Semana Laudato Si’. O que significa crer em um Deus ecológico? Artigo de Elizabeth Johnson

Arte: Wagner Azevedo | Cedida ao IHU

24 Mai 2023

Este artigo foi extraído da conferência proferida no dia 21 de março no lançamento do Elizabeth A. Johnson, CSJ Endowed Fund for Theology and the Earth”. Esse fundo de financiamento promovido pela Fordham University leva o nome da teóloga e visa a aprofundar a pesquisa sobre mudanças climáticas e a relação dos seres humanos com o planeta, a partir de uma perspectiva teológica.

Elizabeth A. Johnson, CSJ, é professora emérita de Teologia na Fordham University e autora de “Consider Jesus, She Who Is, Quest for the Living God” e “Ask the Beasts”. Em português, é autora de "Aquela que é: o mistério de Deus no trabalho teológico feminino" (Vozes, 1995).

O artigo é publicado por America, 18-05-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o artigo.

Imaginemos a Terra como ela é vista em fotos conhecidas tiradas do espaço. Lá vai ela girando, em um lindo mármore azul, envolta em nuvens brancas rodopiantes, luminosa contra o fundo preto do espaço infinito. Nós, humanos, vivemos aqui, assim como milhões de outras espécies sobre e sob a terra sólida, nas águas doces e salgadas, e no ar acima de nossas cabeças. Na verdade, este é o único lugar onde existe vida, até onde sabemos hoje.

Daqui podemos olhar e ver outros lugares, planetas e estrelas como nossos ancestrais faziam, e agora, com incríveis novos telescópios, podemos ver galáxias antigas, bilhões e bilhões delas. Talvez, algum dia, as criaturas da Terra viverão em outro lugar. Mas, agora e sempre, a Terra é o nosso planeta natal.

A terrível e inegável realidade que enfrentamos hoje é que a Terra está com problemas. Devido à ação e à inação humanas, o planeta está aquecendo. Secas severas, incêndios florestais, inundações e tempestades estão provocando grandes estragos. Centenas, senão milhares de espécies estão rapidamente se extinguindo.

Os danos resultantes perturbam a vida de cada vez mais milhões de pessoas, entre elas aquelas que se tornam refugiadas climáticas. Os esforços para cuidar da Terra estão se multiplicando, como visto por toda a parte, desde acordos internacionais até escolhas individuais de estilo de vida. Esses esforços, no entanto, enfrentam uma forte oposição das forças políticas e financeiras. E não podemos subestimar a indiferença.

Em meio a esse cenário perigoso e complexo, o que as religiões podem oferecer? Uma vez que as tradições religiosas, em sua melhor expressão, são portadoras de sabedoria sobre o significado último e apresentam um mapa sobre como viver uma vida boa, a maioria das religiões do mundo tem recursos que podem alimentar o cuidado ecológico. O Papa Francisco pôs o dedo nessa questão em sua encíclica Laudato si’, sobre o cuidado da casa comum, de 2015:

“Quero mostrar desde o início como as convicções da fé oferecem aos cristãos – e, em parte, também a outros crentes – motivações altas para cuidar da natureza e dos irmãos e irmãs mais frágeis. (...) Por isso é bom, para a humanidade e para o mundo, que nós, crentes, conheçamos melhor os compromissos ecológicos que brotam das nossas convicções” [n. 64].

Em outras palavras, as crenças têm consequências e devem contar para algo do ponto de vista prático.

O cristianismo, junto com outras religiões monoteístas, sustenta a crença de que um Deus vivo criou e ama o mundo inteiro. Essa convicção tem um potencial revolucionário para motivar o cuidado com a Terra. No entanto, isso não levou muitos cristãos a fazê-lo de maneira perceptível até recentemente.

Uma história intrigante sobre o naturalista John Muir, do século XIX, destaca o problema. Um dia, quando Muir estava caminhando pela vastidão de Yosemite, ele se deparou com um urso morto e parou para refletir sobre a dignidade dessa criatura. Ali estava um animal de sangue quente e de um coração que pulsava como o nosso, que se alegrava em sentir o calor do sol sobre o pelo e para o qual um bom dia era encontrar um arbusto cheio de amoras.

Mais tarde, Muir escreveu uma amarga nota em seu diário, criticando as pessoas religiosas que ele conhecia, que não davam espaço em sua fé para tais nobres criaturas. Elas acham que são as únicas que têm alma, queixou-se ele, as únicas para quem o céu está reservado. Pelo contrário, escreveu ele, “a caridade de Deus é ampla o suficiente para os ursos”.

Será? Os ursos negros, os ursos pandas, os ursos polares, os ursos dourados são amados pelo Criador a ponto de, em seu sofrimento e morte, serem afetados pelo poder redentor de Deus? Se sim, onde isso situa a nós, humanos, no esquema divino das coisas? Assumindo o lado dos ursos, eu diria que nós, humanos, precisamos repensar a nossa relação com a natureza. Precisamos deixar de pensar que somos “donos do universo”, para perceber que somos parentes dos ursos e de todos os outros seres vivos, em uma amada comunidade da criação.

Vou explorar essa questão em três pontos: primeiro, a realidade da comunidade da criação; em segundo lugar, um poderoso obstáculo para a compreensão de que fazemos parte dela; e, terceiro, remédios para remover esse obstáculo. Ofereço esse exame a partir de uma teologia ecológica não com a expectativa de que todos necessariamente concordem, mas na esperança de que esses pensamentos estimulem o nosso pensamento sobre a importância sagrada do mundo natural, para efeitos práticos e críticos.

Nossa herança compartilhada

À medida que a vida evoluiu na Terra, ela tomou forma em milhões de espécies de uma variedade deslumbrante – incluindo a espécie humana –, todas interagindo com o solo, a água e o ar de diferentes ecossistemas. Como diz a escritora da natureza Annie Dillard, “o criador ama dar um toque especial”.

O processo da evolução pode explicar como as espécies se formaram ao longo do tempo. Mas o fato de elas existirem não se explica por si só. Desde os tempos antigos, as pessoas que enfrentam a vulnerabilidade, a ferocidade e a maravilha da vida têm a sensação de que há mais aqui do que aparenta.

A partir do olhar da fé bíblica, a existência do mundo se deve ao dom de um criador infinitamente generoso. Esse mistério incompreensível – ao qual as pessoas chamam de Deus – é pura e exuberante vivacidade, uma fonte transbordante de ser sem origem, limitação ou fim. Ao criar o mundo, o Deus vivo compartilha livremente essa vitalidade com outros que não são divinos. E todos eles a recebem com sua aptidão de criatura.

Normalmente, a menção a Deus que cria o mundo leva nossa mente de volta à origem das coisas, como no livro de Gênesis 1,1: “No princípio”. Muitas vezes, embora nunca o digam explicitamente, as pessoas assumem que, a partir dessa centelha inicial, tudo gira por conta própria. É quase como se o descanso do Criador no sétimo dia se estendesse a um longo retiro. O que passa despercebido, nessa visão míope, é a verdade de que a criação está em andamento. O Deus vivo cria continuamente.

Sem essa generosidade, não haveria mundo algum. Tudo entraria em colapso em uma “não coisa” inimaginável. Uma metáfora impressionante do filósofo britânico Herbert McCabe, OP, diz desta forma: o Criador “faz todas as coisas e as mantém em existência de momento a momento, não como um escultor que faz uma estátua e a deixa sozinha, mas como um cantor que mantém sua música em existência o tempo todo”. A Criação como uma performance contínua, presencial e ao vivo!

Tentando entender isso, o teólogo Tomás de Aquino, do século XIII, escreveu palavras que ainda ressoam:

“Deus está em todas as coisas; não como parte da essência delas (...) mas como o agente está presente na sua obra. (...) Sendo Deus o ser por essência, é preciso que todo ser criado seja efeito próprio de Deus, assim como o ato de queimar é próprio do fogo. E essa ação de Deus encontra-se nas coisas não somente quando começam a existir, mas por toda a sua duração no ser. É como a luz do sol que continua a iluminar a atmosfera. Mas o ser é o que há de mais íntimo nas coisas, é o elemento formal em relação a todos os princípios e componentes de determinada realidade. Portanto, Deus se encontra, necessariamente, em todas as coisas e de modo íntimo” ["Suma Teológica I", trad. Frei João Alves Basílio, OP, Ed. Paulus, 2021].

Da mesma forma que uma chama incendeia outras coisas, o Criador continuamente faz com que todas as coisas existam. Da mesma forma que o sol ilumina o ar, o Criador brilha no mundo e traz todas as suas criaturas à sua própria existência. Esse é o significado básico da criação. Uma relação contínua e vivificante entre o Criador e a criatura marca a identidade mais profunda do mundo.

Na visão bíblica, isso deve ocorrer principalmente devido a uma razão: o amor. O Livro da Sabedoria descreve assim: “Tu amas tudo o que existe e não desprezas nada do que criaste. Se odiasses alguma coisa, não a terias criado” (Sb 11,24-25). O Papa Francisco recorre a essa ideia na Laudato si’, quando escreve que a criação é um dom no qual “cada criatura tem um valor e um significado” (n. 76). “Até a vida efêmera do ser mais insignificante é objeto do seu amor e, naqueles poucos segundos de existência, Ele envolve-o com o seu carinho” (n. 77), continua. Os comentaristas observam que aqui Francisco pode muito bem ter pensado em efeméridas. Esses pequenos insetos vivem apenas algumas horas após a eclosão, durante as quais devem encontrar um parceiro e botar ovos, e depois morrem. Muito efêmeros. Mas envoltos em afeto; assim como todos nós.

A presença contínua e criadora do Deus vivo recebe outra coloração quando nos damos conta de que o mundo não está terminado. Durante 13,8 bilhões de anos, o universo tem se desdobrado em galáxias, com suas estrelas se formando, se fundindo, se separando, moldando algo novo. No nosso próprio planeta, a evolução continua produzindo “infinitas formas mais belas”, para usar a adorável frase de Darwin. A natureza está semeada de promessas, grávida de surpresas.

Mas o custo é alto. A história da vida é uma história de dor e sofrimento. A morte está profundamente estruturada no avanço criativo da vida que surge em meio ao perecimento perpétuo.

Se perguntarmos onde está Deus em meio a esse problema, a fé bíblica fundamental responde “aqui”, em solidariedade com as criaturas esmagadas pela dor e pela morte. O espírito do Criador está presente em meio ao sofrimento com a intenção de curar, redimir e libertar.

O apóstolo Paulo escreveu que, enquanto toda a criação geme como uma mulher em trabalho de parto, um dia “a própria criação também será liberta da escravidão da corrupção, para participar da liberdade e da glória dos filhos de Deus” (Rm 8,21). Ao criar o mundo, Deus está presente aqui e agora em cada criatura, amando cada uma delas e prometendo seu futuro. Quando o problema chega, Deus não abandona a criatura amada. Como refletiu o teólogo australiano Denis Edwards em uma linguagem leve em um artigo de 2006:

“O Espírito Criador está com as criaturas em sua finitude, morte e incompletude, sustentando cada uma em um amor redentor, e de alguma forma já está atraindo cada uma para um futuro escatológico imprevisível (...) O Espírito está com cada criatura agora, com cada predador e presa selvagens e com cada criatura moribunda, como parteira do nascimento inimaginável em que todas as coisas serão renovadas.”

As coisas desmoronam. Há esperança para o futuro. “Eu estarei com você” é o nome próprio do Criador do Céu e da Terra.

Assim, do ponto de vista do olhar de Deus, os seres humanos não estão sozinhos como o fim-de-tudo e o ser-tudo do mundo. Em vez disso, junto com todas as outras criaturas, eles formam uma amada comunidade da criação. Nós também recebemos a nossa vida como um dom do amor transbordante de Deus e existimos na confiança desse dom, com a esperança de que esse mesmo Deus será fiel até mesmo na nossa morte.

Sob essa luz, justamente como criaturas, nós, humanos, temos mais em comum com outras espécies do que aquilo que nos separa. Como criaturas, somos parentes do urso, da lula, do corvo e dos insetos. Nas belas palavras da Laudato si’, “não estamos separados das outras criaturas, mas formamos com os outros seres do universo uma estupenda comunhão universal” (n. 220).

Uma das bênçãos da nossa época é que o estudo científico chega a uma conclusão semelhante por seus próprios métodos distintos. Nós, humanos, somos uma parte intrínseca da rede evolutiva da vida neste planeta, que, por sua vez, faz parte do sistema solar, que se formou a partir dos detritos da explosão de estrelas mais antigas na Via Láctea, que se formou algum tempo depois da explosão do Big Bang.

O cientista britânico Arthur Peacocke capta a nossa relacionalidade física em um exemplo impressionante. Por que o nosso sangue é vermelho como o sangue de outros mamíferos? Por causa do ferro. “Cada átomo de ferro no nosso sangue não estaria lá se não tivesse escapado da explosão de uma estrela supergigante vermelha há bilhões de anos e depois se condensado para formar o ferro na crosta terrestre da qual emergimos.”

A paisagem da nossa imaginação se expande quando nos damos conta de que a conexão humana com a natureza é tão profunda que não podemos mais definir a nossa identidade sem incluir a grande extensão da história cósmica e a nossa herança genética compartilhada com outros organismos na história evolutiva da vida. Há apenas uma única comunidade de vida na Terra. Em termos científicos, existe uma única biosfera. Em termos teológicos, existe uma única comunidade da criação. Tudo está conectado com tudo, e todos nós florescemos e murchamos juntos.

Obstáculos

Existem muitas razões pelas quais nós, humanos, perdemos esse senso de comunhão com os nossos parentes. Uma delas são as nossas indubitáveis habilidades de intelecto e vontade. Temos a capacidade de pensar simbolicamente e de expressar pensamentos em linguagem verbal. Nós fazemos perguntas. Inventamos coisas. Confortamos e curamos. Estupramos e matamos. Temos a capacidade de amar da forma mais profunda e abnegada, assim como a capacidade de autoilusão e de cometer atos de maldade bárbara.

Dadas essas habilidades, tornou-se comum no pensamento religioso e secular da era moderna pensar nos seres humanos como que separados do mundo natural, em vez de serem uma parte entrelaçada dele. Aqui vou me concentrar em um fator de separação que tem sido particularmente tóxico no campo da teologia: a “hierarquia do ser”. A história por trás disso é interessante.

Quando o cristianismo primitivo se espalhou pelo Império Romano, ele entrou em contato com uma versão da filosofia grega que ensinava que o mundo é composto de dois elementos: matéria e espírito, ou corpo e alma/mente. Como a divindade é puro espírito, os filósofos raciocinaram que quanto mais espírito um ser possui, mais divino ele é e mais próximo do divino ele está; quanto mais matéria, mais longe. A filosofia usou esse esquema para classificar os habitantes do mundo de acordo com uma hierarquia do ser.

Lá embaixo, estava a matéria não viva, como as rochas; mais acima, estavam as plantas (elas são vivas e germinam sementes), depois os animais (eles se locomovem). Os mais elevados na Terra eram os humanos (com alma e corpo racionais); ainda mais elevados eram os anjos (espíritos puros sem corpo). Do pedregulho ao pêssego, do cachorrinho à pessoa, até aos principados e potestades! Em vez de um círculo de parentesco, esse modelo estrutura o mundo como uma pirâmide, com os humanos no pináculo da criação terrena.

A teologia se baseou nessa estrutura para ensinar que os humanos – com o nosso espírito superior – regem com todo o direito sobre as plantas e os animais. Em termos técnicos, eles têm valor instrumental e não intrínseco “aos olhos de Deus” (observem essas palavras). Consequentemente, no fim do mundo, as plantas e os animais desaparecerão. Uma vez que seu propósito é suprir as nossas necessidades, assim que a vida humana na Terra terminar – quando não precisarmos mais deles como fontes de comida, roupas, abrigo, força muscular – seu objetivo terá sido cumprido. Eles deixarão de existir.

Hoje, as pensadoras feministas complexificam esse quadro ao observar que essa hierarquia estava voltada para dentro, até mesmo para a própria raça humana. Ela atribui que os homens têm mais espírito do que as mulheres. Os homens, possuidores de razão e de capacidade de agir, são mais como que divindades do que as mulheres, identificados com a emoção e seus corpos mutáveis que sangram e dão vida, como a própria Mãe Terra. Portanto, as mulheres são por natureza subordinadas aos homens, que, em virtude de seu espírito superior, estão equipados para governar; uma regra que, observaria eu, pode se tornar violenta e exploradora com pouco escrúpulo.

Essa mesma hierarquia do ser tornou-se ainda mais cruel nos séculos XV e XVI, quando os europeus começaram sua vigorosa exploração de outras terras. Os pensadores nessa cultura agressiva e empreendedora entendiam a superioridade humana no sentido de que os exploradores tinham o direito de explorar os minerais, as florestas e os animais em outras terras para obter lucro. Foi ainda mais malicioso o apoio que esse enquadramento deu à ideia dos homens brancos europeus de sua própria supremacia ao se encontrarem com povos africanos e indígenas. Ao atribuírem às pessoas não brancas almas de menor qualidade com inteligência inferior, ao identificá-las mais com a corporalidade, ao vê-las mais próximas dos animais do que dos humanos, os europeus achavam que tinham o direito de conquistar, transportar e escravizar milhões de seres humanos para obter lucro.

O ensino da Igreja, diante de seu compromisso com a hierarquia do ser, tinha pouco a oferecer em termos de resistência à destruição devastadora de comunidades inteiras e de vidas individuais. E os resultados terríveis e racistas da escravidão continuam até hoje.

Acho assustador perceber como a hierarquia do ser e sua antropologia do homem branco de elite penetraram profundamente no DNA do pensamento e da espiritualidade cristãos. Elas não apenas impediram a igualdade e a justiça na comunidade humana, mas, com sua convicção de que os humanos são governantes da natureza, também abriram as portas para séculos de exploração desenfreada do mundo natural. A falta de preocupação por parte de muitos cristãos com a devastação da Terra nos nossos dias pode ser rastreada em parte à contínua influência dessa ideia. Se outras criaturas são menos valiosas aos olhos de Deus, por que deveríamos nos importar?

Antídotos

Existe um experimento mental que pode começar a introduzir sobriedade em mentes embriagadas pela supremacia humana. Ele tem a ver com as árvores. Na hierarquia do ser, os humanos estão acima das árvores. Quando os humanos respiram, inalamos oxigênio e exalamos dióxido de carbono. Na presença do sol, as árvores fazem o contrário. Elas absorvem dióxido de carbono e liberam oxigênio. Sua fotossíntese é em grande parte responsável pela produção oxigênio contido na atmosfera da Terra. Retiremos as árvores, e os humanos sufocariam. Retiremos os humanos, e as árvores ficariam perfeitamente bem; provavelmente até melhor, pois não as cortaríamos. Quem precisa mais de quem? Qual é mais valioso? Segundo qual critério?

Na arena da fé, acho que um dos melhores antídotos para a arrogância humana é uma robusta teologia da criação. A linguagem radical da conversão entra em jogo aqui. Ela está sendo usada por teólogos, papas e escritores espirituais para enfatizar a magnitude do desafio. Precisamos virar, mudar os nossos corações, resetar as nossas mentes, partir para uma nova direção e – de uma forma que pode soar estranha para os ouvidos religiosos – nos convertermos à Terra como uma amada comunidade da criação.

Ao clamar por essa conversão e ao se basear em uma robusta teologia da criação, a Laudato si’ critica a visão dos humanos-no-pináculo como “inadequada” e francamente “errada”. O Papa Francisco reconhece que está contribuindo com algo novo para o ensino católico ao insistir que “somos chamados a reconhecer que os outros seres vivos têm um valor próprio diante de Deus” (n. 69). Ele continua de modo muito franco: “Hoje, a Igreja não diz, de forma simplicista, que as outras criaturas estão totalmente subordinadas ao bem do ser humano, como se não tivessem um valor em si mesmas e fosse possível dispor delas à nossa vontade”. Pelo contrário, elas “também porque possuem um valor intrínseco, independente de tal uso [razoável]” (n. 140).

Observemos a linguagem muito deliberada que desafia a hierarquia do ser. E por quê? Porque Deus as ama, até mesmo as pequenas moscas. Isso leva a uma afirmação radical: “O fim último das restantes criaturas não somos nós. Mas todas avançam, juntamente conosco e através de nós, para a meta comum, que é Deus” (n. 83).

Quase com agonia, a Laudato si’ aplica essa visão da comunidade da criação à catástrofe em andamento da extinção das espécies. Quando uma espécie se extingue, ela desaparece para sempre. Como a evolução requer a transmissão de genes de uma geração para a outra, ela nunca voltará. Enquanto a morte significa o fim da vida para o indivíduo, a extinção significa a morte do próprio nascimento para uma espécie e danos para todas as outras criaturas do ecossistema com as quais ela está inter-relacionada.

Em vista da comunidade da criação, a Laudato si’ declara: “Deus uniu-nos tão estreitamente ao mundo que nos rodeia, que a desertificação do solo é como uma doença para cada um, e podemos lamentar a extinção de uma espécie como se fosse uma mutilação” (n. 89).

Que ideia extraordinária. A perda de uma espécie deve nos atingir como se o nosso próprio corpo fosse ferido ou como se nós mesmos perdêssemos um membro.

Em linguagem clara, Francisco conduz a comunidade da criação até ao futuro último. “No fim, encontrar-nos-emos face a face com a beleza infinita de Deus.” Ele está descrevendo o céu, que obviamente é indescritível. Envoltos em afeto, nós, humanos, não nos encontraremos sozinhos, pois todo o universo também estará presente, “o qual terá parte conosco na plenitude sem fim”. De fato, “a vida eterna será uma maravilha compartilhada, onde cada criatura, esplendorosamente transformada, ocupará o seu lugar” (n. 243). Verei o meu cachorro no céu? Aí está a resposta. Não podemos imaginar isso, mas Francisco está explicitando a lógica da crença no Deus Criador.

Alguns anos atrás, enquanto eu lecionava na África do Sul, proferi uma palestra pública sobre essa ideia bíblica de que toda a criação será redimida. Eu tinha acabado de visitar o grande Parque Nacional Kruger e fiquei profundamente comovida ao ver os maravilhosos animais da África vagando pela natureza, de modo que me afastei do meu texto preparado para dizer que os leões, os hipopótamos, as girafas, os impalas, os gnus, as cegonhas – todos – tinham um futuro abençoado à sua espera. O jornal católico local discordou. Ele publicou um artigo criticando minha palestra, com o título: “Salvação até para os elefantes?”.

Por que não? O Criador não é um Deus do descarte. Nós, humanos, não estamos sozinhos como sujeitos do amor divino. Na comunidade da criação, todos compartilhamos a identidade central de sermos criaturas amadas. Apesar de toda a nossa diferença humana como espécie, essa identidade compartilhada nos torna parentes do solo, do mar e do céu, e dos gambás, das gaivotas, dos salmões, das aranhas e das sequoias. Um dia, todos nós, criaturas, estaremos em casa na beleza de Deus, assim como agora no tempo a nossa casa comum é a Terra. Como um ensinamento religioso deliberado, essa convicção tem profundas implicações éticas.

Expandindo o repertório do nosso amor

Nossos tempos exigem urgentemente que nós, humanos, desenvolvamos um senso ecológico sobre nós mesmos em sintonia com a crença em um Deus ecológico. À luz do nosso criador comum, precisamos expandir o nosso senso de identidade para incluir a relação com as outras criaturas, a terra, as águas e o ar, toda a própria criação. Assim que apreciemos verdadeiramente a vida do “outro”, chegaremos a um novo ponto de partida para a tomada de decisões.

Então, poderemos começar a mudar alguns dos comportamentos arraigados que estão levando à destruição ambiental, assim como à pobreza galopante do nosso mundo, à divindade do mercado e ao nosso desespero cultural. Humilhados e encantados com a vida ao nosso redor, poderemos começar a ouvir o clamor da Terra e o clamor dos pobres, e a nos levantarmos para proteger os nossos parentes.

James Michener, em uma história contada em seu romance “The Source”, expõe a questão à sua maneira. Segundo ele, nos dias pré-bíblicos, as pessoas que viviam em uma aldeia cananeia no Oriente Médio adoravam um deus que exigia sacrifícios humanos, incluindo a vida dos filhos primogênitos, a fim de garantir a fertilidade contínua das colheitas. Uma jovem chamada Timna, que havia dado à luz recentemente, amava bravamente seu bebê e não podia aceitar que ele tivesse que morrer. Ela implorou desesperadamente ao marido, protestou e argumentou vigorosamente, sem sucesso.

Em um certo dia, em meio a uma grande cerimônia pública, seu marido caminhou até ao altar e entregou a criança aos sacerdotes, que jogaram o pequeno embrulho nas chamas. Meses depois, ainda consumida pela dor, Timna participou de outra cerimônia comunitária. “E, enquanto os outros celebravam, ela caminhou lentamente de volta para casa, vendo a vida com uma nova e dolorosa clareza: com deuses diferentes, seu marido Urbaal teria sido um homem diferente.”

Com deuses diferentes, seu marido seria um homem diferente. A sabedoria espiritual na intuição dessa mulher fictícia é profunda.

Imaginemos uma compreensão contínua e pública do Deus vivo como um criador apaixonado, amante e redentor da Terra e de todas as suas criaturas – incluindo os seres humanos. Imaginemos que as pessoas de fé rezam, pregam, ensinam, se arrependem, lamentam, celebram, louvam e agem com responsabilidade para fazer justiça ao coração do Deus vivo que derrama amor sobre todos os seres humanos, assim como sobre o solo, as águas e o ar, e sobre todo passarinho que cai no chão, como disse Jesus.

Com um Deus diferente, o povo de Deus seria um povo diferente. Então, a lei moral de amar ao próximo como a si mesmo incluiria o morcego e a abelha; então, a oração a Deus para ter “misericórdia de nós” se expandiria para incluir não apenas “nós”, seres humanos pecadores e sofredores, mas também toda a comunidade da vida em luta, da qual fazemos parte; então, a ação em prol da justiça social e da ecojustiça fluiria como uma parte intrínseca da vida cristã, e não como algo acrescentado de fora.

Ignorar essa visão mantém as pessoas de fé e suas igrejas, sinagogas, templos e mesquitas trancadas na irrelevância, enquanto um terrível drama de vida e de morte está sendo representado no mundo real. Em contraste, convertermo-nos à Terra como membros da comunidade da criação nos leva a uma grande aventura da mente e do coração, e expande o repertório do nosso amor.

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