27 Setembro 2021
"Com base na tradição e no capital social representado pelas habilidades históricas dos trabalhadores da agricultura, em seu rico saber tradicional e em sua criatividade, o MST mobilizou os sem-terra em favor de uma economia alternativa, uma economia moral que faz da reforma agrária, da reforma econômica e socialmente modernizante, até esta sofisticação do recurso ao mercado de capitais", escreve José de Souza Martins, sociólogo, professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP, professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq, membro da Academia Paulista de Letras e autor, entre outros livros, de Linchamentos – A justiça popular no Brasil (Contexto).
O texto foi enviado pelo autor para o Instituto Humanitas Unisinos - IHU e foi originalmente publicado no jornal Valor Econômico, 24-09-2021.
A notícia de que o MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra captara no mercado de capitais R$ 17,5 milhões de reais causou surpresa a quem, durante quase 40 anos, engoliu as satanizações que definiam o MST como comunista, invasor de terras e violador do direito de propriedade. Uma captação já fora feita no ano passado.
O MST é historicamente a negação desses atributos. É também a negação do modelo brasileiro de capitalismo, antissocial, predatório e autoritário. Sua grande luta social tem sido contra a usurpação de terras pelo latifúndio improdutivo, rentista e especulativo, até mesmo não legitimadas pela cadeia dominial nem pela legislação de reforma agrária do regime militar.
Concebido por uma equipe coordenada pelo general Golbery do Couto e Silva, o Estatuto da Terra, de 1964, reiterava a constitucional função social da propriedade e o direito de acesso à terra para quem nela vive e trabalha. Em tese, o golpe não fora dado para apoiar o latifundismo.
No governo Figueiredo, o general Danilo Venturini, ministro de Assuntos Fundiários promoveu uma consolidação das leis agrárias brasileiras desde a Lei de Sesmarias portuguesa, de 1375, que instituiu como fundamento do direito à terra o seu uso produtivo. A terra improdutiva caía em comisso, tornava-se devoluta e era em consequência concedida a quem a solicitasse para produzir.
Sobretudo a partir da Lei de Terras de 1850, condição para a proibição do tráfico negreiro, o Estado brasileiro abriu mão do domínio eminente sobre as terras do país em favor do particular, criando um anômalo regime de propriedade privada da terra.
A partir da República, o Estado tentou, progressivamente retomar o domínio sobre o território, até por motivo de segurança nacional. Com o código de águas reestatizou o subsolo. Sem o que nunca teria sido possível a prospecção estatal do petróleo. Depois, estabeleceu limitações territoriais e de uso às terras de marinha, às terras indígenas, ao patrimônio ambiental e histórico.
A consolidação promovida pelo general Venturini tinha por objetivo restabelecer o trabalho na terra como fonte primária do direito de propriedade. E não o documento, o papel passado, dada a abundância de papéis falsificados em uso no crime de grilagem de terras, um fator das tensões no campo. Houve momento em que a soma total das áreas descritas em documentos de propriedade, no estado do Mato Grosso, era o dobro da área do Estado.
O MST legitimou suas ações de ocupação de terras no direito alternativo e reprimido que decorria das brechas no mau uso da terra e das fraudes no direito de propriedade. Reivindicou sistematicamente a realização da reforma agrária nas terras irregularmente sonegadas à função social que a Constituição e as leis previam e recomendavam.
A luta do MST pela reforma agrária, até pela ocupação das terras vulneráveis aos dispositivos legais que preconizam a reforma foi o modo de acelerar a redistribuição da terra improdutiva a quem dela carecia e carece. Foi o modo de impedir a omissão do Estado no dever da reforma.
Com base na tradição e no capital social representado pelas habilidades históricas dos trabalhadores da agricultura, em seu rico saber tradicional e em sua criatividade, o MST mobilizou os sem-terra em favor de uma economia alternativa, uma economia moral que faz da reforma agrária, da reforma econômica e socialmente modernizante, até esta sofisticação do recurso ao mercado de capitais. Pela nova iniciativa, o MST estimula o pequeno investidor a aplicar R$ 100,00 em certificado recebível do agronegócio (CRA), com juros de 5,5% ao ano por 5 anos.
Esses recursos serão aplicados em sete cooperativas de assentamentos de reforma agrária nos estados do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina, do Paraná, de São Paulo e do Mato Grosso do Sul.
São cooperativas de produtores da chamada agricultura familiar e comunitária, inspiradas numa economia agrícola de valor agregado e em valores sociais da economia moral.
Produzem desde arroz, feijão, hortaliças, milho, soja até leite, achocolatados, queijos, iogurtes, requeijão, manteiga, açúcar mascavo, cachaça, melado de cana. O MST é hoje o maior produtor de arroz orgânico da América Latina. Uma dessas cooperativas produz sementes não transgênicas certificadas pelo Ministério da Agricultura e pela Fundação Prosementes para produtos valorizados no mercado internacional.
A economia moral do MST, é de inspiração cristã. O movimento nasceu da Pastoral da Terra por iniciativa de católicos e luteranos. Revaloriza a família e a comunidade, hoje profundamente ameaçadas pela economia do lucro pelo lucro sem compromisso com a função social da propriedade.
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Duas novas invasões do MST. Artigo de José de Souza Martins - Instituto Humanitas Unisinos - IHU