção errônea que se forma na comunidade, ou mesmo fora dela, por causa da afirmação supracitada.
É compreensível que a necessidade de não contradizer a comunhão eclesial impeça a intercomunhão nos sacramentos. E o segundo princípio?
O segundo princípio é a necessidade de conferir graça por parte da Igreja católica não de uma maneira qualquer, mas de uma forma específica através da administração dos sacramentos. E isso se aplica não apenas aos cristãos católicos, mas a todos os batizados, mesmo aos não católicos. Esse é o grande ensinamento afirmado com clareza e convicção pelo grande texto do Vaticano II. Sejamos claros: os cristãos não católicos têm a necessidade espiritual de receber a concessão da graça através da administração dos sacramentos. Eles, portanto, têm a necessidade espiritual de receber os sacramentos. Podemos até dizer que os cristãos não católicos têm o direito de receber os sacramentos. E a Igreja católica tem o dever de administrar os sacramentos a esses cristãos. Tudo isso podemos considerar como uma simples determinação do princípio da "gratia procuranda" (onde temos o gerúndio como um sinal de necessidade).
Que consequências decorrem, em termos de lei canônica, desses dois princípios?
No plano da normativa canônica apresenta-se um delicado problema, aquele de equilibrar de maneira sábia os dois princípios: o princípio da necessidade de conferir a graça com a administração dos sacramentos deve sempre ter presente o princípio da necessidade de não contradizer a comunhão eclesial. Outros textos do Vaticano II e vários documentos pós-conciliares encarregam-se de oferecer indicações valiosas da normativa canônica. Aqui também precisamos nos limitar a simples acenos. A fim de garantir o princípio da necessidade de não contradizer a comunhão eclesial com afirmações de indiferentismo e motivos de escândalo, a normativa canônica previu a limitação da administração dos sacramentos apenas àqueles casos que apresentem natureza excepcional, estabelecendo também a distinção entre cristãos não católicos membros das Igrejas orientais e aqueles pertencentes às Confissões ocidentais (tudo isso a partir da Orientalium Ecclesiarum, n. 26-27; Unitatis redintegratio, n.15,3; Diretório ecumênico Ad totam Ecclesiam, n. 55 até o cânon n.. 844, §§ 3-4). A fim de garantir e, ao mesmo tempo, para entender melhor o princípio da necessidade de conferir a graça com a administração dos sacramentos, os documentos eclesiais pretende destacar alguns aspectos do delicado problema. Vou mencionar dois. O primeiro aspecto é que os batizados não podem ficar por um longo período de tempo sem receber os sacramentos e, de modo especial, sem receber a Eucaristia (ver importantes afirmações em um documento pouco conhecido, porém de grande valor, ou seja, a Instrução chamada In quibus rerum circumstantiis do Secretariado para a Unidade dos Cristãos, datado de 1 de junho de 1972). O outro aspecto é que os ministros da Igreja católica devem dar viva atenção pastoral aos cristãos não católicos, que em determinados momentos têm graves necessidade ou forte desejo de receber os sacramentos e, portanto, os solicitam com particular intensidade (ver, por exemplo, Ut unum sint, n. 46: "Administrar os sacramentos a outros cristãos que não estão em plena comunhão com a Igreja católica, mas que ardentemente desejam recebê-los"). Notamos facilmente que administrar os sacramentos como resposta à necessidade espiritual de conferir a graça através dos sacramentos, especialmente nos casos de grave necessidade ou de forte desejo, imediatamente exclui o perigo do indiferentismo e do escândalo. Nesse caso, os dois princípios são garantidos. De qualquer maneira, o delicado equilíbrio entre os dois princípios é confiado, muito oportunamente, pela normativa canônica à avaliação sensata dos bispos diocesanos ou das Conferências Episcopais (assim, a partir de UR, n. 8,4 até o cânon n. 844, § 4).
Vamos falar agora sobre o caso específico, ligado ao documento dos bispos alemães: um casal, um dos quais é católico e o outro não católico, que participa junto da missa celebrada na Igreja católica e deseja - compreensivelmente - receber junto a Eucaristia. Pode o sacerdote católico administrar licitamente a comunhão ao cônjuge não católico? E isso poderia acontecer toda vez que os dois cônjuges mencionados participassem juntos da missa?
Para responder a essa pergunta, realmente muito intrigante, é necessário postular uma outra e dar-lhe uma resposta não fácil: a hipótese dos dois cônjuges, conforme especificado acima, apresenta um caráter excepcional, é resposta a uma necessidade espiritual?
O qual é a sua resposta sobre isso?
Podemos honestamente responder que representa um caso excepcional. E a excepcionalidade consiste no fato que esses cônjuges são, infelizmente, forçados a fazer uma escolha dolorosa: ou um recebe a Sagrada Comunhão, enquanto o outro se abstém (mas isso iria dividir um casal unido no casamento e no afeto), ou ambos devem abster-se (mas isso seria, por si só, em contraste com o comportamento natural de um fiel que participa na missa e que, estando na graça santificante, completa a sua participação se aproximando da mesa eucarística).
Assim, em sua opinião, o caráter excepcional da qual falamos significaria que a hipótese de tal casal equivaleria a um caso em que não há perigo do indiferentismo e do escândalo?
Acredito que sim. E, de fato, na eventualidade de que o ministro católico administrasse a Sagrada Comunhão ao cônjuge não católico, todos poderiam razoavelmente acreditar que tal concessão é determinada pela justa necessidade de não separar um casal, especialmente em um momento tão especial como a participação no sacramento da Eucaristia. Tudo isso pode, no entanto, ser sempre evocado através de uma catequese explicativa dada à comunidade dos fiéis, inclusive de maneira recorrente.
Insisto: em sua opinião, a concessão da Eucaristia poderia ocorrer toda vez que os dois cônjuges participassem juntos da missa?
Deveria responder que sim, porque o caráter de excepcionalidade que observamos acima ocorre toda vez que os dois cônjuges participam juntos da santa missa. A excepcionalidade do caso, a cada vez, determina logicamente a excepcionalidade da concessão, a cada vez. No entanto, se quiséssemos, com uma intenção primorosamente pastoral, tornar mais evidente e, portanto, mais convincente que se trata de um caso excepcional e, portanto, de uma concessão excepcional, poderia ser oportuno limitar a referida concessão para apenas algumas ocasiões. E os dois cônjuges poderiam oferecer esse sacrifício para obter do Senhor a graça de acelerar a realização da plena comunhão entre todas as Igrejas.
Obrigado pelas explicações. No entanto permanecem, para aqueles que pensam de forma diferente, objeções fundamentais ou alguns obstáculos iniciais, que parecem anular o que o senhor afirmou. E que chegam a criticar a própria normativa canônica. A primeira objeção básica ou o primeiro obstáculo de partida: uma das condições exigidas para os cristãos não católicos para poder receber os sacramentos é que eles tenham, nos sacramentos a serem recebidos, a mesma fé da Igreja católica. Isso, de maneira especial, é exigido para a Eucaristia. Parece, no entanto, pelo menos para alguns, que a fé católica na Eucaristia não se verifique facilmente em alguns cristãos não católicos. Como o senhor responderia?
É evidente que os cristãos não católicos que solicitam acesso à Eucaristia devem ter a mesma fé da Igreja Católica nesse sacramento. Mas - nos perguntamos - o que é necessário e o que é suficiente para ter a fé da Igreja? E a resposta é simples. É necessário e suficiente acreditar que o pão e o vinho consagrados na santa missa são aquelas realidades que Jesus mencionou nas palavras da Última Ceia: "Este é o meu corpo, este é o meu sangue". É, portanto, necessário e suficiente acreditar que o pão e o vinho são, no sacramento da Eucaristia, o corpo e o sangue de Jesus. Aderir a explicações teológicas, mesmo do mais alto valor como a doutrina da transubstanciação, não é uma condição necessária. Pois bem, temos de reconhecer que ter fé na Eucaristia, como acabamos de indicar, deveria se verificar facilmente em quem se aproxima da mesa do Senhor: que sentido teria pedir a comunhão eucarística, se não se acreditasse que o pão é o corpo de Jesus e que o vinho é o sangue de Jesus? Por acaso estariam esperando receber um tipo de pão e de vinho qualquer e não o corpo e o sangue de Jesus?
A segunda objeção ou o segundo obstáculo é encontrado na posição de alguém que afirma algo assim: a Igreja Católica administra os sacramentos aos não católicos. Estes, no entanto, intencionalmente continuam a rejeitar a integridade das verdades católicas e da comunhão hierárquica. O que o senhor pensa a respeito dessa visão?
Com todo o respeito por aqueles que professam essas convicções, devo declarar que discordo. Claro que, no caso de um cristão não católico que recusasse uma verdade de fé professada pela Igreja católica e fosse plenamente consciente de que se trata de uma verdade de fé, ele não poderia receber os sacramentos. No entanto, a Igreja católica, especialmente desde o Vaticano II, tem a plena convicção de que os atuais cristãos não católicos, se não professam as mesmas verdades da Igreja católica, fazem isso sem culpa, estão em boa fé e estão, portanto, na graça de Deus. Essa é - quero repetir - a firme convicção da Igreja católica. E como poderia ser de outra forma, quando basta pensar apenas nos incontáveis Santos membros das Igrejas não católicas? Mas, a essa altura - poderá parecer estranho – eu também tenho uma dificuldade que gostaria de apresentar com toda a franqueza.
Diga-nos qual é.
Vou tentar ser sintético e espero ser claro. Por um lado, o fiel que recebe a Eucaristia deve estar com a Igreja Católica em comunhão plena ou normal. Por outro lado, os atuais cristãos não católicos estão com a Igreja Católica em comunhão verdadeira, mas não plena. Em tal situação, a normativa da Igreja, especialmente no cân. 844, §§ 3-4, estabelece que tais cristãos podem ser admitidos pela Igreja católica e receber a Eucaristia. Existem duas possibilidades: ou a normativa da Igreja católica contradiz a ontologia da comunhão eclesial e aquela dos sacramentos (o que, é claro, deve ser excluído) ou devemos assumir que os cristãos não católicos estão de alguma forma em comunhão plena com a Igreja Católica (mas isso ressoaria, imediatamente, inacreditável, pelo menos de acordo com o que geralmente se acredita). Daí minha dificuldade ou, talvez melhor, um extraordinário desafio de conduzir corajosamente uma nova reflexão.
Qualquer um que deseje saber mais poderia - acredito que de forma proveitosa – consultar a minha contribuição em "Periodica" 107 (2018) 1-35.
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"A comunhão para o cônjuge não católico, eis por que é possível" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU