25 Fevereiro 2022
"Hoje que a imensa riqueza energética de gás e petróleo torna os espaços do antigo império bizantino e seus continuadores e satélites ainda mais estratégicos para o Ocidente, o fantasma de Bizâncio não pode deixar de reinfestá-los, encarnando-se em autocratas que se inspiram em um passado imperial 'romano' e surpreendem-nos por não o recordar", escreve a filóloga e bizantinista italiana Silvia Ronchey, professora da Universidade Roma Tre, em artigo publicado por La Repubblica, 24-02-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Ouvindo o discurso de Putin à nação russa que poucas noites atrás foi transmitido ao vivo pelas telas de TV, computadores, tablets e celulares em todo o mundo e magnetizou uma audiência praticamente global entre o Oriente e o Ocidente; seguindo a longa e sutil liturgia das palavras, observando o simbolismo preciso daquele trono midiático, a exibição, senão a ostentação, da águia bicéfala na bandeira que pairava sobre o autocrata enquanto articulava suas reivindicações imperiais e históricas no berço da antiga Rus' de Kiev, muitos reconheceram, no rosto sem marcas graças à maquiagem e atravessado por impassíveis olhos amendoados, o ícone de um antigo e temível czar.
Não era num Romanov, nem num setecentista Pedro, o Grande que Putin se espelhava, mas no Ivan IV Groznij do século XVI, o "Glorioso", mais conhecido como Ivan, o Terrível, o soberano que refundou a doutrina da autocracia universal do império do qual a Rússia era herdeira: o império "romano" de Bizâncio.
Na segunda metade do século XV, quando o que por onze séculos havia sido chamada de Segunda Roma caiu nas mãos dos turcos, o grande príncipe de Moscou Ivan III - que já exibia o título bizantino de "césar", do grego kaisar, do qual czar - , tinha legitimado o nome de Terceira Roma dado à sua capital não só por direito religioso, como herdeira da ortodoxia, mas também por direito dinástico, graças ao casamento com a última herdeira da família imperial de Constantinopla, Zoé/Sofia Paleóloga. Assim, havia reivindicado a sucessão jurídica do extinto império de Bizâncio e adotado o símbolo, já típico do basileu de Constantinopla, da águia de duas cabeças.
Ivan IV Groznij, neto de Ivan III e Zoé/Sofia, formalizou o imprinting bizantino do império czarista ideológica e pragmaticamente, afirmando nas cartas a Andrei Kurbskij o princípio da legítima sucessão romana dos "césares" de Moscou, reorganizando a administração imperial de acordo com os princípios do estatismo centralista bizantino e sufocando o poder dos boiardos.
A agenda de Putin não foi muito diferente desde sua tomada do poder. O neobizantinismo da autorrepresentação do poder russo se manifesta naqueles salões grandiosos do Kremlin, não acessíveis ao público, mas apenas às representações políticas oficiais, nas quais Putin ressuscitou, sempre sob a insígnia da águia bicéfala, verdadeiros tronos bizantinos esfuziantes de ouro e símbolos de uma religião do poder.
O neobizantinismo de sua agenda política foi explicitado muito cedo e inequivocamente por seus conselheiros e teóricos, em primeiro lugar por aquele chamado de novo Rasputin - mas a definição é até redutiva - que foi seu confessor Tihon Shevkunov, autor de um manifesto programático apresentado em forma de lição de história: A destruição do império: uma lição bizantina, filme de 45 minutos em que Shevkunov voa das cúpulas cobertas de neve de Moscou àquelas de Santa Sofia em Istambul e São Marcos em Veneza. Aqui, diante do famoso tesouro que incorpora os despojos do saque cruzado de Constantinopla em 1204, lança a acusação: desde o protocapitalismo das repúblicas mercantis, o ocidente voraz sangrou o milenar império bizantino, apenas para depois abandonar Constantinopla à horda islâmica de 1453.
A equação era clara. A mesma destruição é infligida ao império de Moscou, herdeiro da autocracia bizantina desde a transmissão, real e figurativa, do DNA de Bizâncio ao nascente império russo. Porque igualmente “genético”, de acordo com a lição do ideólogo de Putin, é o ódio antibizantino dos ocidentais. Se o primeiro erro de Bizâncio foi confiar no Ocidente - personificado em uma sinistra figura encapuzada com uma máscara veneziana de nariz adunco - o mesmo pode acontecer com a Rússia de hoje, infiltrada pelo "espírito judaico da usura" que anima o demônio do capitalismo estadunidense.
Bizâncio caiu porque se deixou contagiar pela modernização importada pelos mercadores genoveses e venezianos. O mesmo arrisca hoje a Rússia, ameaçada pelos empresários estadunidenses e traída pelos gananciosos oligarcas a eles aliados. "Luta contra os oligarcas" chama-se tout court a campanha vitoriosa do basileu bizantino Basílio II contra os magnatas império. Para seus paralelos históricos, Shevkunov já usava as palavras de ordem da política de Putin. E retomavam palavra por palavra as acusações do processo que então realizava contra Boris Berezovskij os juízos que desacreditavam a figura do "pior e mais prejudicial dos oligarcas bizantinos", Bessarion. Porque os verdadeiros traidores do império se aninhavam em sua classe dominante, assim como hoje na Rússia. Somente mostrando que nem a riqueza pode libertá-los da prisão, é que os oligarcas, novos boiardos, podem ser domados e transformados em apparatciki, como no século XI os magnatas do império foram reabsorvidos nas fileiras da burocracia da corte a serviço do autocrata.
O mais autocrático dos czares modernos, Stalin, era afinal um amante da história bizantina: "Stalin sabia com quem aprender", declara Shevkunov. Ao ditador soviético, que por sua vez se comparava ao "terrível" predecessor do século XVI, os estudos bizantinos devem seu grande impulso na URSS do pós-guerra. É tristemente famoso o interrogatório a que Stalin, acompanhado por Zdanov e Molotov, submeteu Sergej Ejzenštejn, autor, sobre Ivan Groznij, de outro filme "bizantino" - como Ždanov o definiu naquela ocasião que, no entanto, fazia do passado um uso oposto daquele propagandístico de Shevkunov.
Naquela "conversa" de 1947 no Kremlin, a acusação levantada contra o diretor convocado no meio da noite era de que ele não conhecia a contento a história de Bizâncio. Se no discurso de Putin à nação a figura de Lenin é sabiamente desvalorizada, culpado de ter excluído, ao projetar a União Soviética, o próprio berço do império russo, a sombra de Stalin pairava entre as câmeras junto com o fantasma de Bizâncio. E não foi por acaso que no dia seguinte a reação mais concreta a esse discurso veio de outro autocrata, o turco Erdogan.
Porque no século XV não foi só o kaisar/czar russo que reivindicou o carma do império que olha, como a águia de duas cabeças, tanto para o oriente como para o ocidente. A partir da tomada de Constantinopla em 1453, o sultão otomano também usará o título de "imperador de Roma" e em seu império a cultura romano-bizantina será continuada de fato. Mehmet II Fatîh, o "Conquistador" e seus herdeiros, não apenas aplicarão o direito romano como direito consuetudinário dos povos cristãos subjugados, mas tomarão emprestadas com respeito e precisão estruturas administrativas e fiscais do império bizantino e manterão sua multietnicidade.
Desde então, uma luta eurasiana de meio milênio opôs os herdeiros da civilização multiétnica romano-bizantina, o império czarista e o islamismo dos sultões pelo controle dos grandes espaços daquela área precisa em que um grande intelectual francês, Fernand Braudel, identificou a entidade geo-histórica que chamou de Mediterrâneo Maior, e que historiadores recentes chamaram de "coração geopolítico do mundo". Até que a queda do império otomano no início e do império russo-soviético no final do século XX reacenderam os confrontos entre etnias que marcaram o turbulento início do século XXI.
Hoje que a imensa riqueza energética de gás e petróleo torna os espaços do antigo império bizantino e seus continuadores e satélites ainda mais estratégicos para o Ocidente, o fantasma de Bizâncio não pode deixar de reinfestá-los, encarnando-se em autocratas que se inspiram em um passado imperial "romano" e surpreendem-nos por não o recordar.
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Putin, César de Bizâncio. Artigo de Silvia Ronchey - Instituto Humanitas Unisinos - IHU