18 Dezembro 2017
Sete anos depois da eclosão de uma onda revolucionária no mundo árabe, apenas a Tunísia consolidou seu processo democrático no norte da África e Oriente Médio. Foi justamente no menor país do Magreb que teve início a insurreição regional que ficou conhecida como Primavera Árabe. O estopim foi o ato desesperado de um jovem vendedor de frutas que ateou fogo ao próprio corpo em protesto contra a opressão. A autoimolação de Mohamed Buazizi, que havia tido seu carrinho e suas mercadorias confiscadas pela polícia em 17 de dezembro de 2010 na localidade de Sidi Buzid, desencadeou uma revolta popular que forçou o ditador Zin el Abidin Ben Ali a fugir do país. Foi a primeira de uma série de revoluções que varreria uma dúzia de nações nos meses seguintes, mas todas as demais continuam sendo autocracias mais ou menos rígidas, como o Egito, ou se transformaram em Estados falidos, caso do Iêmen e Líbia, ou viraram sangrentos campos de batalha, o caso da Síria.
A reportagem é de Juan Carlos Sanz, publicada por El País, 17-12-2017.
Os dois Estados hegemônicos que encarnam as duas grandes correntes do islamismo – Arábia Saudita, sunita, e Irã, xiita – influenciaram algumas dessas revoltas, e as potências globais também aproveitaram para marcar sua presença em um arco muçulmano que vai do Atlântico ao golfo Pérsico. A Primavera Árabe, conceito que serve para fixar o olhar em um período de mutações, desembocou em uma nova guerra religiosa no âmbito islâmico, encenada como guerra mundial de baixa intensidade na Síria. Embora a corrente revolucionária tenha fracassado, e quase todos os seus brotos tenham minguado, algumas transformações foram introduzidas para sempre no cotidiano de jovens e mulheres e, acima de tudo, abriu-se a janela da comunicação através das redes sociais.
Durante os primeiros compassos da Primavera Árabe, Tunísia e Egito se desenvolveram como almas gêmeas. Seus cidadãos, por meio de revoltas pacíficas, derrubaram seus respectivos tiranos, o egípcio Hosni Mubarak e o tunisiano Ben Ali, pondo em marcha processos de transição para a democracia que num primeiro momento levaram o islamismo político ao poder.
A Tunísia é vista pela comunidade internacional como o único caso de sucesso entre as revoltas árabes. As tensões entre forças islâmicas e laicas em 2013 não desembocaram em uma confrontação armada graças ao papel de mediação da sociedade civil, que em 2015 obteve o Nobel da Paz por isso. As eleições do ano seguinte resultaram num Governo de grande coalizão entre antigos adversários, o que serviu para apaziguar os ânimos.
Embora seja verdade que a transição democrática já concluiu suas principais etapas, o processo parece bloqueado, e inclusive alguns analistas alertam para uma possível regressão. Certamente, os tunisianos conquistaram o direito à liberdade de expressão, mas a corrupção que carcomia o Estado durante a era de Ben Ali persistiu, e tampouco os abusos policiais desapareceram totalmente. E a economia, embora salva de um colapso, não trouxe a prosperidade que se previa há sete anos. Daí que muitos tunisianos se sintam decepcionados com uma revolução que não acarretou tantas mudanças como prometera.
No Egito, por outro lado, o Exército provocou uma reviravolta no panorama político com seu golpe de Estado de 2013, e desde então a evolução dos dois países norte-africanos trilhou caminhos diametralmente opostos. Os observadores independentes coincidem em descrever o regime liderado pelo marechal Abdel Fattah al Sisi como sendo ainda mais brutal e autoritário que o de Mubarak. Não por acaso, calcula-se que nos últimos quatro anos até 60.000 pessoas foram presas por razões políticas ou por fazer uso de suas liberdades individuais, e a tortura é moeda corrente nos calabouços. No Egito atual, praticamente não há espaço para qualquer tipo de dissidência.
No âmbito econômico, a situação tampouco é melhor. Por causa do aumento do terrorismo e da instabilidade política, os investimentos estrangeiros e o desembarque de turistas desabaram, o que levou a Governo a tomar uma medida drástica: a flutuação da libra egípcia com relação ao dólar. Em questão de dias, a moeda do país perdeu metade de seu valor, fazendo a inflação disparar para cerca de 30% e empobrecendo a aflita classe média. Assim, poucos agora comemoram o aniversário daquele 25 de janeiro em que tudo começou a mudar.
Na Líbia, a principal mudança que sobreveio depois do assassinato de Muamar al Gadafi foi o ar de liberdade. As ruas se povoaram de bandeiras, de cânticos, de jornais e de discussões impensáveis um ano antes. Mas logo ficou claro que ninguém tinha pensado em como construir a paz. As lutas entre facções, entre o leste e o oeste do país, criaram um vazio de poder que o Estado Islâmico aproveitou para se assentar em Sirte, a cidade natal de Gadafi, de onde só seria expulso no ano passado. O ex-presidente norte-americano Barack Obama admitiu em 2016 que o “pior erro” de seu Governo foi “não planejar o dia seguinte à decisão correta de intervir na Líbia”.
Sete anos de diálogo com todo o apoio da comunidade internacional não serviram para selar a paz entre o leste e o oeste da Líbia. O petróleo continua sendo a principal fonte de riqueza para os seis milhões de habitantes do país, mas a economia se ressentiu dos sete anos de confrontos. Em meio ao vazio de poder surgiram máfias de traficantes que lucram à custa dos migrantes subsaarianos – e também magrebinos – que tentam cruzar o Mediterrâneo para chegar clandestinamente à Europa. A liberdade foi diminuindo à medida que as milícias assumiram maiores parcelas de poder.
Encerrando o sétimo ano de guerra, os maciços protestos populares que eclodiram na Síria em março de 2011 ficaram para trás. A caminho das armas, alimentado primeiro pela repressão estatal e mais tarde pela ingerência de potências regionais, acabou por privar os sírios do seu próprio futuro, hoje nas mãos da Turquia, Arábia Saudita, Irã, Estados Unidos e Rússia.
O balanço da guerra é desolador. Mais de 340.000 pessoas perderam a vida, sendo um terço delas civis. Metade da população abandonou seus lares por causa dos combates: cinco milhões se refugiaram nos países vizinhos, e outros 6,5 milhões foram deslocados internamente. A fatura econômica da reconstrução se aproxima dos 800 bilhões de reais, ao mesmo tempo em que as duas principais fontes de renda do país – petróleo e agricultura – desabaram. A guerra destruiu quase metade dos centros médicos e escolas da Síria.
A vertiginosa depreciação da libra síria fez a poupança dos cidadãos evaporar. Os cercos, os acordos de deslocamento e a volatilidade das frentes de batalha causaram drásticas mudanças demográficas, com um maciço êxodo rural que sufoca e empobrece as principais cidades. Atualmente, as tropas de Bashar al Assad recuperaram dois terços do país, e os focos da guerra estão mais concentrados.
Das palavras de ordem gritadas pelas ruas sírias em 2011, a única que se materializou foi a liberdade propiciada pelas redes sociais. Exaustos, os sírios hoje clamam por segurança, escola para seus filhos e hospitais para seus pais. Regressar não é uma opção para parte dos refugiados internos e externos, convencidos de que a repressão os esperaria.
Entre janeiro e fevereiro de 2011 a Primavera Árabe chegou ao Bahrein e ao Iêmen. Inspirados pela coragem dos tunisianos e egípcios, os jovens desses dois países também foram para a rua pedindo democracia. Como aqueles, também conseguiram atrair outros setores sociais enquanto gritavam em coro que “o povo quer a queda do regime”, mas as semelhanças terminam por aí. A transição exemplar que parecia ocorrer no Iêmen desembocou em uma guerra civil atiçada pelas rivalidades das potências regionais. No Bahrein, nem sequer houve um instante de esperança: à repressão interna somou-se o silêncio internacional. Foram duas revoltas muito distintas entre si.
No Iêmen, um dos países mais pobres do mundo, a Revolução, como a chamavam seus líderes, serviu de guarda-chuva para que as diversas forças centrípetas do país tratassem de promover seus interesses. Aquela aliança impossível – universitários idealistas, separatistas do sul, rebeldes houthis do norte, desprestigiados partidos políticos e ativistas islâmicos tentando pescar alguma sobra – nunca teve outro objetivo comum senão enfrentar as três décadas de poder de Ali Abdullah Saleh.
Mas sua saída do poder em 2012 (mais pela pressão internacional do que das ruas) lhe deixou a imunidade e a capacidade de manobra que permitiu o golpe houthi, desatando a intervenção militar saudita. Hoje, a pobreza se transformou em miséria, 7 de seus 26 milhões de habitantes passam fome, e um milhão foram contaminados pelo cólera. Além disso, abriu-se uma divisão sectária que não existia, entre os yazidis, que seguem um ramo do islamismo próximo do xiismo e compõe 40% da população, e em cuja defesa os houthis se arvoram, e o resto da população, que é sunita. A situação se deteriorou a tal ponto que se lamentou a morte de Saleh por combatentes houthis, no começo deste mês.
No Bahrein, um país comparativamente rico, a reivindicação de maior representatividade política foi estimulada por diferenças comunitárias. O peso dos xiitas, que representam dois terços dos 750.000 bahrenitas e há décadas se queixam de discriminação, conferiu um matiz sectário aos protestos, que a família governante Al Khalifa (sunita) reprimiu sem contemplações e com a ajuda de tropas sauditas e emiradenses. A recusa em dialogar, refletida na destruição da praça da Pérola (onde se instalaram os indignados), radicalizou os manifestantes, que passaram de pedir uma monarquia constitucional a bradar pela morte do rei.
Desde então, a revolta se transformou num conflito de baixa intensidade, enquanto o Estado encarcerou dezenas de ativistas pacíficos e cerceia direitos e liberdades, perante o silêncio cúmplice da comunidade internacional. Não querendo pôr em perigo a sua base naval de Manama, os EUA (que ali mantêm a sede do seu Comando Central das Forças Navais) e em menor medida a União Europeia fecharam os olhos à falta de consequências do relatório da Comissão Independente de Investigação com a qual o monarca quis lavar sua imagem.
O presidente Abelaziz Buteflika, que estava havia 12 anos no poder, conseguiu furar a onda de manifestações sem empreender grandes mudanças. “Revisou-se a Constituição em 2016”, observa o diretor do jornal digital TSA, Lounes Guemache, “mas sem que houvesse uma evolução democrática nem um processo de abertura. Prova disso é que nas próximas eleições presidenciais, em 2019, só cabem duas opções: ou Buteflika se apresenta para um quinto mandato (apesar de não se dirigir diretamente à nação desde 2012) ou será designado o homem que o chamado ‘poder’ indicar como candidato”.
Entretanto, o impacto da Primavera Árabe teve uma consequência econômica evidente. “O Governo”, prossegue Guemache, “autorizou a partir de 2012 uma importante alta nos salários. Consequentemente, o consumo aumentou, e as importações também. Além disso, houve uma política muito generosa em matéria de moradia e crédito para que os jovens fundassem empresas”. Os críticos consideram que Buteflika conseguiu se sustentar comprando a juventude.
Finalmente, as pessoas se olharam no espelho da Síria e Líbia e decidiram se resignar. “Mesmo os que desejam uma mudança política têm medo desses casos. Querem uma mudança, mas com calma”, conclui o jornalista.
No Marrocos, a onda de revoltas no mundo árabe impulsionou a aprovação, num referendo de julho de 2011, de uma nova Constituição que substituiu a de 1996. A nova Carta Magna transferia ao primeiro-ministro alguns poderes do rei, mas Mohamed VI continuava mantendo inclusive a capacidade de destituir o chefe de Governo. Com o passar dos anos, os protestos foram se apagando, e o poder do monarca se reafirmou. O Movimento 20 de Fevereiro, que promoveu os protestos, está quase extinto.
Mas repente, em 28 de outubro de 2016, em Al Hoceima (norte), um vendedor de peixes morreu esmagado num caminhão de lixo ao tentar impedir o confisco da sua mercadoria. Milhares de jovens voltaram a sair às ruas reivindicando melhoras sociais na região do Rif. Parecia que a “primavera” voltava a brotar, da mesma forma que em 2011. Mas, após oito meses de protestos tolerados, o Estado optou pela repressão. Mais de 400 jovens permanecem sob custódia atualmente, segundo a Anistia Internacional.
Para muitos ativistas, o país sofreu uma regressão em suas liberdades nos últimos sete anos. Entretanto, outros acreditam que aquela chama da primavera não ardeu em vão, e que seu efeito cedo ou tarde se fará notar.
Apanhada entre os conflitos da Síria e do Iraque, sob o olhar atento de Israel e da Arábia Saudita, a Jordânia se esforça para permanecer como uma ilha de estabilidade no Oriente Médio. O complexo equilíbrio demográfico do país, entre clãs de beduínos e a população de origem palestina, se viu alterado desde 2011 pela chegada de um milhão de refugiados sírios, o equivalente a 10% da população. Centenas de combatentes jordanianos que se alistaram nas fileiras do jihadismo na Síria e no Iraque estão agora retornando ao reino.
A Jordânia se livrou dos sobressaltos da Primavera Árabe. Depois dos primeiros protestos, o rei Abdullah II se comprometeu a impulsionar um processo de reformas denominado Agenda Nacional. O monarca tenta manter dentro do tabuleiro político a Irmandade Muçulmana, principal grupo de oposição. Ao contrário do que ocorreu no Egito depois do golpe que derrubou o presidente islâmico Mohamed Morsi, em 2013, Amã não proibiu a Irmandade Muçulmana e tolera sua atividade. O ramo jordaniano desse grupo islâmico não prega a abolição da monarquia, mas reivindica uma redução das amplas atribuições executivas do rei.
Depois de ter boicotado as duas eleições anteriores, os políticos muçulmanos apresentaram candidaturas no pleito legislativo de 2016, onde sua coalizão somou 15 dos 130 assentos em disputa. O programa da Irmandade Muçulmana insiste na aplicação das reformas democráticas prometidas pelo soberano hachemita depois da eclosão da Primavera Árabe, as quais ainda continuam pendentes.
O país mediterrâneo acabou sendo uma exceção na cronologia da Primavera Árabe. Em 2005, o assassinato do ex-primeiro-ministro Rafik Hariri já desencadeara a chamada Revolução dos Cedros, com imensos protestos que provocaram a retirada das tropas sírias após 29 anos de presença no país. O espectro político libanês se dividiu em dois blocos: a liderança xiita do Hezbollah e a sunita de Saad Hariri, filho do dirigente assassinado. Desligados da tutela direta de Damasco, a Primavera Árabe passou longe do Líbano.
A guerra síria destruiu as boas expectativas econômicas, atrapalhadas pela fuga do turismo, pela redução das remessas financeiras e pelo ônus de acolher 1,5 milhão de refugiados sírios – que representam 25% da população total –, solapando a já deficiente infraestrutura libanesa. Os líderes políticos conseguiram forjar um consenso tácito para preservar o Líbano de uma nova guerra civil e do jihadismo importado da Síria, sem no entanto dissipar as tensões que aprofundam a divisão entre xiitas e sunitas.
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Sete anos de frustração desde a eclosão da Primavera Árabe - Instituto Humanitas Unisinos - IHU