Em debate promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, especialistas dissecam os motivos para o crescimento do ‘centrão’ e a dificuldade da esquerda em atingir a periferia
A vitória de Lula sobre Bolsonaro não foi suficiente para conter o avanço do bolsonarismo e da centro-direita nas eleições de 2022. Esse cenário se consolidou de vez nestas eleições municipais de 2024: o centrão – leia-se centro-direita e extrema-direita – saiu do pleito como o grande vencedor. “Os partidos do Centrão, que têm assento no ministério do Lula, PSD, União Brasil, MDB, PP e Republicanos tiveram 3.486 prefeituras, o que representa 62% de todo o Brasil. Além disso, eles pegaram capitais importantes”, comenta Gilberto Maringoni de Oliveira na mesa “Eleições 2024 em debate I”, promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Durante o evento online, outro fato ficou evidente: a esquerda (e o PT) precisa se reinventar para atingir a massa e se reconectar com a periferia e os pobres. A derrota, ainda não concretizada mas esperada em São Paulo e Porto Alegre, destaca justamente essa perda de força e esse deslocamento do que a sociedade – em especial a classe trabalhadora – quer e espera. “Digo que ela [esquerda] está fora do nosso tempo, está no passado. Não tem uma estratégia, não há um plano nacional [...] Até mesmo questões que deveriam ser importantes como a questão ambiental, há poucos candidatos de esquerda falando sobre esse tema”, pontua Aldo Fornazieri.
Mas nem só de derrotas vive o campo da esquerda. O aumento de vereadores que defendem as causas LGBTQIA+ (como em Porto Alegre) e a ascensão de Natália Bonavides, candidata do PT que disputa o segundo turno em Natal, dão o alento de que novas lideranças podem surgir. Segundo Fabrício Pontin, as vitórias dos candidatos LGBTQIA+ reforçam a importância de fazer política de base e que, se bem-feita, ela compensa e recompensa.
O debate discorreu sobre mais assuntos relacionados às eleições municipais de 2024. A seguir, reproduzimos os principais temas discutidos pelos participantes.
Aldo Fornazieri é professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). Possui licenciatura em Física pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, mestrado em Ciência Política pela Universidade de São Paulo – USP e doutorado em Ciência Política pela USP. Foi diretor acadêmico da FESPSP entre 2006 e 2017 e coordena do curso de pós-graduação Globalização, Poder e Sociedade da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
Cesar Sanson é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, atuando na docência e na pesquisa com as temáticas Sociologia do Trabalho e Sociologia do Brasil. Possui graduação em Filosofia e História pela Pontifícia Universidade Católica – PUCPR, com especialização em Economia e Trabalho pela Universidade Federal do Paraná – UFPR.
Gilberto Maringoni de Oliveira é jornalista, cartunista e professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC – UFABC, tendo lecionado na Faculdade Cásper Líbero e na Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP. É doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – USP e graduado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da mesma instituição.
Fabrício Pontin é professor assistente de Direito e Relações Internacionais na Universidade La Salle, em Canoas. Graduado em Direito, também é mestre em Filosofia pelaPontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS e doutor em Filosofia pela Southern Illinois University, com estágio de pesquisa no Instituto de Pesquisas Avançadas em Filosofia Social e Política da Universidade de Bergen, da Noruega. Realizou estágio pós-doutoral no Centro Brasileiro de Pesquisa em Democracia.
Debatedores no evento "Eleições 2024 em debate I"
Mesmo com resultados ainda para serem contabilizados após o segundo turno, há um consenso: o Brasil saiu destas eleições com a cara do centro-direita. Partidos como PSD, MDB, PP, União Brasil e Republicanos foram os grandes vencedores do pleito. O PL, partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, embora não tenha atingido o número esperado de municípios conquistados, sai fortalecido e com cartas na manga para as eleições de 2026.
“A vitória do Centrão foi avassaladora. Eles já começam a sinalizar uma possível inserção estratégica para 2026, considerando a disputa entre lulismo e bolsonarismo. [...] Tarcísio é hoje o candidato da direita, junto com a extrema-direita, mas Kassab ponderou: ‘Acho que não dá para disputar com Lula em 2026’. Assim, Tarcísio deve concorrer à reeleição e o PSD pode apresentar Ratinho Junior como seu candidato para tentar reviver uma ‘terceira via’”, cita Cesar Sanson.
Os dados já foram citados anteriormente, mas para reforçar a enormidade que representou essa vitória: 62% de todo Brasil, ou seja, 3.486 prefeituras, foram para o PSD, União Brasil, MDB, PP e Republicanos, partidos que fazem parte da base do governo Lula.
Esses números avassaladores do centrão podem – e devem – aumentar com os resultados previstos para os segundos turnos. Em São Paulo, por exemplo, o cenário é desfavorável a uma virada de Guilherme Boulos (PSOL) e parte dessa culpa reside na própria campanha do candidato. Segundo Gilberto, a campanha do psolista é “a mais cara já feita pela esquerda na capital paulista (R$ 60 milhões de reais)”, mas faltou estratégia, linha, marca e resgatar a história dele, ocultada em meio ao marketing.
O jornalista destaca que, ao mudar sua maneira de se comportar, sua indumentária, o uso do sapatênis, do blazer, o corte de cabelo e barba, Boulos “ficou parecendo um deputado comum” e aconteceu um certo esvaziamento da sua história, que o levou a ser uma liderança importante no campo da esquerda. “Sua campanha do coraçãozinho, da pacificação, do ‘amamos a todos’ em um quadro em que a política brasileira acabou de sair de uma radicalização extrema não empolga a militância”.
Além disso, uma eleição, diz Gilberto, é “a lógica do choque de projetos” e, ao entregar sua estratégia ao marketing, houve um processo de humanização do candidato que, simultaneamente, deixou a campanha sem foco e linha. A coordenação de Boulos ressalta o caderno de propostas com mais de 100 projetos, porém, pontua o jornalista, “quem tem 100, na verdade, não tem nenhum”, e cita Brizola, Marta Suplicy e Lula: “o Brizola teve o CIEP, a Marta teve o bilhete único e os CEUs, o Lula tem a justiça social. E o Boulos? Ele não tem uma marca definida. Isso é um problema para a campanha”.
Se a centro-direita foi a grande vencedora das eleições de 2024, a esquerda saiu derrotada e em crise. Até mesmo as áreas de foco da esquerda como as políticas sociais e os programas de transferência de renda como o Bolsa Família foram implementados e assumidos pela direita. Isso acarreta uma dificuldade de conexão com a periferia e com as camadas mais populares da sociedade.
Um exemplo disso é o diálogo com a classe trabalhadora em um mundo com uma dinâmica trabalhista diferente de quando o PT surgiu, época da fábrica e do fordismo. A atualização é necessária, mas o partido parece preso no tempo. Essa mudança, afirma Gilberto, afetou – e ainda afeta – não só o PT, mas toda uma esquerda mundial que, nos últimos 35 anos, sofreu com a derrocada do socialismo real e “também à queda da social-democracia europeia, que era fortemente baseada na vida sindical e no mundo do trabalho”.
Essa mentalidade fordista e ultrapassada do PT ficou evidente no Projeto de Lei (PL) dos Aplicativos, elaborado dentro pela Ministério do Trabalho com a ajuda dos sindicalistas. O projeto foi criticado tanto pela esquerda quanto pela direita, mas principalmente pela categoria dos entregadores. O problema foi: uma pauta da esquerda, que poderia ser usada para melhorar a vida dessa classe e engajá-los para este lado do espectro político foi entregue de bandeja para a extrema-direita. “Hoje, a discussão sobre a regulação dos trabalhadores de aplicativo está nas mãos de um deputado do PL. O governo falhou em perceber o que está acontecendo”, comenta Cesar.
Parece haver uma desconexão da esquerda com a classe trabalhadora e isso, aliado a figuras como Pablo Marçal e a um discurso de empreendedorismo, acaba acarretando um voto massivo dessa parcela da população na extrema-direita. “Marçal [...] não apela para a religião ou milagres. Ele promete que a pessoa terá uma vida melhor porque é capaz, individualizando o esforço. Esse discurso se encaixa perfeitamente no individualismo ‘uberizado’, na ideia de ser um empreendedor de si mesmo. Ele aponta para o futuro”, reforça Gilberto.
Para Aldo, três pontos sintetizam a crise na esquerda: identidade, direção e sentido. “A esquerda parece não saber mais quem é. E se você não sabe quem é, como pode dar direção e sentido para suas ações? Essa falta de identidade se reflete na liderança política, que, em seu sentido amplo, deveria ser capaz de orientar e oferecer um projeto claro”, afirma. Como exemplo, o doutor em Ciência Política coloca o governo Lula 3, que poderia ter usado a questão ambiental de vitrine para uma nova retórica política, mas isso não aconteceu por falta de direção. “A transição ecológica, junto com a transição digital, poderia ser um caminho inovador para a política brasileira, gerando transformações socioeconômicas importantes. No entanto, falta direção. Não sabemos para onde estamos indo e, pelo andar das coisas, parece que vamos saber cada vez menos”.
Na mesma linha, Cesar critica o governo atual que, segundo ele, nas questões centrais como educação, territórios indígenas e meio ambiente, tem sido pouco ousado. “O que há de novo no governo Lula? Na educação, muito pouco. Na agenda dos territórios – como MST e indígenas –, nada. Poucos territórios demarcados”, lamenta.
Segundo Gilberto, o rebelde, antes de esquerda, hoje é de direita. Tomando como base o livro do historiador argentino Pablo Stefanoni, “A rebeldia tornou-se de direita?”, o jornalista comenta que o movimento antissistema foi dominado por pessoas como Pablo Marçal. “Para muitos, o sistema são as regras concretas que atrapalham suas vidas: o imposto alto, o radar na estrada, o fiscal que me impede de vender na rua, o agente do Ibama que me multa por cortar madeira. [...] E a direita antissistema se coloca contra isso”.
O futuro e a rebeldia eram elementos fundamentais para a esquerda como forma de atrair a juventude. Isso não é visto na esquerda atual, como na campanha de Boulos em São Paulo. “A figura do Padre Marçal, por exemplo, é a antítese da imagem comportada da esquerda paulistana: ele aparece com a barba por fazer, usando um boné e uma camisa qualquer. Isso contrasta com o estilo ‘sapatênis e blazer’ que a esquerda adotou, com uma aparência controlada e planejada”, destaca.
Até mesmo na simbologia usada pelos espectros a esquerda parece fechada em si mesma. Marçal, demonstra Gilberto, usa o M para lembrar um tridente de forma agressiva expansiva, Bolsonaro também com sua arma em movimento, a esquerda e Boulos se fecham no coração, algo estático. A campanha de Boulos “quer unir todos, mas acaba paralisada, sem provocar atrito ou romper com o status quo. Assim, mesmo com muito investimento, a campanha parece não sair do lugar, tentando conciliar o que, até pouco tempo atrás, parecia inconciliável”.
A campanha do PT em Porto Alegre, ao lançar a candidata Maria do Rosário, exemplifica o apego ao legado, a dificuldade de renovar os quadros e perceber o apelo da sociedade. A rejeição à candidatura da ex-deputada foi imediata, embora a cidade de Porto Alegre tenha mostrado avanços para a esquerda nos últimos anos: Lula garantiu vitória em 2022 e Edegar Pretto, candidato ao governo estadual, teve alta votação na capital.
Segundo Fabrício, a capital gaúcha estava disposta a votar à esquerda se o candidato fosse adequado e vinculado à cidade. “Porto Alegre puniu fortemente a escolha do nome de Maria do Rosário, enquanto Melo conseguiu se posicionar como alguém mais próximo das demandas locais. [...] Isso nos deixa um importante aprendizado: o distanciamento da política tradicional em momentos críticos, como crises ambientais, pode custar caro para partidos que não se adaptam às expectativas imediatas dos eleitores”, afirma.
O erro do PT fica ainda mais claro quando se olha para os vereadores eleitos na cidade. Duas pessoas trans e um coletivo que defende os direitos LGBTQIA+ foram eleitas, além de ter havido um crescimento expressivo na bancada da esquerda. Isso mostra, segundo Fabrício, que candidatos mais ligados à cidade, com mais força no cenário municipal poderiam ter feito frente a Melo neste pleito. “Penso no quanto estamos perdendo em termos de talentos políticos devido a certas dinâmicas partidárias. [...] Tivemos três opções muito fortes: Laura Sito e Leonel Radde, pelo PT, e Matheus Gomes, pelo PSOL [...] No entanto, esses três nomes não foram cogitados, pois não era ‘a vez deles’. E todos eles têm vínculos sólidos com a cidade e poderiam mobilizar a população de forma mais efetiva”, finaliza.
As enchentes de maio de 2024 seguem reverberando na sociedade e política gaúcha. Grande parte do debate eleitoral gira em torno da catástrofe ambiental: o mal gerenciamento durante a crise, as soluções depois do ocorrido e os projetos para o futuro. À primeira análise, imagina-se que prefeitos que tiveram um mau gerenciamento no período não seriam eleitos. Isso não se mostrou na realidade.
O aumento nas abstenções, especialmente nos três vales mais atingidos (Taquari, Caí e Jacuí), ocorre por dois motivos, segundo Fabrício: infraestrutura (colégios eleitorais inoperantes por conta do desastre, áreas ainda destruídas e dificuldade de locomoção) e frustração com a política, intensificada por influencers. “Essas narrativas oportunistas, apoiadas no discurso ‘pelo povo e para o povo’, ganharam força entre os afetados e alimentaram o antagonismo em relação ao processo eleitoral. Esse ceticismo não é novo; ele vem se intensificando desde 2014, com picos em 2016, mas se tornou especialmente evidente nesta eleição”, comenta.
Ao observar os resultados nos vales mais atingidos, Fabricio notou “em alguns casos, o prefeito em exercício foi reeleito”, mas onde eles enfrentaram candidatos com discurso antissistema, especialmente da extrema-direita, eles perderam. “Candidatos de direita ou esquerda mais tradicionais, que apresentaram discursos institucionais, conseguiram vencer. Já aqueles que enfrentaram adversários com retórica anti-institucional perderam”.
Um exemplo disso é o município de São Leopoldo, polo do PT desde a criação do partido. Ary Vanazzi, atual prefeito, teve seu trabalho reconhecido durante as enchentes pelo apoio à população e ação rápida nos problemas. Ainda assim, seu sucessor, Nelson Spolaor, foi derrotado por um candidato do PL, o Delegado Heliomar. “Esse resultado é um exemplo claro da força do discurso antissistema, mesmo diante de uma gestão municipal reconhecida como eficiente”, cita.
No Nordeste, há notícias boas e ruins para a esquerda. Por um lado, foi nesta região que o PT obteve seu maior número de prefeituras. No entanto, na Bahia, por exemplo, o partido não venceu nenhuma cidade grande: perdeu em Salvador, Feira de Santana, Lauro de Freitas, Simões Filho, Ilhéus e Barreiras, embora ainda tenha chance no segundo turno em Camaçari. Enquanto isso, o centrão e a direita tomaram boa parte dessas cidades e das capitais.
“É preciso qualificar e quantificar essas prefeituras vencidas pelo PT. Em geral, são cidades pequenas. Não se trata de desmerecer cidades, mas sim de avaliar o peso que o partido tem nos centros dinâmicos da economia e da cultura da sociedade política brasileira. O PT chegou ao auge do número de prefeituras em 2012 que combina com o auge do lulismo com aproximadamente 600 prefeituras”, comenta Gilberto.
Ainda há esperança para o PT em duas capitais nordestinas: em Natal, com a jovem petista Natália Bonavides, e em Fortaleza com Evandro Leite. “Essa jovem deputada federal [Natália] tem um conteúdo programático sólido e carismático, sendo uma liderança promissora. Eu diria que ela está à esquerda de Boulos, pois não faz concessões em suas posições. Se vencer em Natal, será uma conquista importante, embora a cidade tenha forte viés conservador, e Paulinho Freire conte com o apoio do bolsonarismo”, diz César.