Com a Realpolitik dos poderosos, nenhuma paz é possível

Realpolitik | Gravura: Vladimir Molenovisk, 1914.

14 Outubro 2022

 

"Sem o aflato do alto nunca há renovação da civilização, porque não há renovação da mente - e vice-versa. Essa foi a lição de Kaliningrado. A democracia morre asfixiada no conflito de interesses econômicos e nacionais, deixa de motivar a juventude e perde sua essência, que é de renovar-se a cada dia a partir de suas fontes éticas: não há esperança de futuro sem o aflato do alto".

 

O artigo é da filósofa italiana Roberta De Monticelli, professora da Universidade San Raffaele, de Milão, publicado por Domani, 12-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo. 

 

A guerra nunca cessará se não aceitarmos o ramo de palmeira que só uma potência espiritual pode oferecer. O sangue correrá pela Europa até que as nações se conscientizem de sua terrível loucura que as faz mover-se em um círculo vicioso”. Escrevia isso Novalis (também conhecido como Friedrich von Hardenberg, 1772-1801) na virada do Iluminismo, em 1799.

 

Ele não tinha nem 30 anos e teria morrido sem completá-los: mas o pseudônimo que ele havia assumido, e que lembra novas terras ainda a serem desbravadas, hoje parece perfeita para o jovem visionário da primavera romântica de Jena. Aquele seu ensaio, O cristianismo ou a Europa, que em outras épocas teríamos lido com toda a desconfiança que todo obstinado iluminista sente pela nostalgia romântica, hoje é iluminado pela voz deste papa que se obstina em manifestar uma vontade de pacificação em nome da justiça e da piedade (não de um deserto chamado paz, não de uma paz a qualquer condição).

 

Ele olhava para frente e não para trás, o jovem de Jena. Porque evidentemente é preciso levantar o ponto de vista de como se olha o mundo, para ver o que os pobres de espírito veem muito bem, e os poderosos da terra não. Só isso significa "um poder espiritual", para aquele jovem visionário que já estava voando além da epopeia, primeiro libertadora e depois sombria e sangrenta das nações. Ele já estava mais próximo da "Europa, ou seja, da filosofia" dos grandes visionários do século passado, aqueles que por "Europa" entendiam não um continente, mas uma ideia.

 

Europa como civilização em expansão, fundada no humanismo e na razão prática, capaz de renunciar a toda raiz identitária para acolhê-las a todas dentro dos limites do direito e dos direitos humanos. Claro que para isso era necessário desmantelar, dessa linhagem que somos de sapos pensantes e coaxantes em torno da lagoa do Mediterrâneo (Platão), toda a soberba milenar, e denunciar toda a ferocidade desumana desdobrada nos séculos da modernidade, entre as declarações dos valores mais universais e os imensos roubos coloniais.

 

Denunciar a enorme contradição entre os princípios e as ações, como sempre fizeram filósofos, artistas, pensadores, de Bolonha a Oxford, de Salamanca a Heidelberg, de Paris a Nova York: e mais intensamente nos últimos três quartos de século.

 

Isso e nada mais é um "poder espiritual", aquele que constantemente gera, juntas, crítica, pensamento e piedade. Bulgakov - o grande ucraniano de língua russa, um dos escritores mais esclarecidos do século XX, o viu com os olhos tortos de seu Mefisto, Woland, dotado de muito espírito: viu Pôncio Pilatos, o cético e atormentado quinto procurador da Judeia, que há dois mil anos acorda todas as noites de lua cheia com enxaqueca, e anseia desesperadamente continuar aquela conversa sobre a verdade que começou com Yeshua Ha-Nosri, o louco e manso "filósofo" condenado à morte pela multidão furiosa, no dia 14 do mês primaveril de Nizan.

 

Sim, este é o tema. O dom da graça, semelhante ao voo mais alto da águia, que chamamos de "espírito", sem o qual continuaremos a discutir nosso pequeno ponto de vista, uns contra os outros, como galinhas competindo por um grão de milho, como se a enorme ameaça que se perfila para a raça humana fosse insignificante. Como se não a víssemos.

 

Talvez já estejamos, como as galinhas diante do farol do carro na noite, imóveis, o olhar fixo e ofuscado. Está em curso uma escalada que salta de um extremo ao outro da terra, abre-se à hipótese nuclear, a fragmenta em "tática" e "estratégica", a banaliza, a remove.

 

Até poucos dias atrás, não se falava dessa possível escalada nuclear. Tivemos que esperar que o presidente dos EUA mencionasse o Apocalipse para perceber, ou melhor, para que também as mídias e a grande imprensa levassem para o centro das atenções esse pensamento reprimido.

 

Einstein, talvez para esconjurar a infeliz imagem do confronto decisivo entre o Bem e o Mal que o Armagedon evoca (especialmente nos países protestantes), resumiu-o na imagem mesquinha da ratoeira que a humanidade inventa para si mesma - e nenhum rato inventaria uma ratoeira. Como sair da armadilha?

 

Oportunidades perdidas

 

Se houvesse ‘guerras justas’, em geral, aquela contra o nazismo seria, sem dúvida, uma delas. No entanto, muitas vezes era realizada por meios criminosos. A memória mais nítida que conservo é aquela dos rapazes caídos que permaneceram para sempre nos pântanos, muitas vezes devido à idiotice de seus comandantes”. Escreve isso Alexander Yakovlev, um dos colaboradores mais próximos de Gorbachev e o chamado pai da glasnost (transparência), em um livro de admirável sinceridade - La Russia. Il vortice della memoria (2000, trad. it. Spirali 2021).

 

Aquela guerra terminou com um ato criminoso - o extermínio nuclear da população civil de Hiroshima e Nagasaki - que talvez mais do que tudo induziu na humanidade ocidental um grandioso choque de razão, digno das promessas da Europa dos lumes.

 

Também na década de 1920 houve uma semelhante: nada promoveu, em nível planetário, a necessidade de uma renovação prática da vida associada, a partir da renovação inclusive teórica das categorias para compreendê-la, tanto quanto as guerras mundiais do século XX, ou se queremos, a longa "guerra civil europeia 1914-1918".

 

A primeira vez, porém, a renovação essencial, aquela necessária para dar sentido ao grito tantas vezes repetido depois das guerras - "nunca mais" - não existiu, ou melhor, não chegou ao passo decisivo: acabar com selva geopolítica dos equilíbrios de poder, construir a "federação mundial de repúblicas" de memória kantiana. Houve grandiosas promessas não cumpridas. E a segunda? Muito foi feito. E certamente não apenas por "nós" - do chamado Ocidente.

 

No pós-guerra, se encarnaram nas grandes instituições supranacionais, da ONU aos embriões de uma União política europeia, e sobretudo em seus documentos normativos, da Declaração universal dos direitos humanos e diante - os meios para o fim da razão prática, a construção de uma sociedade livre e radicalmente pluralista, mas fundada no reconhecimento comum do único vínculo dos valores universais. Mas de onde, de quem veio o verdadeiro impulso para acabar com o mal que obscurecia e traia esse fim, a Guerra Fria? Já tivemos ocasião de recordar a grandeza do sonho pan-europeu de Gorbachev, a indissociabilidade que ele viu entre a grande reforma democrática das mentes em pátria e a construção de uma nova ordem mundial, realmente universalista e não unipolar, que numa federação europeia inclusive de todo o cinturão ocidental do antigo império soviético, e na perspectiva da própria Rússia, teria encontrado a fonte de uma paz verdadeira e duradoura; ver nesse universalismo eurocêntrico quase uma passagem simbólica do bastão entre o maior e ignorado artífice da unidade europeia, Altiero Spinelli, e o homem que a si mesmo e ao seu poder preferiu a coerência com o repúdio à Realpolitik e a confiança nos líderes ocidentais que pareciam ter compreendido a magnitude ideal das apostas. Aquela confiança foi brutal e imediatamente traída.

 

Em Scenari, o jovem historiador Andrea Borelli acrescentou detalhes esclarecedores sobre a posição da Alemanha nessa traição que já conhecemos a partir dos documentos desclassificados sobre a promessa feita pelo secretário de Estado dos EUA James Baker a Gorbachev sobre a não expansão da OTAN para além do Fronteira alemã ("no one inch eastward"): seguida por uma enxurrada de confirmações verbais sobre o respeito da "segurança" russa. E hoje em Kaliningrado, ao lado do túmulo de Kant, estão prontos os mísseis Iskander com capacidade nuclear, enquanto Putin anuncia o pior para o final do ano, o supermíssil balístico intercontinental Sarmat.

 

As palavras do despertar

 

No entanto, já na década de 1920 o grande sonho do Iluminismo havia se reacendido na língua da filosofia, da Morávia de Husserl e de Masaryk à Renânia de Max Scheler. As palavras alemãs Erneuerung, Reue, Wiedergeburt, Wiederaufbau: respectivamente, renovação, arrependimento, renascimento, reconstrução, começaram então a disseminar nos espíritos melhores a visão de uma ordem mundial, que deveria simplesmente erradicar da civilização humana as guerras.

 

Mas olhem bem, aquelas palavras. Afundam na mais pura tradição espiritual, e não só cristã: falam do homem velho e do novo, o despertar, a saída da caverna. Falam da melhor aposta do homem em si mesmo: que seremos capazes de acolher e respeitar o dom dos vínculos – vínculos de lógica, de sentido, de ética, de lei, vínculos de justiça e de piedade. O dom que sempre, quando o infortúnio ou a alegria "desarmam" a feroz sentinela do eu, nos pede para ser reconhecido e acolhido, como o fato de dois mais dois ser quatro e o fato de que a guerra é o mal intrínseco que o animal irracional humano contém pela civilização. Vínculos dados - mesmo que não impostos à nossa liberdade.

 

Verdade, descobertas: não invenções, construções, postulados. Redescobrimo-los naqueles momentos que Stefan Zweig chamava de Sternstunden der Menscheit, horas estelares da humanidade. Um título absurdamente traduzido, na edição italiana Adelphi, em Momenti fatali (em português, Momentos estelares da humanidade, Galiza), uma expressão que consegue ignorar tanto a liberdade quanto as estrelas: a liberdade humana tal como aparece naqueles momentos decisivos que chamamos de kairoi, em que é a nossa humanidade que está em questão; e as estrelas, metáfora de valores universalmente brilhantes, que conferem a essas ações uma espécie de eternidade simbólica. Em suma, "a lei moral em mim e o céu estrelado acima de mim", inscritos no túmulo de Kant.

 

Justamente. Sem o aflato do alto nunca há renovação da civilização, porque não há renovação da mente - e vice-versa. Essa foi a lição de Kaliningrado. A democracia morre asfixiada no conflito de interesses econômicos e nacionais, deixa de motivar a juventude e perde sua essência, que é de renovar-se a cada dia a partir de suas fontes éticas: não há esperança de futuro sem o aflato do alto.

 

Hoje, porém, não parece que os poderosos do mundo estejam dispostos a elevar seu ponto de vista sobre este indizível que ameaça até a vida da humanidade na terra, e sobretudo e concretamente aquela da Europa, porque os arsenais russos e aqueles estadunidenses estão aqui, sob as nossas casas. E então só resta a nós tentar elevá-lo à altura do espírito, esse ponto de vista: siando para as ruas, que só têm o céu acima delas. Para pedir a paz, mas uma paz alta e verdadeira carregada de futuro, isto é, nutrida de memória, crítica, justiça - e piedade.

 

 

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