"O ano de 2021 foi marcado por uma explosão de evidências da crise social e política, que a epidemia agravou, e pelo despreparo da presidência de Bolsonaro para governar o país", avalia o sociólogo
Em 2021, 412.880 brasileiros morreram em decorrência da pandemia de Covid-19, e os dados mais recentes indicam que, além da emergência sanitária, a crise social foi agravada: 20 milhões de pessoas estão passando fome no país, 13 milhões estão desempregados, 38 milhões estão ocupados na informalidade e o número de favelas dobrou em dez anos. Essas "anomalias", pondera José de Souza Martins, "vêm revelando, mais do que em outras situações, o que sociologicamente somos e temos dificuldade para reconhecer e compreender. Até mesmo na peculiar vulnerabilidade que expõe o que é o nosso atraso social, nosso despreparo político para enfrentar situações adversas e de emergência, nosso crônico subdesenvolvimento econômico e suas consequências sociais".
Fatos mais recentes, como o "ataque aos caminhões de lixo nos bairros ricos de Fortaleza, de pessoas à cata de comida, é o indício de que o Brasil está entrando num cenário de virada social, de passagem para o lado de lá da sociedade estável e organizada. Os valores de referência social estão sendo corroídos. A sociedade brasileira já está mergulhada num estado de anomia e sua economia num estado de incerteza e risco", adverte.
Os indicadores sociais, avalia, "mostraram que o país caiu sob controle de grupos sem compromisso com nossas buscas de décadas, com nossas conquistas sociais obtidas a duras penas, grupos sem compromisso com a condição humana e com o destino do país". Os dois últimos anos, reitera, "confirmaram o retrocesso histórico do Brasil numa escala nunca vista. Pela primeira vez na história republicana, regredimos, sobretudo perdemos boa parte de nossas conquistas sociais desde a Revolução de Outubro de 1930".
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Martins faz um balanço do ano que passou e pontua algumas das urgências sociais e políticas deste ano que inicia, como a formulação de um projeto de país factível com metas sociais, culturais, econômicas, políticas e ambientais.
José de Souza Martins durante Aula Magna na Unisinos (Foto: Frame do Youtube)
José de Souza Martins é graduado em Ciências Sociais, mestre e doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP. Foi professor visitante da Universidade da Flórida e da Universidade de Lisboa e membro da Junta de Curadores do Fundo Voluntário da ONU contra as Formas Contemporâneas de Escravidão, de 1998 a 2007. Foi professor da Cátedra Simón Bolívar, da Universidade de Cambridge (1993-1994) e atualmente é professor titular aposentado da USP. Entre suas obras, destacamos Exclusão social e a nova desigualdade (São Paulo: Paulos Editora, 1997), A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala (São Paulo: Contexto, 2000), Linchamentos: a justiça popular no Brasil (São Paulo: Editora Contexto, 2015), Do PT das lutas sociais ao PT do poder (São Paulo: Editora Contexto, 2016) e Sociologia do Desconhecimento – Ensaios sobre a incerteza do instante (Editora Unesp, 2021).
A entrevista foi originalmente publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU no dia 04-01-2022.
IHU – Como o senhor está interpretando o Brasil nestes quase dois anos de pandemia?
José de Souza Martins – Como tem acontecido em diferentes lugares do mundo e em diferentes momentos da história – com os terremotos, os tsunâmis, as erupções vulcânicas, os escorregamentos, as enchentes, as secas, as queimadas – a pandemia tem sido o inesperado da natureza, com repercussões sociais que, por si mesmas, não explicam a situação em que o Brasil se encontra. Mas que é uma modalidade de ocorrência que expõe e revela, de maneira mais aguda do que qualquer outra, as contradições sociais. As mediações sociais e políticas fazem de uma adversidade natural, como ela, uma adversidade social e política. Não é, pois, possível separar a pandemia da realidade que lhe dá sentido.
É a primeira vez, desde a gripe espanhola, que se espalhou entre nós em 1918, que nossa vida cotidiana e rotineira é interrompida e praticamente reduzida ao essencial da tentativa de sobrevivência. A história ficou limitada às pulsações indicativas de que persiste mesmo na anomalia das mortes não esperadas, das hospitalizações, do confinamento, da sociabilidade empobrecida e mutilante, da conversação pobre, da incerteza e da abreviação consciente da durabilidade do tempo que resta a cada um. A cara social da vida contaminada pela enfermidade torna-se uma cara sem graça, de crise social e política cujas determinações sociais profundas não são percebidas nem compreendidas. As pessoas continuam achando que são uma coisa quando já são completamente outra. Sociologicamente, a realidade social se revela aí como aquilo que o senso comum enganador não pode decifrar, um sistema de invisibilidades governado pela falsa consciência necessária à sua reprodução.
Há dois anos a cultura da morte preside nossa vida cotidiana, o oposto da concepção que da vida tínhamos até então. Há dois anos estamos à espera do pior que poderá vir. Muitos parentes, amigos e conhecidos esperaram menos. Isolados, partiram sem dizer adeus. A vida se transformou num velório permanente, cada um à espera de sua vez ou à espera da vez de pessoas que fazem parte integrante de nossa vida pessoal, como pais, irmãos, filhos, avós.
O que foi agravado pelas omissões do governo e do Estado, que trataram a pandemia como evento propício à minimização e até ao desmonte das políticas sociais e à redução do Brasil a um empreendimento funerário e lucrativo, um indício da decadência da economia de crescimento econômico sem desenvolvimento social. O país revelou-se despreparado para enfrentar no plano social as adversidades próprias do capitalismo subdesenvolvido que se manifestaram na pandemia. Um capitalismo brasileiro, meia-boca, porque de grandes lucros e de grandes misérias ao mesmo tempo.
Em casos assim, as sociedades normais e bem governadas são capazes de colocar entre parênteses a cobiça de seus membros mais pretensiosos e sua ambição de poder, suas tendências anômicas e, assim, criar regras de uma sociedade de emergência que lhes permita restabelecer a ordem e assegurar-lhes a sobrevivência. O altruísmo emerge e se sobrepõe ao egoísmo. Esse é o processo natural, historicamente comprovado nas sociedades em estado de normalidade, conscientemente protegidas contra o risco ou a abrangência da anomia.
Aqui, o que chama a atenção, em primeiro lugar, é que isso não aconteceu. Não só o governo agiu como governo antissocial no desrespeito às regras sanitárias de proteção individual e coletiva das vítimas reais ou potenciais da enfermidade. Difundiu notícias falsas sobre a pandemia. Resistiu à adoção oficial de medidas de segurança sanitária, retardou a vacinação, combateu-a. Exerceu medicina ilegalmente ao recomendar e até impor medicação e tratamento não recomendados pela ciência.
Segundo cálculos de especialistas, assumidos pela CPI da Covid, dois terços das vítimas morreram quando poderiam ter sido salvas se tivessem sido adotadas providências e tratamento corretos: 400 mil pessoas. Sem contar o caso da falta de oxigênio em Manaus, com grande número de enfermos mortos por impossibilidade de respirar, sufocados. Em qualquer outra sociedade isso teria sido reconhecido como crime e providências legais teriam sido tomadas contra os responsáveis para assegurar o retorno do Estado à normalidade.
Não é o excepcional das anomalias da situação atual que explica a realidade. Mas o fato de que tudo tenha sido tratado e encarado como normal e natural, como o esperado, como parte do plano negacionista do governo empossado no dia 1º de janeiro de 2019. Uma forma peculiar de incompetência política. O governo brasileiro tornou-se cúmplice de um vírus mortal, de um ser sem cérebro.
Nesse sentido, essas anomalias vêm revelando, mais do que em outras situações, o que sociologicamente somos e temos dificuldade para reconhecer e compreender. Até mesmo na peculiar vulnerabilidade que expõe o que é o nosso atraso social, nosso despreparo político para enfrentar situações adversas e de emergência, nosso crônico subdesenvolvimento econômico e suas consequências sociais.
O ano de 2021 foi marcado por uma explosão de evidências da crise social e política, que a epidemia agravou, e pelo despreparo da presidência de Bolsonaro para governar o país. Cercado de auxiliares cúmplices e sem competência para administrar os diferentes âmbitos do poder na situação anormal da pandemia, o governo expôs suas deficiências e gerou informações sociologicamente relevantes para a compreensão científica e política do que somos.
Informações que têm feito revelações que mudam significativamente as bases de nossa consciência social. Quase tudo que sabíamos e pensávamos sobre a sociedade brasileira perdeu sentido e eficácia. A pandemia, por ocorrer num governo dominado pela ignorância funcional e destrutiva, mostrou, de maneira crua, fatal e vivencial, as trágicas expressões sociais de nossas contradições estruturais e de nossos bloqueios.
Mostraram que o país caiu sob controle de grupos sem compromisso com nossas buscas de décadas, com nossas conquistas sociais obtidas a duras penas, grupos sem compromisso com a condição humana e com o destino do país. Pseudopatriotas sem amor à pátria, porque pátria não é o território nem é patrimônio de alguns. Pátria é o lar coletivo de todos, o berço, o acolhimento, a certeza de um lugar de pertencimento. Pátria é um lugar de esperança. Deixa de sê-lo quando se torna lugar de desespero, de incerteza e de desmando e de morte.
Em 2021, Bolsonaro e seus coadjuvantes apenas deram prosseguimento a um melancólico 2020, arrastaram o país para a beira do abismo da questão social, da questão ambiental, da questão econômica, da questão da vida.
Mais grave é que as anomalias decorrentes do encontro perverso entre a pandemia e um governo explicitamente empenhado em desgovernar para peitar a opinião democrática nos revelaram que larga parcela da população lhe é voluntariamente cúmplice nas orientações ideológicas e políticas. Propositalmente comprometida com o desmonte do Estado para revogar direitos sociais. Inimiga de si mesma ao se tornar inimiga do outro e, portanto, de todos.
Aqueles 30% dos brasileiros que, mesmo à vista do genocídio e das injustiças crescentes, da miséria e da fome, persistem na fidelidade ao governante transgressor, indicam que uma onda socialmente destrutiva está instalada na estrutura da sociedade brasileira porque já o estava e foi robustecida de propósito.
Uma classe média autoritária mostrou que teve condições de viabilizar a tomada e o controle do poder, como fez por meio deste governo. Não é gente despistada apenas. É gente que quer isso mesmo. Gente que acredita que o bom governo é o governo ditatorial, que os direitos são os próprios e não os alheios nem os de todos.
O governante expressa isso quando invoca seu direito à liberdade de opinião e de ação, numa interpretação propositalmente distorcida da Constituição e da lei, sem considerar o dano que esse modo causa aos direitos de todos. Um individualismo enfermo puxa o país para o abismo da incerteza. Mas a pessoa que ocasionalmente é escolhida para presidir a República e personificá-la é uma. A pessoa que empresta seu corpo e sua cara à República nessa personificação é outra. Fica entre parênteses enquanto lhe dura o mandato. A incompetência do atual governante para governar fica evidente em sua incapacidade para compreender essa duplicidade e as interdições que dela decorrem.
A força mortal da pandemia nos mostrou que não é ela a causa principal de nossas adversidades desta hora. A causa está nos fatores político-ideológicos da multiplicação de seus efeitos. A pandemia expôs também um traço histórico da sociedade brasileira: o de que é ela, predominantemente, uma sociedade de pessoas desvalidas e tratadas como descartáveis, a contrapartida do autoritarismo sectário de uma difusa classe média voraz. Nem toda classe média é isso. Mas o é a classe média rica ou pretensamente rica, porém ignorante, que teve ou tem acesso a uma educação meia-boca, desvinculada da cultura e dos grandes valores do conhecimento erudito e humanístico, os valores da civilização. É a turma do “eu acho” e isso lhe basta.
O Estado brasileiro mostra, aos poucos e mais gravemente no período do governo atual, que não se constituiu para defender e proteger a sociedade contra as adversidades que sobre ela se abatem. A vida é aqui um privilégio de casta, como sempre foi. Nascida da escravidão e da mentalidade que lhe corresponde, mesmo em relação a quem escravo não foi, é ela uma sociedade majoritariamente de gente sobrante das transformações econômicas unicamente motivadas pela busca do lucro sem limite nem ética. Uma sociedade que, por isso, não tem uma política universal de valorização da vida. O outro é, aqui, tão somente o resto da riqueza injusta, o que sobra. O impropriamente chamado de excluído.
Nesses dois anos, vimos o escândalo genocida da vida tratada como irrelevante e agora, nestes dias, a atitude perversa de táticas de protelamento da vacinação de crianças e adolescentes. Vidas mal iniciadas, ainda no começo, sujeitas ao jogo neoliberal do primado do lucro pelo lucro, da vida alheia como objeto de jogatina política e econômica.
A banalização da morte é, no Brasil, um programa político. Não foi casual que no começo da pandemia uma economista do Ministério da Economia tivesse feito declaração no sentido de “que a concentração da doença principalmente em idosos poderia ser positiva para melhorar o desempenho econômico do Brasil ao reduzir o rombo nas contas da Previdência.” [Cf. Julia Lindner e Mateus Vargas, O Estado de S. Paulo, 28 de maio de 2020].
Muita coisa mudou na situação social e na compreensão sociológica do ano que passou.
IHU - A situação que vivemos – e como a vivemos – acrescentou algo novo na sua compreensão sobre o país, as instituições e a sociedade civil de modo geral?
José de Souza Martins – Desde o mensalão, estamos vivendo sucessivos episódios de decomposição do processo político, sobretudo a partir dos movimentos de 2013 e culminaram nas distorções antidemocráticas do desastre eleitoral de 2018. O que se deu simultaneamente com a crise econômica e a crise social agravadas pela ascensão política do regime bolsonarista.
Minha compreensão do estado da sociedade brasileira não mudou, apenas aprofundou-se à luz de novas evidências de nossas limitações. O Brasil não é uma ilha isolada do mundo. Vi confirmadas tendências interpretativas, porque têm maior visibilidade os indícios e sinais da crise do capitalismo. Não só no que se refere às suas irracionalidades. Mas na decorrência que é a gênese de um novo modelo de capitalismo, nos países europeus, que propõe a urgência de reconciliar crescimento econômico com desenvolvimento social. A forma do capitalismo está mudando. Uma tendência aqui no Brasil interrompida pelo golpe militar de 1964 e revigorada com o negacionismo bolsonarista. Bolsonaro inventou o capitalismo de vingança, um capitalismo anticapitalista, como revanche contra o fim do regime militar e ditatorial e seus privilégios indevidos, dos que advogam sua impunidade descabida.
A Europa é o novo cenário dessa mudança, contra a qual se levanta o regime bolsonarista na palavra do vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, desde a campanha eleitoral de 2018. Em suas palestras na maçonaria, da qual é membro, em lojas maçônicas de Brasília e do Rio de Janeiro, numa delas ainda fardado, ficou claro que o bolsonarismo é a opção militar e reacionária pela geopolítica do subcapitalismo sem desenvolvimento social, de enxugamento dos direitos sociais para aumentar a taxa de lucro do grande capital e equipará-la com a dos países dominantes. Um capitalismo com taxas de exploração do trabalho que nos aproximam fantasiosamente dos lucros do capitalismo americano. Um “fake-capitalism” de gente subdesenvolvida.
A inclusão social perversa, a que se manifesta na impressão subjetiva de exclusão, confirma a opção das elites por um modelo retrógrado de capitalismo, que ainda se baseia numa economia da acumulação primitiva, o capitalismo cruel do século XIX. A nova e anômala gerência do Brasil empurra o país na direção oposta à das tendências de renovação do capitalismo.
Para compreender o tipo de gente que, no governo, “pensa” esse futuro antagônico para o país, é fundamental ver e ouvir a gravação do que foi a reunião do ministério em 22 de abril de 2020, difundida por determinação do Supremo Tribunal Federal: palavrões, desinformação, truques de governação, por via torta, na questão ambiental, para aproveitar o fato de a mídia estar entretida com a pandemia e “deixar passar a boiada”, negação da identidade e da humanidade dos índios, redução da economia a crescimento sem criação de emprego e, portanto, sem desenvolvimento.
As ocorrências socialmente significativas de 2021 confirmaram minhas interpretações progressivamente expostas em meus livros “O Poder do Atraso”, de 1994, e “Do PT das Lutas Sociais ao PT do Poder”, de 2016. A situação atual expressa e expõe as anomalias estruturais desta sociedade, a carência de reformas sociais, políticas econômicas de urgência que viabilizem a democracia e a autêntica soberania do povo. As dificuldades para encontrar e seguir um rumo social e politicamente construtivo. O desafio de 2022.
A pandemia expôs o agravamento político de nossas fragilidades. Mostrou que qualquer aventureiro, destituído de competência política para governar e de escrúpulos, pode chegar ao poder com facilidade e com facilidade manipular a consciência e a vontade de milhões de pessoas. Com base em mentiras, meias e superficiais interpretações e notícias forjadas, como as “fake news”, passar todo seu mandato manipulando e fazendo campanha eleitoral para conseguir um novo mandato. É claro que há um plano por trás disso, que não é plano meramente individual de uma personalidade problemática. Muita gente com limitações idênticas está pegando carona no mandato do governante despreparado. É o plano histórico de poder das oligarquias, sobretudo as interioranas, alicerçadas no poder local. As que estão no poder desde o século XVI e os que a elas se têm agregado ao longo de nossa história.
IHU - Que análise particular faz do ano de 2021? Em que aspectos retrocedemos e avançamos socialmente e politicamente?
José de Souza Martins – Os anos de 2020 e 2021 foram anos que confirmaram o retrocesso histórico do Brasil numa escala nunca vista. Pela primeira vez na história republicana, regredimos, sobretudo perdemos boa parte de nossas conquistas sociais desde a Revolução de Outubro de 1930. Agredimos e comprometemos significativamente a natureza, o patrimônio natural da nação foi saqueado para enriquecer inescrupulosamente minorias ambiciosas à margem da lei; o futuro do país encolheu. Os danos causados à nação brasileira são de reparo lento e difícil. Toda uma geração ficou sem horizontes. Somos um país que historicamente se desenvolveu lentamente, com base no pouco e mesmo o pouco nos foi tirado pela conduta irresponsável do governo nos vários campos em que se propôs a fazer o desmonte das instituições e das conquistas sociais e políticas.
O único alento que nos restou de 2021 foi a dos efeitos autocorrosivos das irracionalidades do governo Bolsonaro. Ainda que muito lentamente, eles se manifestaram na emergência de uma certa consciência social do tributo que o governante incapaz e seus coadjuvantes estão impondo ao país inteiro. O débito social das mortes descabidas, do desemprego, da pobreza crescente, da falta de perspectiva e de futuro para multidões de desvalidos começou a traduzir-se em consciência crítica dos enganos de 2018, não só os da direita, mas também os da esquerda.
A mediação dessa consciência crítica não nos tem vindo dos partidos políticos, mas da mídia vigilante, dos grupos de várias naturezas inquietos com o desmonte do país. A CPI da Covid, no Senado, teve um papel decisivo na formação de uma frente democrática suprapartidária na investigação e desmascaramento do oportunismo e do autoritarismo bolsonarista no uso da pandemia como instrumento de afirmação de um poder obscurantista e minimizante das instituições.
A CPI foi uma indicação significativa de que sob as cinzas do sistema partidário, esfacelado e emudecido, persiste uma estrutura política democrática e pluralista, progressista. Novos perfis foram revelados. O nosso “nós” político despertou.
O encontro de Fernando Henrique Cardoso com Lula foi outra iniciativa democrática suprapartidária contra os oportunismos que vêm desmontando os dois grandes partidos democráticos brasileiros, o PSDB e o PT. Os resultados das pesquisas de opinião eleitoral vêm indicando o acerto desse encontro. Vencer o bolsonarismo e o que ele significa como projeto contra a democracia e a nação é a maior meta política e social do momento, que nesse encontro ganhou emblemática dimensão.
IHU - Na entrevista que nos concedeu no início do ano passado, o senhor pontuou que os partidos estavam longe de fazer um diagnóstico político que apontasse para a tentativa de encontrar uma saída para as irracionalidades do governo Bolsonaro, mas também para as crises atuais. As articulações que estão sendo discutidas entre PT e PSDB, por exemplo, representam algo nesse sentido ou não?
José de Souza Martins – Certamente, representam muito. Na verdade, até o momento, é nossa única alternativa visível. Falou-se e fala-se em terceira via para superar o impasse do dualismo político pendular da atual política brasileira. Equivocadamente, pensou-se numa terceira pessoa como alternativa a Lula e Bolsonaro. Tudo indica que a terceira via não virá de se encontrar uma terceira pessoa que a personifique.
As pesquisas eleitorais já indicaram o caminho, que é o de um novo modo de fazer política, com base no clamor implícito na insurreição do que sobrou da polarização representada pelas duas tendências políticas democráticas dominantes. E indicam a prudente escolha de Lula como o destinatário do apelo à superação do dualismo, porque ele tem o carisma decorrente de sua prisão. Não é mais o Lula que foi presidente. Não é uma volta ao passado. É o Lula de uma nova missão política e histórica. O da última chamada. Se os petistas e as esquerdas não compreenderem isso, selarão o destino do Brasil como um país irrelevante, como um não-lugar.
Essa inquietação já se manifestara na eleição de 2018, em que o eleitorado indicou que, alienadamente, estava à procura de novos personagens, quando estava à procura de uma nova e atualizada concepção de política. Uma certa convergência de outros partidos nessa mesma direção, partidos de esquerda, sugere que estamos em face do surgimento de uma grande coalizão democrática de salvação nacional.
Quando da abertura política decorrente do fim da ditadura militar, falou-se muito num Pacto de Moncloa brasileiro, numa alusão ao pacto político espanhol que assegurou o formato da sucessão democrática à ditadura franquista. Aqui, porém, as esquerdas e os partidos de centro não lograram fazer um pacto, cada facção vorazmente empenhada na ambição de um governo unitário, exclusivamente seu. Foi o que abriu o caminho para a polarização ideológica que viabilizou a aglutinação dos grupos de direita e do revanchismo que os anima, com a crise do mensalão e a fragilização do PT.
O PSDB, por seu lado, desagregou-se em decorrência de sua diversidade ideológica e das ambições de suas diferentes facções de centro-direita. Nas eleições de 2018, demagogicamente, em São Paulo, o partido não se diferençou de Bolsonaro e do que ele representava como negação das conquistas democráticas da campanha pelas Diretas, Já!
IHU - Quais são as pautas sociais que deveriam estar no centro do debate eleitoral deste ano e por quê?
José de Souza Martins – No plano político, a pauta principal, sem dúvida, terá que ser a de combater e anular a usurpação direitista e autoritária da política brasileira pelo negacionismo e restituir o Estado ao regime democrático e ao protagonismo político da sociedade civil, especialmente o dos movimentos sociais. A crítica pública, aberta e radical das omissões e distorções do governo na questão da pandemia terá que ser uma referência prioritária. Os partidos que participassem dessa aliança deveriam preparar-se desde já com um catálogo dos erros e propósitos que desse governo fizeram um governo genocida, por ignorância, por ação e por omissão.
No plano social, uma aliança de centro-esquerda teria que propor a revisão radical da anulação dos direitos sociais e a revogação de todas as medidas tendentes a favorecer a violência privada, como na facilitação da aquisição de armas e munição e as medidas de minimização dos direitos humanos e facilitação do arbítrio na violência do Estado na manutenção da ordem. A questão das populações indígenas e de seu direito à preservação da própria identidade e dos territórios que lhe dão sentido não pode ser ignorada. Desse modo, também a valorização das ações dos diferentes povos indígenas no sentido de encaminhar seus jovens às universidades para se tornarem pilares do direito à diferença como fundamento do caráter étnica, cultural, plural e pluralista do povo brasileiro.
No plano cultural, uma política de preservação do que somos, da rica criatividade que temos, de estímulo ao que nos define como povo e nação. A valorização do professor, da ciência, da arte, do conhecimento erudito, da criatividade, até aqui minimizados, é condição para criar novas bases da democracia brasileira, pluralista, igualitária, criativa, tolerante.
No plano econômico, é necessária a profunda revisão do nosso lugar no mundo e na economia capitalista. O governo bolsonarista nos impôs a pior das opções, o nosso alinhamento com o neoliberalismo econômico da hegemonia americana, quando o mundo capitalista está indo em outra direção. É impossível ignorar a enorme importância econômica mundial da China, um país politicamente comunista e economicamente capitalista, com a qual o Brasil já tem relações decisivas. Como é impossível ignorar a importância renovadora da Europa na geopolítica alternativa da economia social centrada no ser humano, na equidade, no combate à pobreza, no cuidado com a questão ambiental e em sua função na história da vida.
Uma nova concepção de economia está surgindo e o Brasil tem condições de nela inserir-se como protagonista decisivo. Experiências social e economicamente criativas, ainda que politicamente simplificadoras, como a do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, sugerem um caminho viável, socialmente inovador, economicamente modernizador, para os pobres não só do campo, sobretudo para as novas gerações do campo e da cidade. Não só para o Brasil, mas para outros países do terceiro mundo. A da agricultura como profissão moderna, dotada da poesia da relação do homem com a natureza.
Uma economia alternativa e complementar que assegure emprego e distribuição de renda, uma função histórica que libertaria as lutas populares das limitações de uma concepção de superação da pobreza e da injustiça nos limites de uma visão meramente operária da transformação social. Temos que nos libertar da concepção de capitalismo do século XIX e da concepção de socialismo a ela reduzida.
A grande luta da classe trabalhadora da modernidade é a do reencontro da práxis com a poiesis, a poesia do trabalho, enquanto trabalho desalienado e desalienador, isto é, libertador e humanizador do homem. Esse tema tem estado presente nas cogitações de vários países europeus quanto à saída para um capitalismo bloqueado à socialização de suas possibilidades históricas, coisificador e brutalizador da vida.
Em particular, esse tem sido um ponto referencial em documentos pontifícios desde os do Papa João XXIII. Não só a Igreja Católica, mas também algumas igrejas protestantes da tradição do Conselho Mundial de Igrejas, as do protestantismo europeu, têm se preocupado com o fato de que a exploração capitalista não se resume à extração da mais-valia e à exploração do trabalho. A grande violência da exploração do homem pelo homem está na expropriação do homem de sua pessoa e de sua humanidade pelo capital e pelos poderes dele decorrentes e por ele instrumentalizados.
O Papa Francisco, que foi operário, tem se empenhado na crítica das irracionalidades de um sistema econômico que nega ao homem o direito à condição humana.
O movimento “Economia de Francisco”, de empresários e executivos inspirados nos valores de São Francisco de Assis, tem feito a crítica moral do capitalismo destrutivo e antissocial e tem tido o apoio do Papa. Trata-se de um significativo movimento social em favor da transformação do capitalismo num sistema econômico baseado no primado social do trabalho e de quem trabalha.
Essas tendências têm tido significativa dimensão e motivação ecumênica, o que define a moldura ética de uma realidade social revolucionada pela colocação do mundo de cabeça para cima. Já não é o mundo da competição e da guerra medieval entre religiões.
Temos, aliás, que superar a religiosidade de conflito que nos vem dos EUA através de seitas e igrejas fundamentalistas, tudo indica manipuladas pela CIA em nome de uma política oficial de combate ao comunismo, um comunismo que deixou de existir faz tempo, com a morte de Stálin. O que libertou o pensamento social, e a possibilidade de um novo socialismo, da repressão ideológica e das conveniências do poder do Estado.
IHU - Considerando a nossa história e o atual momento histórico do país, o que seria um projeto de desenvolvimento factível para o Brasil? Que elementos deveriam fazer parte deste projeto?
José de Souza Martins – Um projeto factível seria um projeto que não fosse apenas e simploriamente um projeto de retorno ao passado recente, em especial ao governo Lula. Ou seja, um projeto que aglutinasse o PT, os partidos de centro democrático, de centro esquerda e de esquerda num programa de metas comuns, sociais, culturais, econômicas, políticas e ambientais. Um projeto que represente a superação dos preconceitos do PT contra o centro e a superação dos preconceitos do centro contra a esquerda. A modernidade é inviável sem a esquerda e a modernização é impossível sem que o capital e o empresariado se disponham a conversar com os sujeitos de demandas sociais, a classe trabalhadora, mas também a classe média dos setores de serviços, a classe média cuja grande demanda á a da educação pública, laica e gratuita.
Terminou a era do empresário mero dono de dinheiro como propriedade privada, que desconhece a função social da riqueza. As esquerdas têm que se reeducar para essa nova realidade e devem ajudar na reeducação dos ricos para a verdadeira função de empresários, os que cuidam da reprodução da riqueza e não os que gastam a riqueza.
Os assalariados em geral estão em busca de oportunidades de ascensão social. Na perspectiva de direita, ascensão é a criação de uma sociedade de competição autodestrutiva e consumista. Numa perspectiva social e de esquerda a ascensão tem que ser o acesso a oportunidades de crescimento cultural, de consciência crítica autoprotetiva contra os riscos da manipulação política e ideológica. E, também, uma consciência profissional que possibilite ao trabalhador reformular ele mesmo sua profissão em face de transformações econômicas e tecnológicas cada vez mais frequentes. A educação profissional tem que sofrer incremento, de modo que o próprio trabalhador possa se reciclar em casos de reestruturação produtiva e transformações no processo de trabalho. Ele tem que ser crítico em relação à própria profissão. Isso vale do mecânico ao professor.
Ascender socialmente é muito diferente de se tornar caricatura da classe média americana, que acontece aqui. É ter condições materiais que permitam a quem trabalha dispor e desfrutar das possibilidades que a justa remuneração do trabalho possibilita. Salário em conflito com a civilização não é salário. É usurpação.
IHU - Dados de pesquisas recentes indicam que aproximadamente 20 milhões de pessoas estão passando fome no país e o número de favelas dobrou em dez anos. Como chegamos a essa situação e como enfrentá-la na direção da justiça social?
José de Souza Martins – São quase 20 milhões de famélicos e, segundo a mesma fonte, mais 80 milhões de pessoas à beira da fome. Portanto, quase metade da população brasileira está vivendo em situação de fome.
Treze milhões estão desempregados e 38 milhões estão ocupados na informalidade, em empregos precários e temporários. O que indica que as vítimas da fome não são apenas as vítimas do desemprego. Ou seja, o modelo econômico brasileiro é o de um modo de produção capitalista de miséria. Um modo de produção baseado na minimização do trabalho e na correspondente taxa extraordinária de lucro. Desde o século XIX sabe-se que por esse caminho, o de uma sociedade cada vez mais rica e mais pobre ao mesmo tempo, essa contradição comprometerá a sobrevivência do capitalismo sem nada colocar no lugar. Não se trata de uma anomalia que possa ser corrigida e consertada com medidas tópicas e insuficientes como o auxílio governamental de R$ 400,00 mensais.
O ataque recente aos caminhões de lixo nos bairros ricos de Fortaleza, de pessoas à cata de comida, é o indício de que o Brasil está entrando num cenário de virada social, de passagem para o lado de lá da sociedade estável e organizada. Os valores de referência social estão sendo corroídos. A sociedade brasileira já está mergulhada num estado de anomia e sua economia num estado de incerteza e risco.
Não são, pois, estranhos os sinais de que há mais ordem social no crime organizado do que nas instituições políticas e do que na política do Estado. Já em 1999, em seu documentário “Notícias de uma Guerra Particular”, João Moreira Salles apontava indícios de mudança do eixo da ordem. O crime organizado como provedor de salários para jovens em valores acima da média do mercado de trabalho. Um jovem no crime ganhava mais do que seu pai no trabalho, mesmo que à custa da opção suicida pelo risco da morte antes do tempo. O crime como provedor de assistência social para famílias das favelas do Rio de Janeiro. O crime está usurpando as funções do Estado.
A questão, porém, não é apenas a da fome. É a do conjunto das carências que transformaram a pobreza num modo de vida baseado nas fantasias e no imaginário da sociedade de consumo, em que as vítimas fazem de conta que têm o que não têm nem podem ter na economia rentista a que foi reduzido o capitalismo no Brasil. Uma economia de lucros extraordinários decorrentes da miséria extraordinária, da miséria lucrativa. Coisas de um capitalismo que não aposta na própria sobrevivência e de um empresariado incapaz de cumprir sua função social que é a de ser funcionário do capital e não propriamente dono e senhor do capital.
O que deixa aberto um único caminho sensato: na falta de outra alternativa, as esquerdas talvez tenham que salvar o capitalismo, revolucionando-o, se quiserem salvar-se. Isto é, definindo como eixo do processo de reprodução ampliada do capital a reprodução ampliada e responsável dos direitos sociais e da participação justa na repartição da riqueza criada às custas do trabalho visível e do trabalho invisível, isto é do trabalho social desproporcionalmente apropriado como bem individual do titular da riqueza.
Sem o reconhecimento e a prioridade do social, o capitalismo é inviável. O Brasil é um laboratório de uma estupidez lucrativa, antiempresarial e anticapitalista. As esquerdas, não só os comunistas, têm se omitido na avaliação crítica do que é hoje a exploração do homem pelo homem e seu principal resultado, uma nova alienação que entorpece a consciência social dos problemas e a possibilidade de enfrentá-los politicamente. Analisei diferentes aspectos desse tema em livro recente: Sociologia do Desconhecimento – Ensaios sobre a incerteza do instante (Editora Unesp, 2021).
IHU - Por que parece não haver reação social diante desse quadro? A pandemia por si só explica essa situação?
José de Souza Martins – Sociedade de vários modos estruturada pela escravidão, de personalidades de escravos e livres por ela definidas, somos historicamente um povo passivo e conformista. Além disso, nossas mediações políticas e sociais, como os partidos, os sindicatos, as igrejas, as escolas desenvolveram uma pedagogia de cooptação da consciência social e de manipulação do querer social que nos tolhe.
As esquerdas partidarizaram seus seguidores, mas não os politizaram, ou seja, não os libertaram da tutela ideológica e eleitoral nem lhes ofereceram condições de a compreenderem e de se defenderem dos poderes, especialmente dos pequenos poderes do cotidiano. Quem está descontente é “contra”, mas não é a favor, nem sabe sê-lo, de um projeto social alternativo para a situação adversa.
A pedagogia do esclarecimento e da libertação, a pedagogia crítica, tem sido mal-recebida por seus destinatários. Vítima de intolerância ideológica dos que não suportam a reflexão com base na tradição do pensamento crítico e científico, conheço isso muito bem. Porque a crítica social, na perspectiva dialética, não é fazer a crítica antagonista do que o outro é, faz e pensa. A crítica social é a de nos compreendermos em face do outro, de quem, no que pensa e faz, não inclui o atendimento de nossas necessidades sociais. Do mesmo modo, se não reconhecemos no outro o direito de ter suas necessidades sociais reconhecidas e atendidas, somos tão reacionários quanto ele.
A modernização e atualização das esquerdas passa pelo reconhecimento do caráter cada vez mais pluralista da sociedade moderna. Se não houver nela lugar para o outro, tampouco haverá para nós. A intolerância pressupõe ditadura e mesmo no tosco e falso liberalismo da classe média e da elite ninguém quer ditadura a não ser a própria, coisa que estamos vivendo hoje no Brasil.
É claro que a pandemia bloqueou ou atenuou o acesso às ruas para o protesto popular. Mas tem havido outras manifestações de inconformismo. Ainda que um inconformismo pobre em face da enorme gravidade da crise e da notória incompetência e má orientação do presidente, dos ministros e altos funcionários e da maioria dos membros do Parlamento.
Desde o dia 1º de janeiro de 2019, o presidente Bolsonaro tem demonstrado indiferença pelo poder e ausência de responsabilidade no trato de questões que pedem postura e disponibilidade responsáveis. Cotidianamente, ele tem dado indicações claras de renúncia tácita ao mandato para o qual foi eleito. Isso não é normal. Verificada e comprovada essa renúncia, o Congresso já deveria ter tomado medidas para impedi-lo ou para interditá-lo. Por outro lado, desde o primeiro dia do mandato ele faz campanha eleitoral pela reeleição, o que em algum momento deveria implicar em classificá-lo como inelegível. O que traria problemas porque o vice-presidente que o substituiria é um dos ideólogos do bolsonarismo e da geopolítica da sujeição. Eis o impasse.
IHU - Como enfrentar o vírus da indiferença, especialmente a partir da dimensão poética a que o senhor costuma fazer referência, mesmo diante da miséria em que estamos imersos? Como inspirar os jovens nesse sentido?
José de Souza Martins – O tipo de militância política que tem sido desenvolvida, especialmente pelo PT e pelo MST, e o aparelhamento e enquadramento ideológico e partidário das pastorais sociais por eles anestesiou e bloqueou a criatividade dos grupos portadores de demandas sociais não atendidas nem atendíveis.
Refiro-me aos grupos que tentaram expressar-se politicamente através dos movimentos sociais. Os grupos que, libertos dessa tutela, por meio de uma pedagogia de reconhecimento do social e politicamente possível que há nos grupos marcados pela cultura do tradicionalismo social ainda não corrompido pelas influências destrutivas do capitalismo e suas mediações mercantis e coisificadoras do homem. E, portanto, nas grandes formulações do pensamento conservador.
Aliás, o pensamento social da Igreja nele se funda. Nesse sentido, a própria militância sociologicamente alienada rompeu o vínculo entre práxis e poiesis, entre a práxis e a poesia que ela pode conter, que é a poesia do possível e da transformação social emancipadora e libertadora, o que Henri Lefebvre define como práxis revolucionária, a da revolução na vida cotidiana, no modo de viver, de ver e de pensar. Quem tentou difundir esses ensinamentos foi satanizado.
IHU - Entre os inúmeros desafios que temos pela frente, quais destaca como sendo os três mais urgentes para este ano que inicia?
José de Souza Martins – O mais urgente é tirar Bolsonaro e o bolsonarismo do poder por meio de uma eleição que expresse a competência da sociedade brasileira para se expressar por meio de uma coalizão política democrática. Uma revogação do erro eleitoral induzido pelas “fake news” de 2018.
Em segundo lugar, elaborar, com urgência, um programa social, político e econômico básico que assegure a vitória e a durabilidade dessa coalizão.
Em terceiro lugar, não cometer o erro de supor que uma eventual vitória nas eleições de 2022 significará o retorno do PT ao poder. Essa vitória restituirá ao PT protagonismo enquanto agente do dever de uma retomada pluralista da democracia por meio de novos e diferentes protagonistas. Sem transformar-se profundamente, o PT não voltará ao poder. Mesmo eleito terá dificuldades para nele permanecer. Até porque há outras alternativas no caminho de nossa democracia possível.
IHU - Quais são os desafios do próximo ano eleitoral?
José de Souza Martins – Reinstalar a democracia no poder e na configuração do Estado brasileiro.
IHU - Como manter a esperança em meio às crises a que estamos imersos?
José de Souza Martins – A esperança é uma construção social cujas bases estão corroídas no Brasil. Não se trata de mantê-la, mas de reencontrá-la naquilo que ela essencialmente é. Isso depende de querer encontrá-la. As igrejas autenticamente cristãs, a Católica e algumas das protestantes, estão nessa busca, a da reinvenção da esperança. É importante familiarizar-se com os documentos referenciais da Igreja, especialmente os mais recentes.
Nos momentos de crise, a esperança se refugia nos interstícios residuais dos desvalimentos. É ali que sociedades como a nossa e dos que estão conosco poderão encontrar o manual da superação da hora presente e do desvendamento do historicamente possível.