Nos últimos 20, 30 anos, os sociólogos brasileiros estiveram distraídos e “não prestaram atenção na direção em que as mudanças estavam acontecendo, porque achavam que elas estavam indo na direção contrária à da que se viu depois”, diz o sociólogo José de Souza Martins. Mais recentemente, diante de uma “mudança brutal na sociedade brasileira”, muitos ficaram surpresos, quando não havia razões para surpresas.
De acordo com o professor Martins, a distração dos sociólogos brasileiros com os rumos do país sinaliza um outro problema: a invasão ideológica neutralizou a ciência. “Houve uma ideologização da produção do conhecimento sociológico, aquela coisa do politicamente correto, a coisa do engajamento. Mas a prioridade de qualquer trabalho sociológico não é nem engajamento nem o politicamente correto. O sociólogo tem que ser objetivo; esse é um princípio básico da ciência. Houve muita condescendência com esse voluntarismo político que foi muito marcante no Brasil, e que produziu análises que não servem para nada no fim das contas”, critica.
Na entrevista a seguir, concedida pessoalmente à IHU On-Line na última terça-feira, 03-09-2019, quando esteve na Unisinos ministrando a aula magna dos 20 anos do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, cujo título foi “O Brasil ideológico e desatento: Mudanças sociais e políticas e uma nova agenda de prioridades temáticas da sociologia”, José de Souza Martins explica a importância do método científico para fazer ciência e sugere um retorno aos clássicos. “O que acho que houve a partir de 1964 foi que as pessoas perderam a perspectiva do método, as ciências sociais e a sociologia se expandiram pelo Brasil e se passou a fazer sociologia imaginando que, usando conceitos, se faz ciência. A ciência não é feita de conceitos. Conceitos são muletas que usamos para ir demarcando o terreno da análise. Mas a questão central é a do método, do método lógico, do método de explicação conectado com o método de investigação”.
Ele também reflete o impacto das ideologias nas resoluções dos problemas sociais, como o da questão agrária, que não se modificou. “A atualização da minha interpretação da questão agrária já está feita, porque a questão agrária não se modificou depois disso, ela parou ali, isto é, houve uma derrota clara das lutas populares, uma acomodação e, portanto, nenhuma novidade aconteceu depois disso”, afirma.
José de Souza Martins durante a Aula Magna (Foto: Frame do Youtube)
José de Souza Martins é graduado em Ciências Sociais, mestre e doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP. Foi professor-visitante da Universidade da Flórida e da Universidade de Lisboa e membro da Junta de Curadores do Fundo Voluntário da ONU contra as Formas Contemporâneas de Escravidão, de 1998 a 2007. Foi professor da Cátedra Simón Bolívar, da Universidade de Cambridge (1993-1994) e atualmente é professor titular aposentado da USP. Entre suas obras, destacamos Exclusão social e a nova desigualdade (São Paulo: Paulos Editora, 1997), A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala (São Paulo: Contexto, 2000), Linchamentos: a justiça popular no Brasil (São Paulo: Editora Contexto, 2015) e Do PT das lutas sociais ao PT do poder (São Paulo: Editora Contexto, 2016).
A entrevista a seguir foi revisada pelo entrevistado após a publicação da primeira versão, publicada em 09-09-2019.
A entrevista foi publicada originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, em 24-02-2020.
IHU On-Line - A primeira parte do título da sua aula magna no curso de Ciências Sociais da Unisinos é “O Brasil ideológico e desatento”. Em que sentido o senhor está empregando essas palavras e desde quando o Brasil está “ideológico e desatento”?
José de Souza Martins – Eu faço uma crítica a uma certa distração dos sociólogos brasileiros, que nos últimos 20, 30 anos, não prestaram atenção na direção em que as mudanças estavam acontecendo, porque achavam que elas estavam indo na direção contrária à de que se viu depois.
IHU On-Line – Em que sentido especificamente?
José de Souza Martins – O Brasil não foi na direção suposta pelos governos e muito menos pelos sociólogos e, de repente, há uma mudança brutal na sociedade brasileira e fica todo mundo surpreso. Surpreso com o quê? Não há que ficar surpreso; significa que o pessoal estava distraído. Então, faço a crítica da distração e da falta de prontidão dos sociólogos brasileiros, de uma certa vulnerabilidade ao que parece, mais do que aquilo que é. Isso não é bom para um sociólogo. O sociólogo não pode fazer isso.
IHU On-Line – Nem os jornalistas.
José de Souza Martins – Sim, mas o sociólogo menos, porque o jornalista sempre tem a desculpa de que as notícias mudam de um dia para o outro. Mas os sociólogos não podem dizer isso de jeito nenhum.
IHU On-Line – Por que o senhor avalia que os sociólogos estavam distraídos nos últimos anos? Identifica alguma razão?
José de Souza Martins – Houve uma ideologização da produção do conhecimento sociológico, aquela coisa do politicamente correto, a coisa do engajamento. Mas a prioridade de qualquer trabalho sociológico não é nem engajamento nem o politicamente correto, da ilusória certeza na linearidade do processo histórico. O sociólogo tem que ser objetivo; esse é um princípio básico da ciência. Houve muita condescendência com esse voluntarismo político que foi muito marcante no Brasil, e que produziu análises que não servem para nada no fim das contas.
IHU On-Line – A sua crítica se estende aos últimos 20, 30 anos. Então, ela não diz respeito somente aos sociólogos ideólogos do PT? O senhor está falando de um processo que iniciou antes?
José de Souza Martins – Estou falando também deles. Claro que a sociologia em todos os países e em todas as sociedades reflete muito o que aquela sociedade é e as dificuldades pelas quais ela está passando. No Brasil, a sociologia acadêmica não nasce com Gilberto Freyre, mas com a missão francesa que funda a Universidade de São Paulo e nos traz padrões de trabalho científico. O primeiro professor de sociologia da USP foi [Claude] Lévi-Strauss, que depois se tornou um etnólogo famoso. Depois veio o Roger Bastide. Todos eles vieram para o Brasil para escapar do que estava acontecendo na Europa: não só na questão política stricto sensu - também por isso -, mas para escapar do racionalismo exacerbado, da ideia de que a razão explica tudo, de que tudo se resume nela. Eles sabiam que havia lugares no mundo, como a África e a América Latina, em que a razão não reinava. Era residual e adjetiva, como continua sendo. Bastide era protestante, calvinista, de uma família de sobreviventes da Noite de São Bartolomeu. Ele veio para o Brasil para estudar a cultura negra, o candomblé, e se tornou filho de santo para poder entrar nesse universo. Ele faz uma sociologia muito criativa parceira da antropologia.
Durante muito tempo a sociologia no Brasil foi uma sociologia como que voltada para entender os bárbaros e civilizá-los - bárbaros eu é que estou falando -, mas para compreender o homem simples, primeiramente. A ideia era fazer da sociologia um instrumento de mudança social – ela foi introduzida para formar professores para a escola primária -, uma ponte entre pessoas que estavam à margem da sociedade e as conquistas da sociedade moderna, como o desenvolvimento industrial, por exemplo. A sociologia no Brasil se preocupou, durante muito tempo com as chamadas resistências sociais à mudança.
No fim dos anos 50, começo dos anos 60, quando me tornei aluno da universidade, essa perspectiva era dominante e aprendíamos sociologia em função disso. Durante o período em que eu estava no curso, aconteceu uma virada, que foi a da influência do nacional desenvolvimentismo, expressão do projeto de nação do getulismo e do juscelinismo, expressos em obras de autores como Roberto Símonsen e Celso Furtado.
O nacional desenvolvimentismo é o desenvolvimento social e econômico voltado para dentro. A ideia era que o Brasil tinha que deixar de ser colônia, reduzido à economia agrícola de exportação, como o açúcar e o café. O país tinha a alternativa da industrialização apoiada na valorização do mercado interno. Houve uma grande aliança de classes sociais voltadas para fazer do Brasil um país moderno, mas brasileiro. Foi o período do boom industrial, da indústria automobilística, um momento bonito da sociedade brasileira. A sociologia compreendeu e assumiu o desafio de estudar e analisar as mudanças sociais na perspectiva das dificuldades do que era historicamente possível. Aquele foi o período em que Fernando Henrique Cardoso – que foi meu professor – foi aluno e professor na USP, além de Octavio Ianni e os pesquisadores que se dedicaram ao seminário semanal sobre o método em O Capital, de Karl Marx. Aí vem o golpe de 1964, que enterrou isso tudo. Da noite para o dia, mudou a temática da sociologia brasileira: enquanto projeto de estudo, já não valia; aquele projeto histórico não dera certo.
Nós vivemos, a partir de 1964, um período muito longo de oposição pura e simplesmente, sem entender que as alternativas para o Brasil eram justamente as de falta de alternativa. Não nos deixaram nenhuma alternativa: as novas gerações não têm nenhuma alternativa, os cientistas não têm nenhuma alternativa. Estamos sendo transformados em colônia, de um país que avançou lá na frente e que nos trata como um país lá de trás.
Vou tentar fazer uma crítica à sociologia perdida que estamos fazendo: tudo fragmentário. Não tem um projeto de nação por trás das ciências sociais.
IHU On-Line - É possível perceber, no seu percurso intelectual e na sua produção acadêmica, uma análise metassociológica e uma preocupação com o método de pesquisa em ciências sociais. Inclusive, na introdução do seu livro “Exclusão social e a nova desigualdade”, que é dos anos 1990, o senhor critica o fato de os conceitos terem um lugar central em algumas análises sociológicas que tentam explicar o social, porque esses conceitos funcionam como rótulos e não captam o social propriamente dito. Em outras palavras, o senhor diz que “os militantes não derivam os conceitos da práxis, mas procuram fazer da práxis a realização dos conceitos”. Em outro artigo publicado neste ano, o senhor voltou a tratar da ideologia na ciência. O que eu gostaria de perguntar é o seguinte: em que momento do seu percurso intelectual o senhor se deu conta de que esse fenômeno ocorre nas ciências sociais e como começou o seu processo de fazer uma meta-análise das ciências sociais?
José de Souza Martins – Eu fiz toda a minha formação no grupo de Florestan [Fernandes], na USP e, nesse grupo, a questão do método precede todas as outras questões. Eu fui educado nessa linha. O que acho que houve a partir de 1964 foi que as pessoas perderam a perspectiva da precedência do método, as ciências sociais e a sociologia se expandiram pelo Brasil e se passou a fazer sociologia imaginando que, usando conceitos, se faz ciência. A ciência não é feita de conceitos. Conceitos são muletas que usamos para ir demarcando o terreno da análise. Mas a questão central é a do método, do método lógico, do método de explicação conectado com o método de investigação. O conceito resulta disso e não isso resulta do conceito. Essa é a crítica forte que farei na palestra de hoje à noite [03-09-2019].
Foi lá por 1975 que dei a minha virada. A chave não é só aplicar o método, mas descobrir o que a realidade investigada, na perspectiva do método, te obriga a fazer para pensar essa realidade. Os três métodos científicos fundamentais explicativos usados na sociologia são métodos produzidos na Inglaterra, na Alemanha e na França. Na sociologia, os métodos científicos expressam o que determinada sociedade é, sua estrutura social, seus valores, sua mentalidade. De certo modo, os métodos correspondem às singularidades das sociedades que os inspiraram. Os professores da Missão Francesa, na USP, vieram atrás de descobertas no campo do singular e original, o diferente em relação ao já conhecido.
IHU On-Line – A análise metassociológica é um processo que o sociólogo ou os pesquisadores de outras áreas conseguem perceber somente a partir da maturidade do desenvolvimento das suas pesquisas?
José de Souza Martins – Depende da educação intelectual que ele teve. Eu comecei a me dar conta de uma coisa diferente da linha em que vinha, porque meus professores foram cassados e, de repente, junto com um grupo da minha geração, que ainda não deveria estar assumindo funções de orientação, fui obrigado a assumir funções de criação interpretativa num grupo que ou fazia isso ou morria. A ideia, a partir da perspectiva metodológica, passa a ser, então, tentar descobrir o que é o Brasil de fato. Era isso que o grupo já vinha fazendo, mas esse fazer fora interrompido. O que é o Brasil de fato? O que o Brasil nos diz? Todas as sociedades têm a sua singularidade e o que se tem hoje é que todo mundo copia o que os americanos fazem, o que os europeus fazem. Mas isso não tem nada a ver com o Brasil, ou tem muito pouco. Uma realidade social como a brasileira pede a recriação das interpretações. Não adianta aplicar uma sociologia parsoniana no Brasil, que não vai explicar nada. Nós temos que descobrir o que é o Brasil, quem nós somos. É o que aconteceu com Lévi-Strauss, que estava em Mato Grosso conversando com um xamã indígena e o xamã contou para ele um mito nambiquara. Nesse momento, deu um estalo na cabeça do Lévi-Strauss; é o momento exato em que nasce o estruturalismo lévi-straussiano. Por que isso aconteceu? Porque ele tinha formação teórica. Podia desenvolver um método correspondente à realidade que estava observando, que virá a ser o seu estruturalismo. Então, a linha que tínhamos na USP – e isso se perdeu lá também – era a linha da prontidão para ver sociologicamente a realidade em situações que não pareciam relevantes.
Estou trabalhando mais recentemente o fato de que o Brasil é uma sociedade do avesso – esse é tema de um livro meu que deve sair nos próximos meses. O Brasil foi gerado como sociedade do avesso e não se liberta desse avesso; tudo é pensado no avesso: agimos no avesso, pensamos no avesso. Temos que enfrentar essa singularidade. O México, por exemplo, é outra sociedade: não é a sociedade espanhola, não é a sociedade inglesa; é a sociedade mexicana, só tem lá. E Brasil só tem aqui, então temos que identificar as singularidades da sociedade brasileira para explicá-la sociologicamente.
IHU On-Line - Como a ideologia presente na ciência se manifesta nas ciências sociais? Pode nos dar exemplos de abordagens sociológicas ideológicas no Brasil, ou de que ideologias têm determinado as pesquisas sociológicas?
José de Souza Martins – Nas ciências, não só na sociologia, a ideologia está presente nos pressupostos extra-científicos da pesquisa e da interpretação. Pressupostos religiosos têm condicionado, limitado e orientado análises científicas, bloqueando-lhes a criatividade investigativa e interpretativa. No Brasil, no último meio século, não foi incomum, na sociologia, o pressuposto de uma evolução linear da sociedade em direção à superação do capitalismo. Mesmo quando, no mundo inteiro, o comunismo entrou em crise e regrediu para o capitalismo. O próprio capitalismo já não é o capitalismo clássico, da crítica da economia política. No Brasil é um capitalismo inacabado, eivado de sobrevivências pré-capitalistas e atalhos não capitalistas. Não reconhecer isso, sociologicamente, tem sido uma deformação ideológica maximalista que compromete nossa sociologia como autoconsciência científica da sociedade, a que se referia Florestan Fernandes, na linha do sociólogo alemão Hans Freyer.
As ideologias que têm procurado aparelhar a sociologia são ideologias de esquerda, de um marxismo mal digerido, desvinculado do método dialético, puramente conceitual. Vi um trabalho nos anos 1970 de uma antropóloga que fez um estudo sobre uma tribo do Xingu e aplicou a categoria de modo de produção - que é uma categoria marxista – para explicá-la, o que não tem cabimento. Sem contar que o próprio Karl Marx escreveu trabalhos etnográficos e nunca cometeu esse erro. Acho que há um pseudoesquerdismo difuso que demarcou e empobreceu nosso pensamento sociológico ao estabelecer um cerco à sociologia com base na ideia de que a revolução é inevitável e só é boa a sociológica politicamente correta.
A realidade atual, não só no Brasil, desmente esse pressuposto. É a da força social e política do repetitivo e do reprodutivo das relações sociais, em detrimento do transformador e revolucionário. Tenho dado cursos e escrito artigos e livros sobre isso. As condições e possibilidades das transformações sociais e políticas são outras em nossos dias, em comparação com as do fim do século XIX e início do século XX. O tempo e a força da revolução deslocou-se para o modo de vida e as brechas históricas da vida cotidiana. Henri Lefebvre e Agnes Heller deram o grande salto interpretativo nessa linha de compreensão da sociedade contemporânea.
Isso não quer dizer que seja ideológica a linha da ciência de todos os sociólogos. Mas isso pode, às vezes, se fazer presente na sala de aula através de uma pressão ideológica que vem dos partidos através de alunos. É preciso saber dialogar com as diferentes correntes do pensamento científico. Se o pesquisador considera que ciência é só aquilo que ele acha isso não é ciência e ele nem precisa ficar na universidade.
IHU On-Line - Hoje, pesquisadores são impedidos de ministrar palestras em universidades por movimentos estudantis de caráter sociopolítico. O senhor já foi vítima disso pelo menos três vezes em universidades brasileiras e essa prática tem sido comum nos EUA. Do mesmo modo, alguns professores são questionados pelo uso de alguns textos teóricos, porque tais textos “afetariam a sensibilidade” de estudantes. A que o senhor atribui esse fenômeno e quais as implicações disso para o fazer científico, especialmente na área de ciências sociais, e para o debate acadêmico e público?
José de Souza Martins – Isso está acontecendo porque historicamente a ciência não é ideologia nem se vincula a partido político. Isso não quer dizer que os membros de partidos políticos não devam se interessar por ciência, ao contrário. Acontece que os grupos partidários, no caso brasileiro concretamente e da esquerda, estão muito fragilizados e, rigorosamente, a esquerda passa por uma crise de público no Brasil e há fatores para isso: a desindustrialização esvaziou a classe operária; o operário está sendo substituído por máquinas. Na região do ABC já existem fábricas em que não há nenhum operário. A profissão de Lula, torneiro-mecânico, se ele quisesse voltar para uma fábrica, não existe mais. Sei disso porque sou do ABC e meu irmão é ferramenteiro especialista em ferramentas leves de alta precisão, mas a profissão dele desapareceu Hoje tem um computador que faz de maneira muito melhor o que ele fazia.
A classe operária de fato, hoje, está numa situação difícil: em nosso país em que há 13 milhões de desempregados. Não se pode ser classe nessa situação, porque classe só existe quando a categoria social tem uma vontade peculiar dela, em que ela reivindica, pressiona e dirige o processo político em função de identidade e vontade de classe. O reduto que sobrou para a esquerda é a universidade e não são todas as áreas da universidade, mas as Humanas. Porém, sem qualquer conexão vital com uma categoria social que dê sentido a suas manifestações.
IHU On-Line - As críticas que o senhor fazia nos anos 1990 também são reiteradas hoje. Alguns teóricos afirmam que as universidades brasileiras e os intelectuais importam teorias estrangeiras, como o marxismo, o estruturalismo, a teoria de gênero, o feminismo, o pós-colonialismo, para interpretar os fenômenos sociais do Brasil. Por que essa prática se acentuou na universidade?
José de Souza Martins – Não tem sentido recusar a leitura de autores estrangeiros e não tem sentido a falta de familiaridade com os clássicos e autores teoricamente criativos. A criatividade teórica e interpretativa da sociologia entre nós tem dependido e depende de enraizamento do pensamento sociológico na sociedade brasileira. Não só naquilo que é parecido com o que é próprio das sociedades de origem as teorias sociológicas, mas também e sobretudo naquilo que é próprio de nossa sociedade e que nos faz diferentes e mesmo divergentes delas.
A metodologia, sim, se aplica a qualquer sociedade que tem as características que foram referência daquela metodologia. Nós não temos uma teoria nossa, uma metodologia brasileira. O estruturalismo lévi-straussiano foi desenvolvido a partir da conversa com o xamã porque havia um francês culto na frente dele que era capaz de entender antropologicamente o que ele estava dizendo.
Fui professor na universidade de Cambridge, na Inglaterra. Meu college, Trinity Hall, é um dos mais antigos de Cambridge, é de 1350. Vizinho dele, tem outro muito mais jovem, que é de 1500 e alguma coisa, que foi o college de [Isaac] Newton. Na entrada do Trinity existe um gramado e no meio tem uma macieira plantada, a qual é descendente direta da famosa macieira da maçã que não caiu na cabeça de Newton, mas caiu em sua frente. Junta muita gente, especialmente japoneses, orientais, que ficam adorando a macieira. Por que ela é importante? Ela não é importante; importante é Newton. Ela é simbolicamente importante porque caiu quando Newton estava sentado no horto do college com seus cadernos, tomando notas e refletindo sobre o problema de pesquisa que o desafiava naquele momento. À luz da pesquisa que Newton estava fazendo, a maçã não caiu, ela foi atraída pelo centro de gravidade da Terra. Se você for um cientista, você entende o que está acontecendo. Se você não for um bom cientista, não perceberá as revelações do rotineiro.
Nós temos excelentes cientistas sociais no Brasil, porque tiveram excelente formação metodológica e eles são capazes de ver as coisas, dar uma explicação científica para elas e aprender com elas, porque o cientista não é o que fica explicando que aquela planta é assim e tal; ele interage: a coisa diz para ele algo e ele devolve explicando aquela coisa, porque a situa, decifra e explica. As novas gerações tem dificuldade percorrer esse caminho, especialmente aqui, em que são tantos os desestímulos à pesquisa científica.
IHU On-Line – Isso acontece por quê? Há um problema de formação nas universidades nos últimos anos?
José de Souza Martins – Além do desestímulo crônico, que mencionei, sem sempre os governantes e as autoridades encarregadas do trato com as áreas da educação, da cultura e especificamente da ciência são qualificadas. É o problema do cerco ideológico que cerceia e desqualifica a ciência. Eu sou um grande admirador de Lula, um político comparativamente diferençado, não sou petista nem tenho vínculo partidário com nenhum partido. A primeira vez que encontrei com ele foi a pedido dele. Praticamente dei uma aula para ele sobre a questão agrária que ele ouviu atentamente. Ele é um dos políticos brasileiros mais inteligentes. Um dos grandes erros e problemas dele foi, invariavelmente, ter depreciado os títulos acadêmicos. Essa é uma obsessão de Lula. Ele tem dado frequentes demonstrações de que sofre por ter sido sucessor de um intelectual de competência internacionalmente reconhecida. Fernando Henrique – que conheço bem, fui aluno dele e sou leitor de suas obras -, é um homem de grandes méritos intelectuais, é um grande cientista. Ele é o único ganhador do que é considerado o Prêmio Nobel de Sociologia – o Prêmio da Biblioteca do Congresso dos EUA, que é equivalente ao Prêmio Nobel –, e foi presidente da Associação Internacional de Sociologia. Depois de ser presidente, voltou à sala de aula como professor da Brown University, nos Estados Unidos. Ao fazer deboche dos títulos e diplomas universitários, Lula estimula nos estudantes universitários a ideia de que os livros não servem para nada, o diploma não serve para coisa nenhuma.
IHU On-Line - Como diferenciar o que é ideologia do que é ciência em ciências sociais? Qual é o critério de demarcação entre ideias científicas e não científicas na sociologia?
José de Souza Martins – A ideologia é orientada por valores, quase sempre valores de grupo ou percepções individuais de valores de grupo. Expressam interesses. A motivação é a de confirmar as convicções extracientíficas de quem pesquisa, mesmo quando se engana ao supor que sua verdade é a verdade inteira. Se você for católico e não conseguir neutralizar o seu catolicismo ao fazer sociologia, fará uma sociologia limitada ao que quer ou pode ver, viesada ideologicamente. Se você for protestante, o viés vai ser outro. Se você não for nada, pior ainda, porque não vai conseguir lidar com uma sociedade como esta que é de pessoas religiosas. Eu não vou discutir a qualidade da religiosidade do brasileiro, mas são pessoas que acreditam; mesmo quem diz que não acredita, crê em alguma coisa. O Brasil é um país em que um milhão de habitantes tem fé, mas não tem religião, não tem opção confessional. Na pesquisa sociológica tenho que ser objetivo, o que não quer dizer contra. Tenho que desenvolver uma compreensão científica das crenças como objeto de conhecimento e não como instrumento de conhecimento. Isso vale, também, para o senso comum. Todas essas modalidades extracientíficas de compreensão da realidade a deformam, são viesadas do ponto de vista científico, embora tenham pleno sentido no vivencial. A alienação do trabalho é socialmente necessária à justificação e legitimação subjetiva da exploração do trabalho, sem a qual essa exploração seria insuportável e comprometeria a reprodução social da relação de exploração. A ideologia deforma e acoberta o real, ao mesmo tempo que viabiliza a reprodução deformada do real.
Se você é – e isso aconteceu muito nos últimos anos – petista, não lê quem não é petista. Eu passei por essa situação inúmeras vezes na minha vida, de me questionarem, de porem em dúvida a objetividade do conhecimento sociológico que produzo porque não é petista e não sendo petista só pode ser dos inimigos do PT. Houve situações cômicas. Depois da conversa que tive com o Lula, ele recomendou que diferentes grupos de lulistas do Brasil inteiro conversassem comigo, porque o PT estava querendo entrar na questão agrária e não sabia nada sobre o assunto, incluindo os agraristas do partido, mais acadêmicos de gabinete. O primeiro grupo que me chamou por sugestão do Lula foi a Central Única dos Trabalhadores – CUT. Passei um dia inteiro ministrando um curso no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, para cerca de mil pessoas. Num certo momento, o presidente da CUT reagiu porque ele achava que ao descrever os problemas sociais do campo, que são dramáticos e muito mais dramáticos do que os da classe operária, eu estava diminuindo a classe operária, porque ela é o “nó” da história.
Depois, fui dar um curso na Universidade do Ceará e um grupo do PT veio me procurar. Convidou-me para almoçar no domingo na casa de um deles. Não estava claro que era um grupo do PT, mas eles insinuaram que Lula tinha sugerido que conversassem comigo. Eu chego lá, tudo muito simpático e à vontade – era uma conversa informal –, aí me dei conta de que era um grupo do PT. Esclareci que eu não era membro do PT mas estava à disposição para conversar, se quisessem. Expliquei-lhes que não era membro de partido político nem pretendia ser. Era o que já havia dito a Lula. O almoço esfriou na hora; eles não conseguiram almoçar nem conversar comigo. O que aconteceu? A ideologia se sobrepôs à possibilidade de uma conversa sobre sociologia.
Isso acontece com os alunos. A sociologia, enquanto ciência, é objetiva: um biólogo que está estudando a minhoca não se apaixona por ela, porque não serve para nada se apaixonar pela minhoca. Da mesma forma, se você estuda um grupo humano X, você não pode se converter ao grupo, você nunca será membro daquele grupo porque você é outra pessoa. Então, o que tem que fazer é assumir a sua alteridade e observar objetivamente de fora para dentro, sabendo quais são suas limitações, porque você não é daquele grupo. Poderá viver com ele, mas sempre será o outro.
Se pensarmos num grupo indígena, por exemplo, eles têm valores que não se revelam imediatamente, não são discursivos, eles não vão fazer uma sociologia ou uma antropologia para você; eles são eles e você é quem tem que descobrir e, objetivamente, entender que a humanidade é feita de diferenças. Há homem e mulher, que são diferentes, existem crianças que vão se tornar adultas e que são diferentes; as pessoas mudam e se ressocializam. Então, temos que estar atentos a isso tudo. O pesquisador não pode determinar o que a sociedade deve ser e nem fazer o que Bolsonaro faz. Para ele, ser brasileiro é ser o que ele acha que é, e o que ele é não é brasileiro; esse é o detalhe. Ele recebeu uma educação de quartel, por isso ele tem as limitações da visão de mundo instituição que o educou., como eu posso ter as minhas. O sociólogo trabalha objetivamente quando consegue situar e relativizar todas essas diferenças.
IHU On-Line - Os intelectuais ou militantes que se apaixonam por partidos não têm, de outro lado, uma preocupação genuína com questões sociais e por isso se vinculam apaixonadamente a partidos ou teorias que acham que representam suas preocupações?
José de Souza Martins - Certamente tem eles preocupações genuínas com as questões sociais. Mas, porque limitados pelos imperativos ideológicos da militância partidária, quando nela se envolvem, isso não torna suas análises objetivas e científicas. O que empobrece o próprio sentido que, com a ciência de viés ideológico, querem dar à sua militância. São cientistas com bloqueios e limitações. Tenho um pé atrás em relação às análises eu fazem. Frequentemente, deixam um rastro de insuficiências no que analisam. Quase sempre é uma sociologia enquadrada, sob cerco. A sociologia que faço é uma sociologia de descoberta: estou de prontidão para me surpreender; essa é a minha atitude e todo o cientista deveria fazer o mesmo. Por isso é que existe, em todas as ciências, “serendipity” [feliz descoberta ao acaso], que é o nome de uma ilha que foi descoberta por acaso. O cientista tem que estar aberto para essa possibilidade. Foi assim que o escocês Alexander Fleming descobriu a penicilina, em 1928. O cientista tem que estar de prontidão científica para as revelações do acaso. Ideologia não leva a descobertas de valor científico.
IHU On-Line – E com o DNA.
José de Souza Martins – E com o DNA. Aliás, sobre o DNA tem uma historinha lindíssima: o DNA foi descoberto em Cambridge. Um dos descobridores era do Clare College, que é o college de Fernando Henrique Cardoso, que foi professor em Cambridge, e o outro é do Gonville and Caius College. Eles faziam a pesquisa no Laboratório Cavendish, que, se olhar o lugar, ninguém acredita que uma revolução da ciência aconteceu ali. Eles se reuniam lá e todos os sábados saíam do laboratório e iam almoçar no pub Eagle, que existe desde 1667, localizado a 50 metros do laboratório. Num sábado, eles estavam indo para o Eagle e no meio do caminho um deles, Francis Crick, decidiu voltar ao laboratório para fazer mais um teste. Vinte minutos depois ele chegou no pub “branco como uma cera” e disse para James Watson: “acabamos de descobrir o segredo da vida”. O dono do pub mandou colocar uma placa com essa frase na fachada da casa e a mesa em que eles estavam quando isso aconteceu ainda está lá. A pesquisa tem esse lado de aventura, mas uma aventura que só tem sentido se você estiver trabalhando com as categorias da ciência, senão, é só mais uma cervejinha.
IHU On-Line - Quais são as teorias sociais que têm crescido na academia brasileira e quais suas implicações políticas e sociais para o debate público?
José de Souza Martins – As teorias são as mesmas; nada de novo aconteceu nas ciências sociais, na sociologia em particular, desde o último grande teórico que foi Max Weber. A partir disso, tudo o que se fez depois foi desenvolvimento das possibilidades teóricas daquilo que os clássicos já tinham formulado. No Brasil, a sociologia, de certo modo, parou na obra de Florestan Fernandes e de seus discípulos mais próximos. Mesmo aí, com a preocupante evidência de que a sociologia de Roger Bastide, de Florestan, de Fernando Henrique Cardoso, de Octavio Ianni, de Marialice Mencarini Foracchi raramente é citada e raramente entra nos cursos de formação dos novos cientistas. Em minha própria escola, num curso sobre relações raciais, a obra de Florestan não foi incluída na bibliografia, embora ele tenha se tornado um reconhecido sociólogo da questão racial. Gilberto Freyre não só saiu do horizonte , como é satanizado pelas novas gerações porque sua obra colide com o politicamente correto de certos grupos. Minha tese é que para sair do imobilismo, é importante voltar aos clássicos e reconstituir uma sociologia brasileira a partir dos clássicos, porque o Brasil mudou muito. Temos que nos redescobrir no retorno aos clássicos, sobretudo para rever aquilo que abandonamos.
IHU On-Line - Há clássicos na sociologia brasileira que deveriam ser retomados?
José de Souza Martins - Sim. Os clássicos devem ser relidos sempre. Hoje, eu começaria um curso de introdução à sociologia com Roger Bastide. Estou cada vez mais encantado com as coisas dele que estou revendo – estou nesse voltar atrás. Ele era um homem incrível, que trabalhou com a ideia de estruturas sociais profundas. Hoje se discute a questão dos negros e das cotas. Bastide foi o grande especialista na questão racial no Brasil, ele mergulhou de cabeça nisso, se apaixonou pelo tema, foi à África com Pierre Verger, fotógrafo francês radicado na Bahia, que fotografou o candomblé. Escreveu um trabalho pequeno de baseado numa pesquisa sobre sonhos, de negros. O que você sonha tem a ver com aquilo que você é.
Descobriu que boa parte dos negros – a pesquisa foi feita em São Paulo – não sonha como negro, ou seja, eles não são mais negros; eles sonham como brancos, o imaginário onírico de muitos negros é branco. São negros aqueles que sonham com os ancestrais e com eles conversam, pedem e ouvem conselhos. É a negritude. O candomblé faz essa ponte, pois você fala com as entidades do candomblé e com os ancestrais e eles te dão conselhos. Se você está sofrendo, está penando, eles têm uma saída, te ajudam a compreender o que está acontecendo. Então, a negritude é isso, não é a cor da pele simplesmente.
É importante fazer a releitura de Florestan Fernandes. Seu melhor trabalho de resposta para uma situação como a nossa não foi reeditado, seu livro “Ensaios de Sociologia Geral e Aplicada” (Biblioteca Pioneira de Ciências Sociais, 1960). Nós não desenvolvemos sua proposta teórica de uma sociologia aplicada no Brasil. A sociologia ficou indiferente às possibilidades de sua aplicação em face das decorrências socialmente problemáticas do nosso desenvolvimento econômico.
Eu leria não só o grupinho da USP e da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, bem como os “solitários” de várias regiões que produziram trabalhos decisivos para compreender o Brasil em perspectiva brasileira, no Rio, em Minas, em Pernambuco. Fizeram pesquisas no momento em que a sociologia brasileira era muito promissora; nós abandonamos o que eles estavam fazendo. O legado da sociologia, em todas as partes, aqui também, é muito mais o das perguntas ainda não respondidas, as indagações teoricamente reveladoras, as dúvidas pendentes cujas respostas carecem de teoria e de inovação teórica. É claro que, no meio do caminho, entre os pioneiros e a geração mais jovem, muita coisa se fez, novas questões foram levantadas, pesquisas esclarecedoras foram realizadas. Mas estamos passando por um momento de “brazilianização” de nossas ciências sociais, de estrangeirização das perguntas, de estranhamento em relação ao que somos e ao que podemos. Um momento que pede aos cientistas sociais a insurgência corajosa da redescoberta explicativa do Brasil. Um grande desafio sem dúvida.
IHU On-Line – Há muitos anos o senhor afirma que existe uma crise do pensamento crítico no Brasil. O que significa falar nestes termos, em crise do pensamento crítico, uma vez que praticamente todo mundo se julga “crítico” no debate público?
José de Souza Martins – Falo do pensamento crítico na perspectiva sociológica. Um dos reflexos na sociologia brasileira, sobretudo na formação das novas gerações, é que muitos entendem que pensamento crítico é o pensamento antagônico, sobretudo em relação àquilo de que discordamos por motivos ideológicos ou partidários. O pensamento crítico, na sociologia, é o pensamento que conduz à revisão de interpretações científicas vencidas por novas descobertas, que pedem a revisão do já conhecido e nela as novas questões a desafiar o conhecimento existente.
O pensamento crítico é o pensamento que vê a si mesmo na perspectiva sociológica, ou seja, você só pode fazer sociologia crítica se situar sociologicamente a sociologia que você faz para poder ver as insuficiências que nela há.
O pensamento crítico passa pela desconstrução das interpretações. A grande proposta metodológica nesse sentido é de Henri Lefebvre, o grande dialético do século XX, que desenvolveu um método bem simples. Método que Sartre reconheceu como a melhor formulação do método dialético, que Lefebvre define como método regressivo-progressivo.
Nessa perspectiva a sociologia decompõe a narrativa, a descrição da realidade, de um primeiro momento de impressão do que a realidade é. Em seguida, a partir do atual já descrito, o sociólogo faz a sua desconstrução, define a estrutura e a data histórica da gênese dessas relações. A realidade social é compreensível pelas determinações do desenvolvimento desigual de suas estruturas. Ao fim do processo, o pesquisador faz o retorno à superfície de partida, ao atual. Reconstitui as conexões dos momentos e suas recíprocas e desencontradas determinações, a unidade do diverso. A unidade das contradições que desafiam a práxis dos personificadores das relações sociais desses momentos e de suas necessidades sociais. Sejam elas as necessidades radicais, que abrem à sociedade o desafio e a possibilidade da transformação social e da revolução social. Sejam elas as necessidades de revitalização do mesmo, do repetitivo, do mero reprodutivo. Sejam elas as necessidades do novo na mera forma mimética da cópia e do fingimento.
A sociedade muda muito depressa. Há cinco anos nós achávamos que a sociedade brasileira era uma. Neste momento, já não sabemos o que ela é. O pensamento crítico nos leva a fazer o que estou chamando de desconstrução, uma palavra que bem define o método.
IHU On-Line - Como o senhor atualizaria as suas pesquisas hoje à luz do Brasil atual? A partir das pesquisas que o senhor fez ao longo da sua produção intelectual e acadêmica sobre questões como os conflitos no campo, a questão da terra, sobre as vítimas de processos sociais, políticos e econômicos excludentes, que novas abordagens sociológicas diria que precisariam ser consideradas para compreender esses fenômenos hoje no Brasil?
José de Souza Martins – Minha obra tem dois grandes conjuntos: o primeiro conjunto é o da questão agrária, com o qual trabalhei muitos anos, e o outro conjunto é o da questão suburbana e da vida cotidiana. Minhas linhas de pesquisa são as seguintes: fazer uma sociologia urbana é importante, mas o urbano num país como o Brasil não se explica nos moldes clássicos da explicação do que é a cidade, em termos de pesquisa. O segredo do urbano está aqui, metodologicamente, no suburbano, no urbano que não se constitui: o urbano das insuficiências, do incompleto, do inacabado, das lutas operárias pela cidade. O centro é o centro do poder e do monumental, Não é o lugar dos conflitos transformadores, mas dos conflitos pelo poder.
Desde os meus primeiros trabalhos sobre a questão agrária – que são dois artigos que publiquei em 1969, já como resultados de pesquisas no campo– até os mais recentes, inclusive um publicado pela Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, que não teve nenhuma divulgação, intitulado “O Sujeito Oculto”, sobre reforma agrária, e o que foi publicado pela editora da USP, sobre o mesmo o assunto, chamado “Reforma Agrária — o impossível diálogo”, não há descontinuidade. Eu não estou me repetindo. Fui fazendo descobertas a partir das pesquisas e do trabalho de campo. Fui para o campo, para a Amazônia, para fazer minha pesquisa decisiva e conclusiva sobre o peculiar da questão agrária no Brasil: não o confronto entre o capital e a propriedade da terra, mas a anômala aliança entre capital e terra, que responde pelo subcapitalismo do capitalismo brasileiro. Um problema já analisado em “O Cativeiro da Terra”, de 1979 (9ª. edição, revista e ampliada, Editora Contexto, São Paulo, 2010). “Fronteira: a degradação do Outro nos confins do humano” (Editora Contexto, 2009) é um livro de minhas descobertas, sobre a sociedade do limite, estava lá e aquilo era muito revelador do que é o Brasil.
Então, a atualização da minha interpretação da questão agrária já está feita, porque ela não se modificou depois disso, chegou ao seu limite. Houve ali uma derrota das lutas populares pela terra, apesar de seu implícito projeto socialmente transformador, de valorização e modernização da cultura agrícola popular e familiar. Os próprios governos do PT não compreenderam o profundo alcance social da luta pela reforma agrária e de suas metas inovadoras e valorizadoras do capital social representado pela agricultura familiar. Venceu o afã de poder e a opção preferencial pela aliança com o grande capital e o agronegócio.
IHU On-Line - A questão fundiária continua sendo a fonte da maioria dos problemas sociais do Brasil?
José de Souza Martins – Continua sendo. O lamentável drama é que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST, que poderia ter conseguido dar outro encaminhamento para a questão agrária no Brasil, entrou para ser derrotado, porque entrou para fazer trabalho ideológico em nome de um equívoco. O de achar que o marxismo vê na questão agrária e no campesinato um fator da revolução social; ele nunca viu. O próprio Marx é extremamente crítico em relação aos camponeses, que, para ele, são a força do conservadorismo. Não obstante, a reforma agrária, que é uma reforma social, se completada, poderia representar a extensão das bases da democracia ao campo.
Minha tese é que ser força do conservadorismo não é um defeito. A tradição conservadora em todo o mundo, e no Brasil também, é carregadíssima de informações preciosas e de valores sociais preciosos para a renovação do mundo, porque a tradição conservadora é inimiga da coisificação da pessoa. O proletariado não luta contra a coisificação, de que não tem consciência, o que é o grande erro do proletariado, das lideranças. O Sul do Brasil que é ainda campesino, familista e religioso, é um reduto da tradição conservadora, é onde se tem o Brasil mais bem realizado. Onde não tem isso, não deu certo, e é por causa dos valores precários relativos à coisificação da pessoa nas insuficiências de um capitalismo patológico, não por causa do marxismo.
Se o MST, em particular, tivesse sido menos ingênuo, no sentido de ser menos instrumental, teria, por exemplo, negociado com o governo Fernando Henrique. Ele é um especialista em questão agrária e na questão do trabalho escravo — eu o conheço bem, fui aluno dele, trabalhei com ele e somos amigos até hoje. Quando fracassou a política agrária de seu governo com o massacre de Eldorado dos Carajás, quando ficou claro que não adiantava entregar a política agrária para os banqueiros porque eles não iriam fazer uma reforma social, ele chamou Raul Jungmann [que foi ministro do Desenvolvimento Agrário e ministro extraordinário de Política Fundiária do governo FHC].
Primeiro, Jungmann foi às livrarias e comprou todos os livros sobre a questão agrária. Leu tudo e foi atrás dos autores que tratavam desse assunto. Ele me chamou em Brasília e queria que eu fosse seu assessor. Eu não tinha condições de ser assessor de governo, sobretudo devido a meus compromissos de ensino e pesquisa na Universidade de S. Paulo, mas poderia fazer sugestões. As sugestões que fiz foram as seguintes: “Você tem que ir às universidades onde estão sendo feitas pesquisas sobre a questão agrária. Converse com os pesquisadores e procure se reunir com eles ou em Brasília ou em outro lugar ao menos uma vez por mês para avaliar o que você está fazendo”. Ele fez isso: se reuniu em São Paulo, em Brasília, criou um órgão no governo, dirigido por um professor da USP, Juarez Brandão Lopes, para tratar desse assunto. Jungmann era a pessoa que mais entendia o MST e estava disposto a levar a diante a reforma agrária, como levou. Seu gesto mais ousado, nunca reivindicado por qualquer movimento pela reforma agrária, foi o de cobrar dos proprietários, os grande latifundiários da região amazônica, a apresentação dos documentos relativos à cadeia dominial das propriedades, isto é, foi atrás da legitimidade ou não do direito que invocavam sobre terras, não raro de posse legítima de índios e posseiros. Milhões de hectares de terras foram arrecadados pelo governo federal porque careciam de fonte de legitimidade.
Eu me lembro de uma conversa com FHC em que ele apostava na possibilidade de que, via a política de agricultura familiar que o MST preconizava, seria possível criar uma alternativa de desenvolvimento econômico e social em cima dos valores da família. O João Pedro [Stédile] não estava aberto para o diálogo; foi uma pena. Mas o que eles [MST] fizeram, fizeram bem. Outro dia mesmo eu vi um documentário sobre um assentamento no Rio Grande do Sul: é fascinante o que essas famílias fazem em torno dos valores de família, sem contar as inovações técnicas de que são capazes em terras perdidas pelo latifúndio por gestão temerária e incapacidade de recorrer a meios simples e à organização comunitária do trabalho.
Se a mercadoria vai ser o núcleo da vida, os problemas sociais no campo vão se agravar. A mercadoria é coisa e é uma coisa que coisifica as pessoas. Isso é próprio da grande produção industrial. Mas não é próprio da agricultura familiar e da agricultura comunitária. Nestas, a mercadoria está a serviço delas. No agronegócio as pessoas estão a serviço da mercadoria. Por aí podemos fazer a reforma agrária que quisermos e daqui a um ano esse pessoal vai estar vendendo a terra, que é o que tem acontecido. Em São Paulo houve vários casos. Por exemplo, houve o caso doloroso de uma grande fazenda de produção de cana-de-açúcar no interior paulista que foi à falência e o governo se apropriou das terras por causa das dívidas com impostos e fez um programa de reforma agrária. O que aconteceu? Um ou dois anos depois, os colonos que foram assentados pelo governo, que poderiam fazer seu programa de reforma agrária, estavam arrendando seus lotes para o mesmo dono que tinha ido à falência, para fazer a mesma monocultura de cana-de-açúcar que ele tinha feito antes. Sem o inconveniente de imobilizar capital na propriedade da terra, limitando-se ao muito menos do aluguel. Não dá; tem que ter uma mística. Essa foi uma coisa que eu disse uma vez para o João Pedro, em Goiânia: você tem que ter uma mística; se não tiver, não faz reforma nenhuma.
IHU On-Line – Problemas urbanos, como a questão do tráfico, da proliferação das milícias, também têm relação com a questão agrária?
José de Souza Martins – São duas coisas diferentes: a questão da terra urbana e a questão rural agrícola. A política da reforma agrária foi derrotada, especialmente com a eleição de 2018, isso está bem claro. Antes que se destrua a cultura da economia agrícola de família — e ela vai ser destruída, pois daqui a duas ou três gerações não teremos mais quem queira ficar no campo — ainda é possível, num país que tem 13 milhões de desempregados, criar uma coisa como os kibutz em Israel, criar uma alternativa de economia autônoma, criativa, ambientalista e natural.
O caso do Rio Grande do Sul, que mencionei, é o de uma fazenda que faliu e que produzia pêssego. O governo ficou com a fazenda e fez reforma agrária. Os colonos chegaram no local e lá estava cheio de pessegueiros, nos quais os fazendeiros anteriores usavam agrotóxicos e a terra estava toda contaminada. Esse pessoal teve apoio dos estudantes de agronomia e fez um trabalho lindíssimo: não ficaram ancorados no desconhecimento, foram atrás de quem tinha conhecimento, gente muito simples, mas muito ladina. A tentativa foi manter os pessegueiros, mas primeiro tiveram que desintoxicar o terreno, e uma coisa que eles fizeram, a partir da conversa com os estudantes, foi borrifar leite de vaca nos pessegueiros para evitar que as moscas pusessem ovos de um verme que come a fruta por dentro. Essa mosca não prolifera onde tem proteína, então, o leite revestia as flores com uma camada de proteína e a mosca não colocava o ovo. É uma coisa natural, inteligente, científica, barata e antiamericana.
IHU On-Line - Por que o senhor elaborou suas pesquisas sociológicas a partir de uma visão antieconomicista, que se recusa a compreender os fenômenos sociais como sendo redutíveis à economia e à política? Hoje, por exemplo, diante da crise climática, econômica e social, muitos teóricos sugerem pensar uma nova economia. Inclusive, o papa Francisco está convocando os jovens economistas a pensar sobre essa questão.
José de Souza Martins – O papa Francisco está cometendo um erro; ele deveria convidar os sociólogos para neutralizar os economistas. Os economistas — você não precisa ler um livro para saber disso — mandam no mundo: tudo é a bolsa de valores, os economistas e a taxa do dólar. Nós estamos sob uma tirania, que é a tirania dos economistas. Eles estão destruindo conquistas dos direitos sociais em nome da economia, e da economia em benefício do particular, de alguns, do capital; a sociedade não vai recuperar facilmente o que está perdendo.
Há, porém, um economicismo na análise sociológica que vem da esquerda, que foi a esquerda do marxismo vulgar, como era chamado por [Georg] Lukács, que reduz tudo à economia, porque a economia explica o desenvolvimento das forças produtivas e, sem o desenvolvimento das forças produtivas, não existe a revolução social. Não é bem assim e nunca foi assim em lugar nenhum. Para poder ter uma visão crítica dessa praga que é a economia explicando tudo e não explicando nada, num país como o Brasil, temos que ter uma visão sociológica que seja também antropológica, porque nós somos diferentes. Você sabia que no Brasil ainda falamos português com sotaque nheengatu, além de um monte de palavras originárias da língua tupi que usamos no cotidiano? A lógica implícita nessa língua corresponde a outra concepção do homem e das coisas, que pressupõe a perenidade do que não morre.
Em Portugal, eles falam comendo todas as vogais e falando só as consoantes e tem lugares em que não entendemos o que as pessoas falam. A influência tupi em nossa língua brasileira se deu pela invasão das vogais na língua portuguesa. Sempre dou um exemplo que acho incrível: flor. No Nordeste é “fulô”, ou seja, na língua portuguesa tem uma só vogal e três consoantes, mas democratizamos, usam-se duas vogais e duas consoantes, porque do contrário, não se consegue falar. Da mesma forma, “oreia”: se tira um monte de consoantes e se colocam vogais. Isso adoça a língua, ela fica suave. Nós falamos isso naturalmente e somos bilíngues. Eu não escrevo “oreia”, mas me pego falando assim. Então, nós não somos exatamente aquilo da receita livresca do falar correto. Tem que ter a visão de que fomos feitos assim, essa combinação de múltiplas influências. Nós massacramos os índios, mas eles massacraram a língua portuguesa, civilizando-nos por meio de um dialeto de combate à língua de poder.
IHU On-Line - Como o senhor, enquanto um sociólogo enraizado na sociedade brasileira, pensa a sociologia brasileira e os seus desafios para tratar questões sobre desigualdades? Qual é o papel das ciências sociais no entendimento e na compreensão deste fenômeno que faz parte da nossa sociedade?
José de Souza Martins – A sociologia tem feito a crítica das expressões econômicas das desigualdades, porque estamos discutindo as desigualdades com base em critérios econômicos. Mas as desigualdades não são só econômicas. A discussão sobre o modo como a mulher é tratada numa sociedade ou o modo como os jovens são tratados, não tem a ver com a questão econômica; tem a ver com outras coisas. Aqui pensamos as desigualdades como violação da igualdade jurídica a todos assegurada pela Constituição.
O que falta aqui é aceitar o direito à diferença como um direito inerente ao pressuposto da igualdade jurídica. Tomando como referência a questão do gênero: mulher é mulher, homem é homem. São diferentes. Mulher procria, homem só procria junto. Ambos procriam na diferença que os une. Estou me referindo a uma diferença fundamental e natural, que depende de elaborações culturais em diferentes sociedades e em diferentes épocas da história social. Aqui fazemos a crítica vulgar da diferença em nome da igualdade jurídica, que é outra coisa. Nessa perspectiva equivocada, acabamos por achar que o diferente não em as suficientes próprias para ser juridicamente igual. Nessa concepção, o diferente acaba por ser tratado como desigual.
A desigualdade tem a ver com o fato de que uma cultura, uma experiência social enraizada, torna injusta a diferença entre homem e mulher. Mas existe a contrapartida disso: o fogão é um poder e quem é dono do fogão é dono de tudo dentro da família, da mesa, dos ritos domésticos. Quem de certo modo descobriu isso foi o [Leon] Trótski, que escreveu um trabalho sobre a vida cotidiana e fez uma avaliação da revolução russa nessa perspectiva , curiosamente, muito sociológica. A revolução não entrava nas casas das famílias. A mulherada não queria a intromissão da revolução na vida da família. Elas não queriam cozinha coletiva; queriam a cozinha delas, porque pela mediação da cozinha da família, elas garantiam a unidade familiar, e isso era um poder.
Em Cuba — eu fui como jurado do Prêmio Casa de las Américas, um prêmio literário — tive a chance de conversar três vezes com Fidel, duas vezes com Raul e conversei com a figura mais importante da família, que era o Ramon, que não era político. E foi dele que ouvi estas coisas: o governo cubano fez a reforma agrária, que foi um problema e também gerou problemas que já tinham sido gerados na União Soviética. A reforma agrária era coletivista e este era o problema, porque algumas famílias não aceitaram que as parcelas fossem unificadas num grande empreendimento e o governo depois criasse núcleos urbanos nas áreas rurais. Além disso, todo o serviço doméstico era modernizado e coletivizado para as mulheres não ficarem presas aos fogões — essa era uma crítica que os intelectuais faziam, mas não perguntavam para as mulheres o que achavam dessa inovação social. Eu sou a favor de que a mulher não fique presa ao fogão, mas ela tem que participar do processo e decidir.
Fomos com o Ramon ver o projeto do Valle Picadura, que virou uma grande pastagem moderna para a pecuária renovada com o cruzamento de gado rústico e nativo com gado canadense e holandês. O objetivo era multiplicar a produção de leite, de modo que todas as crianças o tivessem. Olhando de cima do morro, viam-se as casas caipiras, iguais às nossas, de pessoas que não aceitaram participar do programa com todas as vantagens que o governo estava oferecendo em compensação. Isso significa que tem algo a mais na resistência: a unidade da família, a questão de manter os filhos na terra, ou seja, eles preferiam ser pobres, mas ser eles mesmos e não agentes de projeto social de um partido político.
IHU On-Line – Que avaliação o senhor faz da revolução cubana?
José de Souza Martins – Cuba não teve alternativa e esse foi um problema. Os EUA tratavam Cuba como a zona do meretrício deles: os ricaços saíam de Miami para Havana de lancha e transformaram Cuba em uma “putaria” antes da revolução — isso ouvi de muitas pessoas. A revolução não era uma revolução socialista necessariamente, mas os americanos decidiram colocar os cubanos de joelhos e eles se agarraram à União Soviética. O Partido Comunista nem participou da revolução e transformou Cuba num país socialista e essa foi a única alternativa que tiveram; os americanos insistiram no boicote e não deixaram nenhuma alternativa. Os cubanos fizeram milagres: transformaram um país de analfabetos em um dos países com os maiores índices de alfabetização do mundo. Eu fui às escolas em Cuba e fiquei muito impressionado. Outra coisa, fomos levados à Ilha de Pinos, numa cidadezinha chamada Gerona. Na praça, os poetas da ilha se reuniam no fim do dia para ler seus poemas.
Numa escola em Havana, conversei com as crianças matriculadas nas escolas primárias. Num certo período do ano, eram levadas para a escola dos Pioneiros de acordo com o interesse profissional que manifestavam. Nessa escola que visitei, elas conviviam com os profissionais da profissão pela qual tinham interesse: o profissional ia fazendo sua atividade e ensinando o que fazia. Naquela época, a única estação de TV colorida de Cuba era uma estação cujos programas eram feitos e transmitidos por crianças. A Sony deu todo o equipamento para eles. Esse lado romântico da revolução não é mencionado e vale a pena. Cuba fez uma edição do Dom Quixote com papel de bagaço de cana-de-açúcar, tiraram um milhão de exemplares e os venderam em um dia. Outras crianças se dedicavam à literatura, e os alunos aprendiam a escrever poemas. Aqui no Brasil, eu vi coisas dolorosas, como uma professora da Amazônia que me disse ganhar menos em um mês do que uma puta ganhava numa noite.
IHU On-Line – Agora, algumas questões conjunturais: já é possível avaliar qual é ou será o legado da Lava Jato para a história do país? Algo mudou na sociedade brasileira depois desse episódio?
José de Souza Martins – Mudou muito. Não satanizo a Lava Jato. Eles cometeram erros por serem imaturos e jovens demais e não entenderam a missão para a qual foram chamados, mas fizeram bem a missão: colocaram um bocado de gente na cadeia e expuseram as tripas deste país. O legado da Lava Jato é um legado moral, muito mais do que político: corrupto vai para a cadeia, não importa o poder que tenha ou a classe social a que pertença.
IHU On-Line – E a “vaza jato”?
José de Souza Martins – A “vaza jato” é a anti-Lava Jato. A ideia da “vaza jato” — não questiono as conversas que descobriram — é desmoralizar a Lava Jato. Os envolvidos na “vaza jato” ainda não mostraram onde está a boa intenção do que fizeram nem explicaram de que modo sua iniciativa fortalecerá o combate à corrupção no país.
IHU On-Line - Como o senhor avalia a atuação e o futuro do PT, do MDB e do PSDB na cena política hoje e que futuro vislumbra para esses partidos?
José de Souza Martins – Nenhum futuro. Eles atingiram o vencimento. Também na política, um partido envelhece, desgasta e se torna ineficaz. Claro que o PT tem seu resíduo de militantes fiéis, mas não vão conseguir fazer nada porque o líder deles está na cadeia. Não estou dizendo que é justo ou injusto; é um fato. O PSDB se fragmentou e caiu nas mãos de pessoas que não têm a mínima identificação com as ideias sociais democráticas e liberais. O MDB é um partido fisiológico que não tem mais poder porque, no meu modo de ver, a virada de 2018 foi em boa parte contra o PT, imitando o PT em grande parte, e foi também contra o MDB, que não é um partido que represente o que o Brasil precisa.
IHU On-Line - Bolsonaro foi eleito com a bandeira de combate à corrupção, criticando o “nós contra eles”, mas repete o jogo do PT em seus discursos e declarações diárias?
José de Souza Martins – Repete o jogo do PT e não vou dizer que é um erro do Bolsonaro; Bolsonaro é o erro. Provavelmente ele não acreditava que chegaria ao poder, mas chegou em função de um cenário de desgaste dos partidos políticos, em particular do PT, que por sua vez tinha desgastado o PSDB, e não sobrou nada. Sobrou um buraco, tinha um sujeito fazendo um discurso, então foi eleito. Só que o poder é maior do que ele, e o poder no Brasil é um poder corruptor. Resta saber o que vai acontecer. Na eleição do ano que vem, vamos saber dos primeiros resultados.
IHU On-Line - O que impede a elaboração de um projeto de país para o Brasil?
José de Souza Martins – Já tivemos um projeto de nação com Getúlio Vargas e os tenentes, depois um projeto no período nacional desenvolvimentista, com toda aquela diferença política e ideológica, mas todos sabiam que queriam fazer disso aqui um país capitalista enraizado com preocupações sociais, uma espécie de capitalismo social, se é que se pode chamar assim. Funcionou durante uns 20 anos. Depois, nunca mais tivemos um projeto de nação. Tivemos “antiprojetos”: a ditadura foi um antiprojeto. Este governo é um antiprojeto.
O vice-presidente Hamilton Mourão, durante a campanha eleitoral, fez uma conferência na principal loja Maçônica no Rio de Janeiro, que vale a pena conferir: o projeto é desmontar todo o legado que está aí e estamos vendo que eles estão desmontando. Mas o que pretendem colocar no lugar? Eles não têm ideia porque para ter um projeto de nação, precisa ter competência para articular o mínimo de coerência e apoio em torno deste projeto, fazer uma coalizão democrática para o Brasil e para as novas gerações do país. Eles não têm competência para fazer isso.
Assista à aula magna de José de Souza Martins na Unisinos: