Pauta nacional-desenvolvimentista petroleira do século XX versus agenda socioambiental para o século XXI. Entrevista especial com Carlos Marés, Bruce Albert e Maurício Angelo

Entrevistados analisam os efeitos das disputas socioambientais em curso no governo Lula 3

29 Mai 2023

A aprovação da MP 1150/22, que flexibiliza a Lei da Mata Atlântica, e a aprovação da urgência para a votação do PL 490, sobre o marco temporal das terras indígenas, na Câmara dos Deputados na semana passada, indica “o avanço dos setores mais atrasados e mais à direita para contrapor os avanços do poder Executivo”, destaca Carlos Frederico Marés de Souza Filho, na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Segundo ele, as votações da Câmara também podem ser interpretadas como “uma espécie de xeque-mate ao Supremo Tribunal Federal – STF”, para que as votações relativas ao marco temporal e às questões ambientais não avancem nos próximos dias.

Na avaliação de Bruce Albert, elas indicam uma reação do parlamento à decisão técnica do Ibama de impedir a exploração de petróleo na foz do Amazonas. O Congresso, sublinha, “retrucou à esta decisão acertada do Ibama com uma saraivada de votações antiecológicas e anti-indígenas: Mata atlântica, Marco Temporal, desmonte do Ministério do Meio Ambiente – MMA e do Ministério dos Povos Indígenas – MPI”. A situação, observa, “abriu uma crise política que colocou em plena luz a contradição embutida no projeto de governo Lula 3, que pretende conciliar uma pauta nacional-desenvolvimentista petroleira do século XX e uma agenda socioambiental para o século XXI”. As últimas votações da Câmara, acrescenta, contaram “com a cumplicidade e/ou a omissão da bancada do PT e com Lula declarando que ‘se sentiu traído’ pela Marina Silva!”. A situação “configura uma renúncia política imperdoável de um governo dito ‘de esquerda’ frente ao retrocesso colonial e ecocida que incarna a maior parte do Congresso”, disse na entrevista a seguir, concedida por e-mail.

Maurício Angelo destaca que as frustrações internas no governo depois das votações e disputas em relação às pautas socioambientais “mostram que estamos vendo, na prática, a dificuldade de cumprir o discurso que Lula fez em 2022, o discurso feito na COP27, no Egito, no ano passado, o discurso diário do governo em certas instâncias, na internacional especialmente”. Lamentavelmente, sublinha na entrevista concedida por WhatsApp, “muitos, dentro do governo e do PT, são favoráveis a pautas e projetos extrativistas que até hoje são vendidos como capazes de dar soluções para todos os problemas do país”.

A seguir, os entrevistados comentam e analisam a conjuntura política brasileira à luz das disputas socioambientais em curso no país.

Confira as entrevistas.

Carlos Marés (Foto: Reprodução | YouTube)

Carlos Frederico Marés de Souza Filho é graduado, mestre e doutor em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. É procurador do Estado do Paraná desde 1981. Integra o Programa de Mestrado e Doutorado da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, onde é professor titular de Direito Agrário e Socioambiental. Foi presidente da Fundação Nacional do Índio – Funai, procurador-geral do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra e diretor do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul. É sociofundador do Instituto Socioambiental – ISA.

IHU – Na semana passada, a Câmara aprovou a MP 1150/22, que flexibiliza a Lei da Mata Atlântica e aprovou a urgência para a votação do marco temporal de terras indígenas. O que isso significa e indica no atual contexto político?

Carlos Frederico Marés de Souza Filho – A aprovação da MP 1150/22, que flexibiliza a Lei da Mata Atlântica e a aprovação da urgência para a votação do marco temporal das terras indígenas significa, em última instância, o avanço dos setores mais atrasados e mais à direita na Câmara justamente para contrapor os avanços do poder Executivo, ou seja, das políticas públicas. Como houve, durante a campanha, uma polarização, e as políticas públicas pró-indígenas, pró-meio ambiente e pró-agroecologia e assentamentos de reforma agrária foram fortemente colocadas em discussão pelo então candidato Lula, contra o risco de que elas efetivamente avancem, todos os setores mais à direita e centro-direita da Câmara estão tentando mostrar que não vão permitir isso. Na Câmara essas políticas encontram um atendimento negativo. Então, a votação dessas medidas é um movimento político da Câmara.

A urgência em relação ao marco temporal é uma resposta ao Supremo Tribunal Federal – STF, que acaba de pautar e complementar a discussão. A tentativa da Câmara de aprovar a urgência e votar a matéria rapidamente, antes mesmo que o STF decida uma lei que aprove o marco temporal, é uma espécie de xeque-mate ao Supremo, uma espécie de pressão para que o Supremo não avance. É uma pressão extemporânea porque o Supremo vai ter que votar a matéria, isso já está marcado e, provavelmente, a discussão vai ter desdobramentos nas próximas semanas.

A pressão ao Supremo não tem muita eficácia, tendo em vista que a própria tese do marco temporal, caso seja aprovada, assim como a transferência da demarcação das terras para o Congresso, não seriam aprovadas como lei. Se forem aprovadas como lei, elas são claramente inconstitucionais e, portanto, serão rediscutidas no Supremo. Tudo isso implica em mais trabalho, mais discussões e mais complexidade para o reconhecimento dos direitos. É nesse marco que estamos neste momento. Todas as pressões da Câmara são para que o Estado brasileiro, no poder Executivo, não avance. E parece que não está avançando mesmo.

IHU – De que forma essas medidas representam um enfraquecimento da área socioambiental do governo?

Carlos Frederico Marés de Souza Filho – As medidas representam um enfraquecimento, sim, e esta é a tentativa da Câmara: enfraquecer, dentro do governo, não só as áreas socioambientais, como também as áreas ligadas à reforma agrária, que estão associadas ao processo socioambiental.

IHU – Como o governo está reagindo a essas movimentações? Como avalia a postura do governo diante dessas medidas?

Carlos Frederico Marés de Souza Filho – O governo Lula, como reagiu durante os oito anos dos dois primeiros governos, reage contemporizando. Assim foi, por exemplo, quando houve um avanço grotesco sobre o Programa de Aquisição de Alimentos – PAA, com a Operação Agro Fantasma [conduzida pelo então juiz federal Sérgio Moro, em 2013]. Lula recuou em muitas questões e tentou deixar as políticas mais amenas para que fossem mais acertadas, o que prejudicou muito o programa e os camponeses. É necessário posições dos movimentos sociais para que o governo não ceda tanto.

IHU – Em que medida o governo pode vir a ceder a essas pressões e mudar a condução de suas pautas socioambientais?

Carlos Frederico Marés de Souza Filho – É muito difícil responder a esta questão. A pressão é dos dois lados porque os movimentos sociais também vão começar a pressionar. Os Movimentos da Terra já começaram a dar mostras disso, os movimentos indígenas também, então, haverá um embate que é mais ou menos previsto neste momento histórico em que vivemos. Não há como não haver enfrentamento neste momento porque é certo que a direita que perdeu a eleição – bem perdida porque apesar de todas as medidas tomadas pelo governo Bolsonaro para influenciar a eleição e modificar o resultado dela, ele foi derrotado nas urnas – está disposta a qualquer mobilização para não permitir que haja um avanço das posições mais à esquerda; é isso que está acontecendo. Mas os movimentos sociais também começam a se movimentar.

IHU – A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, declarou que “há uma certa frustração” com esvaziamento da pasta. A ministra Marina Silva está envolvida em disputas com o ministro de Minas e Energia. O que esse cenário sinaliza? É possível um novo rompimento entre Marina e Lula, como ocorreu no passado?

Carlos Frederico Marés de Souza Filho – É bem verdade que tanto Sonia quanto Marina têm posições muito firmes em relação ao meio ambiente e aos povos indígenas, mas não acho que seja o momento de rompimento agora. Este é um governo em disputa e as duas grandes mulheres que hoje são ministras estão disputando espaço – que não é espaço somente no governo, mas na política em geral – para avanços tanto em relação aos povos indígenas quanto em relação ao meio ambiente. Agora, mais claro do que nunca, essas duas pautas são pautas comuns, que se somam e sempre se somaram, embora, às vezes, ficassem meio separadas. Hoje, as três pautas – reforma agrária, povos indígenas e tradicionais e meio ambiente – estão sendo jogadas juntas e isso representa um fortalecimento para as pautas sociais e populares. Quer dizer, os movimentos populares hoje, ao se juntarem, estão muito mais fortes do que eram no passado.

IHU – Qual o papel de outros agentes, como a Igreja, que celebrou a Semana Laudato Si’ nos últimos dias, e as organizações da sociedade civil, na disputa pela condução da pauta socioambiental diante do atual Congresso, que está atrelado a lógicas desenvolvimentistas do passado?

Carlos Frederico Marés de Souza Filho – Cada agente tem papéis diferentes. A Igreja sempre teve um papel importante nas disputas sociais, seja pró ou contra. Não só a Igreja católica, mas ela tem, na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, um marco de avanço. Hoje, o Papa Francisco propõe pautas parecidas com as dos indígenas, as do meio ambiente e da reforma agrária. O papel da Igreja é grande.

As demais organizações da sociedade civil têm importância à medida que se articulam com os movimentos sociais. Sem dúvida a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST têm um papel importante porque articulam movimentos sociais, organizações da sociedade civil e movimentos ambientais. As organizações que não articulam movimentos sociais diretamente não têm um papel determinante no processo.

Entretanto, a influência dos movimentos sociais, das organizações e da Igreja é menor no Congresso do que em outros espaços da vida pública nacional. O Congresso é muito viciado do ponto de vista das articulações da esquerda. A esquerda não tem maioria no Congresso, nunca teve. Na lógica como se elegem os deputados hoje, inclusive na lógica de distribuição espacial por estados, a esquerda não tem muitas condições de vir a ter um poder muito forte. Por isso mesmo as organizações sociais têm menos influência no Congresso. O Congresso será sempre o estamento que segura o processo de avanço das pautas sociais.

Não acho que o Congresso esteja atrelado a lógicas desenvolvimentistas. A pergunta refere-se a lógicas desenvolvimentistas do passado, mas diria que são lógicas de um passado ainda mais distante. A ideia de desenvolvimento atrelada ao Congresso ainda é a de desenvolvimento com grande agressão à natureza, baseada no agronegócio de expansão e nas lógicas da Revolução Verde, contra a natureza, os povos e o patrimônio cultural. Essa é a pauta e o desenvolvimentismo do Congresso hoje. Isso significa um não desenvolvimentismo porque não visa o desenvolvimento do país.

A lógica do Congresso é firmar o Brasil como vendedor de commodities arrancadas da natureza, sejam minerais ou agrícolas. Isto é um empobrecimento do país e não um desenvolvimento para o progresso. Neste sentido, a disputa em determinados momentos, os avanços da reforma agrária, a defesa do meio ambiente e das pautas dos povos indígenas e de outros povos tradicionais, podem se somar ao governo como ele está composto hoje, contra o desenvolvimentismo atrasado e dependente do Congresso.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Carlos Frederico Marés de Souza Filho – Estamos, neste momento exato, em uma disputa. A Câmara, ao colocar essas discussões pelo marco temporal e contra o meio ambiente, está claramente dando um recado ao Supremo, o qual acredito que o Supremo não receberá. O Supremo vai ter autonomia na decisão e um papel preponderante na decisão dessas pautas. O recado da Câmara hoje não é um recado que tenha eco no Supremo, mas isso se verá rapidamente quando, na próxima semana, o marco temporal será analisado no Supremo. Imediatamente depois disso, independentemente da decisão do Supremo, os movimentos sociais têm que repensar as estratégias que tinham até este momento. As estratégias têm que ser outras. Se o Supremo decidir, por exemplo, favorável aos movimentos indígenas e por restrição total ou parcial ao marco temporal, a perspectiva de discussão legal vai ser diferente. Se o STF adotar posições muito parecidas com as da Câmara e as do Congresso Nacional, a pauta dos movimentos sociais também tem que ser recomposta para ver como poderão ser articuladas com o governo federal. A discussão das pautas para o segundo semestre em diante depende muito da discussão do Supremo sobre o marco temporal.

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Bruce Albert (Foto: Reprodução)

Bruce Albert é doutor em antropologia pela Universidade de Paris X Nanterre e pesquisador do Institut de Recherche pour le Développement. Trabalha com os yanomami do Brasil desde 1975 e é autor de A queda do céu, juntamente com Davi Kopenawa, escritor, xamã e líder político yanomami. Em março deste ano, Bruce Albert e Davi Kopenawa publicaram O espírito da floresta (Companhia das Letras, 2023).

IHU – Na semana passada, a Câmara aprovou a MP 1150/22, que flexibiliza a Lei da Mata Atlântica e aprovou a urgência para a votação do marco temporal de terras indígenas. O que isso significa e indica no atual contexto político?

Bruce Albert – A decisão técnica, independente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama, de impedir a exploração de petróleo na foz do Amazonas (como é o caso na Guiana Francesa vizinha) abriu uma crise política que colocou em plena luz a contradição embutida no projeto de governo Lula 3, que pretende conciliar uma pauta nacional-desenvolvimentista petroleira do século XX e uma agenda socioambiental para o século XXI.

O parlamento retrucou à esta decisão acertada do Ibama com uma saraivada de votações antiecológicas e anti-indígenas: Mata Atlântica, Marco Temporal, desmonte do Ministério do Meio Ambiente – MMA e do Ministério dos Povos Indígenas – MPI, incluindo a perda do poder do Ibama de vetar “obras de interesse nacional”, é claro. Inacreditavelmente, isto aconteceu com a cumplicidade e/ou a omissão da bancada do PT e com Lula declarando que “se sentiu traído” pela Marina Silva!

Conclusão: temos agora um governo Lula 3 já, em cinco meses, encurralado no parlamento, inclusive por boa parte de sua bancada, e que parece preferir, neste contexto adverso, sacrificar “tudo que é secundário” (!) – (ver O Globo 24.5) –, leia-se a sua própria agenda socioambiental e a Amazônia, para salvar seu projeto nacional-desenvolvimentista petroleiro.

Esta atitude configura, é claro, uma traição de grande parte do eleitorado que votou em Lula em razão da agenda socioambiental. Configura, em segundo lugar, uma renúncia política imperdoável de um governo dito “de esquerda” frente ao retrocesso colonial e ecocida que incarna a maior parte do Congresso.

Agenda socioambiental do governo Lula 3

Porém, além disso, não estamos mais na primeira década do século XXI (governos Lula 1 e 2). O suposto “desenvolvimento” movido a grandes obras, energia fóssil e agroindústria é hoje, como nunca, condenado como socialmente desastroso e ecologicamente suicidário no contexto da crise ecoclimática sem precedente na qual estamos engajados (ver último relatório do IPCC). Portanto, a agenda socioambiental do governo Lula 3 não pode ser rifada hoje, como em 2008, sem, desta vez, ter consequências políticas e econômicas nacionais e internacionais muito sérias para o país.

Lula se reelegeu por causa desta agenda e começou a recolocar o Brasil dignamente no cenário internacional por causa dela. Escamoteá-la hoje, de repente, em busca de uma imaginária e improvisada conciliação com um Congresso profundamente retrógrado, deixaria retrospectivamente a possibilidade de avaliar estes cinco primeiros meses de governo como o jogo de cena de um cínico estelionato eleitoral e diplomático. Isso acabaria definitivamente com o novo governo, com a biografia do presidente e, bem pior, com o crédito internacional do país em convalescência depois do desastre bolsonarista. O governo perderia assim não só os anéis, mas também os dedos, e até as mãos. Pior ainda, a honra, a sua e a do país.

Veremos se a contestação veemente das medidas antissocioambientais do Congresso pela opinião pública, pela imprensa (nacional e internacional) e pelas entidades da sociedade civil induzirão o governo a tomar consciência da magnitude do leite derramado e a desistir de abandonar covardemente as guerreiras heroicas, Marina Silva e Sonia Guajajara, aos golpistas trogloditas do parlamento. A seguir.

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Maurício Angelo (Foto: Agência Senado)

Maurício Angelo é repórter investigativo, fundador do Observatório da Mineração, centro de jornalismo investigativo, análise crítica, pesquisa e mentoria focado no setor extrativo, e pesquisador do Centro de Desenvolvimento Sustentável na Universidade de Brasília (UnB).

IHU – Na semana passada, a Câmara aprovou a MP 1150/22, que flexibiliza a Lei da Mata Atlântica e aprovou a urgência para a votação do marco temporal de terras indígenas. O que isso significa e indica no atual contexto político?

Maurício Angelo – Estamos diante de um momento histórico decisivo. Tenho dito e repito que 2023 não é 2015, 2010, 2003. Ou seja, não estamos nos governos anteriores do PT nem sequer no governo Temer. A crise climática causada pelos seres humanos – vide os relatórios do IPCC e tudo que a ciência tem descoberto –, pela industrialização, pelo capitalismo, pelo uso desenfreado dos recursos naturais, pela doutrina do desenvolvimento, que inclusive é muito forte no governo, está mais do que provada. Temos menos tempo hoje do que tínhamos dez, oito anos atrás.

O Congresso está tomado, como no passado – e não por acaso o golpe contra a Dilma aconteceu – por deputados e senadores ruralistas, aliados de mineradoras, da bancada da bala, da Bíblia, que atendem aos interesses dos seus financiadores e aos seus próprios interesses porque muitos deles são empresários desses setores. É muito difícil para o governo compor uma coalizão. É claro que derrotar Bolsonaro foi essencial porque ele é incomparável a qualquer governo do PT em termos políticos, práticos e humanos, mas como se governa diante de um Congresso como esse? É preciso ceder e abrir mão de algumas questões, é preciso compor com essa gente; é a chamada realpolitik. O governo não vai conseguir fazer tudo que quer, do modo que quer, no seu tempo e da sua maneira. Isso mostra a força da herança bolsonarista no Congresso, que encurrala e chantageia o governo, colocando a faca no pescoço do país. Essas medidas são uma hecatombe socioambiental se forem confirmadas, como parece que serão.

IHU – Como o governo está reagindo a essas movimentações? Como avalia a postura do governo diante dessas medidas?

Maurício Angelo – O governo tem reações dúbias, como a de liberar a bancada para votar como ela quiser. Como eu disse, 2023 não é 2008. Lula fez promessas na campanha e as cumpriu, como a criação do Ministério dos Povos Indígenas. Conseguiu convencer a Marina Silva a voltar a fazer parte do governo e ela montou uma equipe qualificada, com pessoas competentes e técnicas.

Agora, o problema é que o governo não é só o Ministério do Meio Ambiente, não é só a Marina, não é só Sonia Guajajara, Silvio Almeida e Anielle Franco. O governo também é Alexandre Silveira, Ministro de Minas e Energia, que tem um passado político fortemente financiado por mineradoras. O governo também é Carlos Fávaro, ministro da Agricultura. Além disso, o governo tem muita gente do Centrão. O governo é o próprio Geraldo Alckmin, que é vice-presidente e se mostrou pró-desenvolvimento e pró-mineração que impacta terras indígenas, como é o caso da empresa Potássio do Brasil, no Amazonas. Alckmin, assim como Bolsonaro, se mostrou favorável em apoiar a empresa Potássio do Brasil e a “destravar” o projeto dela.

Então o governo vive uma disputa permanente entre as pautas ambientais e o lobby da indústria e da mineração. O Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), que representa as principais mineradoras do Brasil, está muito próximo do governo. Sempre foi, mas agora está mais próximo. Raul Jungmann, ex-ministro e político experiente, é o presidente do IBRAM, e o vice-presidente é Fernando Azevedo e Silva, que era ministro do Bolsonaro e está extremamente próximo do governo. Ele apoiou o lançamento da frente parlamentar da mineração sustentável. Sempre digo que mineração sustentável não existe e não conheço nenhum exemplo disso. Ninguém, até hoje, conseguiu me dar um exemplo de mineração sustentável que ficasse em pé.

IHU – A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, declarou que “há uma certa frustração” com esvaziamento da pasta. A ministra Marina Silva está envolvida em disputas com o ministro de Minas e Energia. O que esse cenário sinaliza? É possível um novo rompimento entre Marina e Lula, como ocorreu no passado?

Maurício Angelo – Estamos em maio e ainda nem se completaram cinco meses de governo. Então, as frustrações da Sonia e possivelmente as da Marina e as do Rodrigo Agostinho, que está no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama, mostram que estamos vendo, na prática, a dificuldade de cumprir o discurso que Lula fez em 2022, o discurso feito na COP27, no Egito, no ano passado, e o discurso diário do governo em certas instâncias, na internacional especialmente.

Pessoas do PT, como Randolfe Rodrigues, [Alexandre] Padilha e Jean Paul Prates, se mostram a favor das questões do petróleo e da mineração, por exemplo. Muitos, dentro do governo e do PT, são favoráveis a pautas e projetos extrativistas que até hoje são vendidos como capazes de dar soluções para todos os problemas do país. Qual é o legado dos projetos de mineração? Mariana, Brumadinho, hecatombe socioambiental nas terras indígenas yanomami, munduruku e kayapó. Estamos falando de alguns dos maiores desastres ambientais do Brasil e do mundo. Esse é o legado recente. Essa indústria e esse lobby são muito fortes e o governo de coalizão tem inúmeros problemas.

Arthur Lira é, de fato, um político experiente que está tentando implementar, na prática, o parlamentarismo. Rodrigo Pacheco também é a favor desses projetos e também é ligado à mineração direta ou indiretamente. [Alexandre] Silveira inclusive foi assessor do Pacheco no passado. A indústria é muito próxima de figuras centrais não só do governo, mas do Legislativo, do Judiciário. Então, é possível, sim, uma ruptura [com Marina]. Não sei em quanto tempo. Não sei até quando a equipe toda – e não só a Marina – vai conseguir fazer esse embate vencer e como vai receber as derrotas que inevitavelmente virão não só de dentro do governo, mas do Congresso. As derrotas virão e isso é fato. A equipe não vai vencer todos e talvez não vença a maioria dos embates, das pautas, dos projetos e políticas públicas. A bancada ruralista e as mineradoras não estão aceitando nem que o governo reforme a composição dos próprios ministérios de forma administrativa. Imagina se vão aceitar o resto.

A tendência é que boa parte dessas questões parem no Judiciário, como já aconteceu com o marco temporal e a mineração em terra indígena, e acontecerá com o licenciamento ambiental, que é outra pauta bomba em curso. O Supremo pode tomar várias decisões fundamentais, mas não dá para contar com o Supremo. Não deveríamos ter que contar com o Supremo. Se o Brasil quer, de fato, ser vanguarda e exemplo, ser um ator de referência e excelência no combate à crise climática, vai continuar abrindo projetos de petróleo e de mineração no país inteiro, não só na Amazônia, mas no Cerrado? Vai deixar que o desmatamento ocorra e vai deixar o agronegócio mandar no país até secar a última fonte de água, corroer a última montanha e destruir todos os recursos que temos, os quais são fundamentais para a própria vida, usando o papel que a Amazônia tem na questão do clima global? Esse debate é o debate sobre a própria sobrevivência humana na Terra no médio e curto prazo porque os efeitos da crise climática estão aí, no dia a dia, com desastres e pessoas sendo expulsas de suas casas.

IHU – Qual o papel de outros agentes, como a Igreja, que celebrou a Semana Laudato Si’ nos últimos dias, e as organizações da sociedade civil, na disputa pela condução da pauta socioambiental diante do atual Congresso, que está atrelado a lógicas desenvolvimentistas do passado?

Maurício Angelo – O papel das organizações, da academia, dos movimentos sociais, é, de fato, mostrar essas contradições, prover estudos técnicos, incidir politicamente, pautar as questões na imprensa, colocar questões que não estão sendo debatidas, mostrar os paradoxos, interesses, e participar do debate de maneira importante. Outro papel importante e feito há muito tempo – e que no governo Bolsonaro foi fundamental – é o dos servidores de carreira, que têm um senso de cumprir a função para a qual os órgãos foram criados, como o Ministério do Meio Ambiente – MMA, o Ibama, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas – Funai. Isso tudo é muito importante e tem a possibilidade de, pelo menos, barrar alguns retrocessos; não todos.

Para resumir, esses são embates cruciais para o Brasil e para o mundo, que vão se repetir com frequência e serão duríssimos. A ala ambiental provavelmente vai perder muito mais do que ganhar, mas este é um debate e uma disputa que precisam ser feitos e não há outro modo de fazê-los. É assim que funciona na democracia e na combalida democracia brasileira, com todos os problemas e fortalecimento da extrema-direita e do bolsonarismo, colimando com os ataques de 8 de janeiro, que estão muito longe de serem esclarecidos e os responsáveis punidos. Estamos falando de algo fundamental que vai render bastante. 

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