16 Janeiro 2019
"De modo geral, o projeto político e econômico em curso vem atuando estrategicamente na tomada de áreas tradicionalmente ocupadas com o intuito de se apropriar dos bens naturais, bem como da vida das populações que resistem nesses territórios", alerta a Comissão Pastoral da Terra - CPT, em balanço publicado no seu portal, janeiro-2019.
No ano que se encerrou, os povos da Terra, das Águas e das Florestas viveram a porção de um tempo ainda mais triste que está por vir. Em 2018, segundo dados parciais da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o índice[1] de famílias despejadas foi 65% maior do que o ano anterior e os recursos destinados à Reforma Agrária e às políticas públicas para o campo chegaram ao ápice do sufocamento. 2018 também foi o ano de consolidação da tendência de privatização de terras públicas e o ano em que o poder privado se sentiu autorizado a promover o terror no campo, estando envolvido em 81% dos conflitos por terra e por água. Em síntese, 2018 foi de domínio violento do agrohidronegócio e do latifúndio no campo brasileiro.
Durante o governo de Michel Temer, não foram poucos os ataques e os retrocessos aos direitos conquistados pelo povo brasileiro por meio de sua luta histórica. Atacaram direitos trabalhistas, eliminaram ou reduziram investimentos em saúde, educação, cultura, esportes, políticas para minorias, entre tantas outras áreas estratégicas e primordiais para a vida de milhões de brasileiros e brasileiras. Em especial, atacaram frontalmente a Reforma Agrária, a regularização de territórios quilombolas e a demarcação de terras indígenas.
Em tempos de golpe, assistimos ao poder judiciário negar o cumprimento da sua única missão: a justiça. Decisões judiciais de alto impacto passaram a ser explicitamente objetos de manipulação dos jogos de poder. O legislativo, protagonista do golpe, mais um ano se viu reduzido ao ator passivo dos interesses econômicos do mercado.
O golpe de 2016 só poderia se tornar um “crime” perfeito se os seus arquitetos garantissem em 2018 a vitória do aprofundamento do projeto político que derrotou a democracia em 2016. E assim aconteceu.
No meio desse cenário, nós, sociedade civil, não conseguimos defender de forma eficaz, com os meios e as narrativas que dispomos, nossos direitos sociais, civis e políticos e não conseguimos evitar os riscos decorrentes dos ataques à nossa pouca e frágil democracia.
A Reforma Agrária, direito da sociedade brasileira e obrigação do Estado, foi reduzida ao completo silêncio em 2018. O número de novas famílias assentadas durante o Governo Temer foi praticamente reduzido a zero. Por outro lado, na lógica da privatização de tudo, Temer promoveu a fragmentação e a consequente vulnerabilização das famílias assentadas, na medida em que implementou uma intensa política de titulação individualizada de lotes. Segundo o Incra, a titulação é o instrumento que transfere o imóvel rural ao/à beneficiário/a da Reforma Agrária em caráter definitivo.
Só em 2017, foram expedidos 26.523 Títulos de Domínio e 97.030 Contratos de Concessão de Uso, o que supera a soma dos últimos dez anos. O objetivo foi beneficiar o mercado de terras, pois muitas famílias fragilizadas podem ceder à pressão do agronegócio e do latifúndio e venderem seus lotes. Em outras palavras: os assentamentos da Reforma Agrária, fruto exclusivamente de décadas luta de milhares de famílias sem-terra, estão agora disponíveis à reconcentração fundiária uma vez titularizados.
Antes, só era permitido ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) emitir títulos às famílias assentadas quando fosse constatada a independência estrutural do assentamento. A medida, até certo ponto, impedia a transferência em larga escala de terras para o controle do capital. Agora, o Incra se transformou em um balcão de negócios de terra, uma “imobiliária estatal”.
Outro ataque se deu em uma das áreas mais estratégicas: a dos orçamentos para as políticas de Reforma Agrária, Agricultura Familiar e Desenvolvimento Agrário que, em 2018, chegaram ao seu valor mínimo histórico. O valor destinado à obtenção de terras em 2018 foi de 83,7 milhões, sendo que em 2015 esse valor foi de 800 milhões. O orçamento para a Assistência Técnica nos assentamentos também sofreu grande corte. Em 2015, o orçamento para essa área foi de 355,4 milhões, enquanto que no ano de 2018, o valor destinado foi 19,7 milhões. Esses são somente alguns exemplos do recuo histórico do orçamento para não solucionar os problemas do campo no país.
Uma das principais reivindicações políticas do capital no Brasil é a aprovação do projeto de lei que possibilita a venda de terras no país para estrangeiros. A legislação brasileira em vigor - Lei 5.709/1971 - limita a compra de terras por estrangeiros, inclusive para empresas brasileiras com controle acionário estrangeiro. Através do Projeto de Lei 2.289/2007, ao qual se encontram apensados outros PLs, como o de nº 4.059/2012, propõe-se a liberação quase que irrestrita da venda de imóveis rurais a estrangeiros. O PL de 2012 foi destacado como uma das prioridades da Frente Parlamentar Agropecuária e apresentado ao presidente Temer como uma das reivindicações prioritárias junto à bancada ruralista na negociação de apoio ao impeachment de Dilma Rousseff. Atualmente ele encontra-se em regime de urgência para votação na Câmara dos Deputados e pode ser votado a qualquer momento.
Se esse Projeto for aprovado como pretendem os ruralistas, será possível a estrangeiros comprarem até 100 mil hectares de terra, além de arrendar mais 100 mil. A titularidade de terras a estrangeiros é, normalmente, limitada a apenas três módulos rurais e à prévia autorização do governo.
Este é na prática o maior programa de concentração de terras a ser implementado no país. E o pior, com a entrega de terras aos interesses externos, a soberania do país na produção de alimentos estará também ameaçada.
Outro objetivo deste projeto político e econômico é, além da já conhecida criminalização de movimentos sociais, a também criminalização de Organizações Não Governamentais (ONGs), tratadas como se fossem agentes de uma conspiração internacional para internacionalizar o Brasil. Essa absurda contradição denuncia o verdadeiro jogo de interesses econômicos do latifúndio e do agrohidronegócio, nos quais sem-terra, quilombolas, indígenas, comunidades tradicionais, áreas protegidas e organizações sociais são alvos a serem destruídos.
Em contextos de golpe, de tomada de poder por uma direita reacionária e odiosa, o latifúndio e o agrohidronegócio encontraram as portas abertas e, com o consentimento do poder público, atuaram de forma violenta e autoritária no campo. De acordo com dados parciais da Comissão Pastoral da Terra, 81% dos conflitos pela terra e pela água tiveram o envolvimento do poder privado, sob a conivência do poder público.
Nesse cenário, os principais alvos da violência foram as diversas categorias de povos e comunidades tradicionais, correspondendo a 64% das vítimas dos conflitos, seguidas dos trabalhadores e trabalhadoras rurais sem-terra e dos assentados e assentadas, representando 32%, e de pequenos/as proprietários, sendo estes 2% das vítimas de violência no campo, de acordo com dados parciais da CPT.
De modo geral, o projeto político e econômico em curso vem atuando estrategicamente na tomada de áreas tradicionalmente ocupadas com o intuito de se apropriar dos bens naturais, bem como da vida das populações que resistem nesses territórios. Um forte exemplo foram os dados divulgados recentemente pelo Projeto Jornalístico Latentes, que estima que existam no país 4.536 focos de conflitos iminentes em decorrência somente da exploração mineral e que podem vitimar comunidades quilombolas, povos indígenas, comunidades de assentamento, além de unidades de conservação.
Do mesmo modo, empresas de energia eólica, pecuária, cana-de-açúcar e outros grandes empreendimentos privados e do latifúndio continuaram protagonistas de violências que tornaram territórios camponeses verdadeiros campos de guerra e de exploração. Assim foi, por exemplo, para as comunidades camponesas dos estados acompanhados pela CPT Regional Nordeste II (que engloba os estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas).
Campo de guerra para as comunidades camponesas que vivem no agreste Pernambucano e sertão Paraibano, que estão sendo impactadas pelo avanço desenfreado de parques eólicos que, a despeito de discursarem em defesa de uma energia sustentável, possuem inúmeros impactos invisibilizados que colocam a vida dessas populações em risco.
Campo de guerra também na Chapada do Apodi, no Rio Grande do Norte, onde centenas de famílias camponesas que vivem na área denunciam incansavelmente os impactos causados por grandes empresas de fruticultura irrigada e seus agrotóxicos.
O campo de guerra também pôde ser visto no município de Sertânia, sertão de Pernambuco, onde, por várias ocasiões em 2018, jagunços a mando de proprietários aterrorizaram a vida de famílias sem-terra acampadas na Fazenda Jaú, provocando perseguições, tiroteios, queimadas de barracos e deixando nove pessoas ameaçadas de morte.
Campo de guerra, cenário de destruição foi o que ocorreu no dia 07 de agosto de 2018, na comunidade de Pau a Pique, no município de São José dos Ramos (PB), quando a Polícia, em uma reintegração de posse, destruiu 80 hectares de alimentos produzidos pela comunidade que vive no local há três gerações.
Campo de Guerra, cenário de destruição foi o que ocorreu no acampamento Dom José Maria Pires, no município de Alhandra (PB), no dia 08 de dezembro de 2018, quando dois trabalhadores rurais sem-terra foram barbaramente assassinados em um crime ainda impune.
Estes fatos são somente breves exemplos do que aconteceu no cotidiano das comunidades camponesas no ano de 2018 no país e são também tristes pré-anúncios de futuras ameaças e violências que certamente passarão com muita resistência e luta.
O momento exige-nos enfrentar o desafio de reconstruir o caminho que nos levará a um novo ciclo de conquistas. Haveremos de resistir com lucidez crítica contra toda ameaça à vida dos pequenos e da nossa Casa Comum, junto às comunidades e povos do campo. No meio da noite escura caminhar é preciso, sabendo que um novo amanhecer está garantido, pois toda noite escura carrega em si a madrugada. Não vamos deixar que nos roubem a esperança.
Recife (PE), janeiro de 2019.
Comissão Pastoral da Terra Nordeste II
Nota:
[1] O índice de famílias despejadas é a relação entre o número total de famílias despejadas e o total de ocorrências de despejos. Ao dividir o número de famílias despejadas pelo número de ocorrências de despejo, obtemos o índice de famílias despejadas.
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Balanço da Questão Agrária no Brasil – 2018 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU