29 Julho 2021
"O modelo atual do agronegócio e o sistema dos bancos e demais instituições do universo das finanças nos levam a um mundo de injustiça, destruição e mortes. A produção agropecuária é voltada às exportações, com o uso intensivo de agrotóxicos, transgênicos e outros venenos. Com pouca geração de emprego e destruição dos recursos naturais, o uso da terra é concentrado nas grandes propriedades e não se destina à produção de alimentos saudáveis para a população brasileira", escreve Paulo Kliass, doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal, em artigo publicado por Outras Palavras, 27-07-2021.
Um dos inúmeros problemas causados pelo governo Bolsonaro a nosso país refere-se à destruição do Estado e ao desmonte das políticas públicas. Esse é o foco do ministro Paulo Guedes e da turma do financismo que resolveram apostar todas as suas fichas na eleição do ex-capitão em outubro de 2018. Para esse pessoal, pouco importava que o candidato fosse um ardoroso defensor da ditadura militar e de suas práticas criminosas, como a tortura e o assassinato de todos aqueles e aquelas que se opusessem ao regime. O importante é que ele levasse a cabo suas ideias de privatização e de redução das capacidades estatais à sua dimensão mínima.
Um dos aspectos mais relevantes da existência de um setor público robusto e organizado diz respeito à sua capacidade de colaborar de forma efetiva para a construção de um projeto nacional de desenvolvimento, onde a redução das desigualdades sociais e econômicas sejam alguns de seus pontos centrais. É dramático que falar em uma nação mais justa, com maiores oportunidades de renda e trabalho para todos, com menores índices de concentração de renda e com menor agressividade ao meio ambiente tenham se tornado palavrões nesse ambiente de intolerância, preconceito e fundamentalismo. Tudo coisa de comunista, no dizer do chefe maior de um governo assentado no favorecimento às milícias.
Ora, diante de tal quadro, salta aos olhos a situação no campo e no sistema financeiro. Ambos são o retrato mais acabado de um organismo social doentio, onde as elites só se preocupam com a chamada maximização do lucro no curto prazo. O modelo atual do agronegócio e o sistema dos bancos e demais instituições do universo das finanças nos levam a um mundo de injustiça, destruição e mortes. A produção agropecuária é voltada às exportações, com o uso intensivo de agrotóxicos, transgênicos e outros venenos. Com pouca geração de emprego e destruição dos recursos naturais, o uso da terra é concentrado nas grandes propriedades e não se destina à produção de alimentos saudáveis para a população brasileira.
O sistema financeiro é conhecido de todos pela irresponsabilidade para com o presente e o futuro de nossa sociedade. Ao invés de se orientar pelo apoio a projetos de maior contribuição para a produção nacional e voltados às necessidades da maioria, o modelo premia os ganhos com a especulação e o rentismo parasitário.
Ora, face a tal situação, as entidades que apresentam projetos alternativos aos defendidos pelo governo atual são marginalizadas e criminalizadas. O caso da luta pela reforma agrária e por um modelo agropecuário justo e sustentável é emblemático. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) luta há décadas por uma nova forma de produzir e organizar as atividades no campo. Construiu uma rede importante de assentamentos e acampamentos espalhados por todo o território nacional, contribuindo de forma responsável e solidária para a consolidação de uma nova forma de agricultura e pecuária.
Atualmente o movimento conta com mais de 160 cooperativas e um número superior a 120 agroindústrias, coordenando mais de 1.900 associações de trabalhadores sem terra e 400 mil famílias assentadas por todo o Brasil. O MST nos oferece cotidianamente exemplos de que outro mundo é possível. Além de lutar por um Brasil mais justo, ele avançou muito e já produz, nas condições em que lhe é permitido operar, alimentos de forma saudável. Apear de muito boicotado pelas forças do establishment, consegue se impor como modelo alternativo, oferecendo melhor qualidade de vida no campo e alimentos baratos e saudáveis nas cidades.
Ocorre que desde o golpe de 2016 contra Dilma Rousseff, o ódio das elites se dirigiu também a todas as medidas que buscavam reduzir as desigualdades e oferecer alternativas à população da base de nossa vergonhosa pirâmide da concentração de renda e patrimônio. O apoio a políticas públicas do governo federal para esse setor tão importante, como a agricultura familiar, foi reduzido a quase nada. A sobrevivência do MST e demais entidades congêneres passou a representar um esforço hercúleo do movimento democrático e progressista. Afinal, a intenção de Bolsonaro é promover a sua destruição, seja por meios policiais e militares, seja pela asfixia econômica e financeira.
Mas a resposta do movimento foi na direção oposta. Face às enormes dificuldades do momento atual, o MST articula uma iniciativa ousada, inovadora e fundamental. Como o governo se recusa a oferecer apoio à existência de modelos alternativos no campo, a opção de sobrevivência e crescimento foi na direção da busca de fontes financeiras no interior da sociedade e do próprio mercado. Para que os projetos de manutenção da rede e de sua expansão sejam viabilizados, torna-se necessário o aporte de volume expressivo de recursos. Afinal, o MST cresceu e se profissionalizou.
Assim, foi montada uma operação para captação dos valores necessários sob a forma de um título muito conhecido no mercado financeiro, chamado Certificado de Recebíveis do Agronegócio (CRA). São papéis de renda fixa e que oferecem uma rentabilidade segura para quem aplicar seus recursos. No caso da operação coordenada pela Finapop, a rentabilidade é fixa de 5,5% ao ano e os recursos ficarão imobilizados por 5 anos para viabilizar os empreendimentos em curso. Trata-se de uma excelente opção para quem tem algum dinheiro para investir e busca projetos com a marca da justiça social e da sustentabilidade. A aplicação mínima é de apenas R$ 100, o que torna o apoio ao empreendimento mais acessível também para pequenos poupadores.
A iniciativa do MST causou algum estranhamento inicial, uma vez que o desconhecimento dos detalhes da operação poderia levar à visão equivocada de que os sem-terra estariam finalmente se vendendo aos encantos do mercado financeiro. Nada disso! Trata-se tão somente de buscar rotas alternativas de acesso a recursos que garantam a sobrevivência e a independência financeira do movimento. O fato de lançar títulos no mercado em busca dos meios para executar os projetos do movimento não é novidade. Há exemplos em todo o mundo de bancos éticos e cooperativas de crédito voltadas para a busca de lastro financeiro que torne viável a existência de projetos dignos e portadores de justiça social.
Na verdade, essa experiência no universo da reforma agrária pode ser mais um passo importante no movimento de maior conscientização de parcela da sociedade e dos investidores quanto à qualidade das aplicações dos investimentos realizados por meio desse sistema de coleta de recursos. Existe um processo crescente de exigência de maior transparência por parte dos gestores dos fundos financeiros de forma geral. Assim, destinos que envolvam piora na relação com meio ambiente ou trabalho escravo/infantil, por exemplo, veem seu espaço cada vez mais reduzido em escala global. O mesmo pode ser obtido quanto a outras características dos empreendimentos, como é o caso de não utilização de agrotóxicos ou de priorização da agricultura familiar.
O governo Bolsonaro vai passar e essa fase atual e trágica da realidade política brasileira será enviada para a lata do lixo da História. Apesar de toda crise e do boicote patrocinado pelas elites, o vigor do movimento pela reforma agrária não jamais pode esmorecer. Que essa novidade conte com forte apoio das forças políticas que apostam em futuro mais justo e menos desigual em nosso País. Que o engajamento efetivo de cada um(a) de nós nessa empreitada fortaleça a luta no campo e proporcione uma longa vida ao MST.
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O MST ocupa a Bolsa. Artigo de Paulo Kliass - Instituto Humanitas Unisinos - IHU