13 Janeiro 2025
Em dezembro, Jonathan Dumont, chefe de comunicações para as emergência do Programa Mundial de Alimentos (PMA), visitou a Faixa de Gaza.
Depois de esperar por horas na passagem de fronteira israelense em Kerem Shalom, uma das poucas rotas usadas para a entrega das insuficientes ajudas humanitárias, ele chegou a Khan Younis, no sul da Faixa.
A reportagem é de Francesca Mannocchi, publicada por La Stampa, 11-01-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
No cruzamento, além dos comboios de operadores humanitários, havia quilômetros de suprimentos. Alimentos, combustível e remédios que aguardam autorizações que não chegam. Dumont passou dez dias em Khan Younis e escreveu um relato tão tocante quanto severo, do que viu. Homens, mulheres e crianças se empurrando para não perder uma tigela de arroz, multidões desesperadas gritando: “Estou com fome”. Dumont é um operador humanitário experiente, já trabalhou no Haiti devastado por gangues armadas, no Congo e visitou o Sudão devastado pela guerra. No entanto, ele escreve, em Gaza a escala é diferente. Um desespero preso entre o Mar Mediterrâneo e a destruição sem fim. Mas, acima de tudo, “há outra diferença em relação a muitas outras zonas de guerra: para os cidadãos de Gaza, não há como escapar do conflito. Eles estão presos”. Não há saída e não há comida. Quase todos os habitantes da Faixa precisam desesperadamente de ajudas humanitárias, o que entra não é suficiente e organizações como a PMA foram obrigadas a cortar as rações de alimentos e depois cortá-las novamente.
O alimento que chegou na missão de dezembro, a de Dumont, era suficiente para um milhão de pessoas (metade da população de Gaza) e apenas para dez dias.
Israel obstrui as ajudas e bandos armados assaltam os caminhões para revender os alimentos no mercado negro.
Um saco de farinha custa 150 dólares, um quilo de pimentão, 190. Ninguém compra nada, porque ninguém tem mais dinheiro. Os adultos, escreve Dumont, esperam pelas rações quando estão disponíveis, as crianças caminham até dois quilômetros para conseguir um pouco de água.
Da estrada em direção à saída de Gaza, no final de sua missão, se lembra dos corpos no chão, em decomposição “ao longo do corredor militarizado de Netzarim - que divide o norte e o sul do enclave - vimos cadáveres espalhados à esquerda e à direita, em decomposição ao sol. Algumas centenas de metros depois, um pequeno grupo de mulheres e crianças seguiu naquela direção, carregando os poucos pertences”.
Em 5 de janeiro, outro comboio do Programa Mundial de Alimentos, sinalizado como veículo humanitário, foi atingido pelas forças armadas israelenses perto do posto de controle de Wadi Gaza.
Os três veículos, que deveriam transferir oito membros da equipe da organização internacional, foram atingidos por 18 projeteis, apesar de a trajetória ter sido acordada com antecedência e, portanto, autorizada pelo exército israelense.
Esse é apenas o exemplo mais recente dos riscos que as agências humanitárias enfrentam ao tentar fornecer assistência humanitária na Faixa de Gaza, cada vez mais submetida à fome. De acordo com especialistas, 90% da população enfrenta níveis de “crise” de insegurança alimentar e 300.000 pessoas estão vivendo um estado de “fome catastrófica”, ou seja, o nível mais alto de insegurança alimentar. Um levantamento da Unicef realizado entre 20 e 26 de novembro revelou que 80% das famílias entrevistadas na Faixa de Gaza tinham pelo menos uma criança sem comida nos três dias anteriores à pesquisa.
Pelo menos 74 crianças foram mortas somente na primeira semana de 2025, em vários ataques, principalmente noturnos, na Cidade de Gaza, Khan Younis e Al-Mawasi, designada como zona segura pelas forças armadas israelenses.
Setenta e quatro crianças, que vão se somar a uma lúgubre lista de vítimas da ofensiva israelense em Gaza, que um estudo recente da Lancet afirma ser maior do que os números do Ministério da Saúde de Gaza.
A revista científica estima, de fato, que nos primeiros nove meses tenham havido 64.260 mortes por lesões traumáticas, um número bem maior do que as 37.877 mortes registradas pelas autoridades no território palestino. O número foi calculado usando um esquema que faz referência cruzada de três listas separadas e compara registros sobrepostos de três fontes: mortes documentadas em hospitais e necrotérios pelo Ministério da Saúde, uma pesquisa on-line também gerida pelo ministério e obituários compartilhados em várias plataformas de mídia social, uma técnica amplamente usada para estimar as populações quando a realização de contagens completas é impraticável ou os dados disponíveis não são confiáveis.
De acordo com esse esquema, o número de mortos é 69,95% maior do que os números divulgados pelas autoridades sanitárias de Gaza, um órgão sob controle do Hamas, e, em conclusão, o artigo da revista Lancet sugere que, com base na metodologia, o número de vítimas poderia ser superior a 70.000.
Dois dias antes de o comboio do Programa Mundial de Alimentos ser atingido, oito membros do Comitê de Relações Exteriores e Defesa do Knesset, o Parlamento israelense, pediram ao ministro da Defesa, Israel Katz, que ordenasse a destruição de todas as fontes de água, energia e alimentos no norte da Faixa.
Os parlamentares, membros do Likud, o partido de Netanyahu, do Sionismo Religioso, cujo líder é Smotrich, e do Otzma Yehudit, liderado por Ben Gvir, pedem explicitamente ao exército para “limpar” a parte norte de Gaza dos residentes que ficaram, agravando o cerco, destruindo a infraestrutura e “matando qualquer um que não tenha uma bandeira branca”.
A carta ao Ministro da Defesa Katz é explícita: de acordo com os signatários, as estratégias militares não funcionam ou, pelo menos, não permitem o desmantelamento total das capacidades militares do Hamas, portanto, os planos de guerra precisam ser reconsiderados. Primeiro, causar fome e, depois, “entrar gradualmente com uma limpeza completa dos ninhos do inimigo”. Não apenas na parte norte da Faixa, mas em Gaza como um todo.
O exército israelense, que sitiou a parte norte de Gaza desde 6 de outubro, sempre negou estar pondo em prática o famigerado “plano dos generais”. O plano imporia uma evacuação completa da parte norte, considerando cada civil que permanecesse na área como um alvo militar, bloqueando a entrada de qualquer tipo de suprimento, seja alimentos, água ou medicamentos. Mas, apesar das distâncias tomadas, o que vem acontecendo há três meses no norte do corredor de Netzarim é um esvaziamento da área dos palestinos e um bloqueio total de suprimentos.
O Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) informou que, entre 6 de outubro e 30 de dezembro de 2024, a ONU tentou chegar às áreas sitiadas no norte de Gaza 164 vezes: 148 tentativas foram recusadas pelas autoridades israelenses e 16 foram impedidas. A Defesa Civil Palestina estima que cerca de 2.700 pessoas foram mortas e mais de 10.000 feridas em três meses, mas é impossível saber exatamente quantas pessoas permanecem no Norte.
As próximas semanas serão cruciais para a população da Faixa de Gaza, tanto pela posse de Trump quanto para o destino da Unrwa, a agência da ONU para os refugiados palestinos. De acordo com um funcionário israelense entrevistada pela CNN há alguns dias, Israel estaria considerando restringir ainda mais o acesso das ajudas humanitárias depois que o novo presidente assumir o cargo, e deveriam entrar em vigor no final do mês as leis votadas pelo parlamento israelense em outubro que proibiriam a agência de operar em território israelense.
Para os palestinos, isso seria uma catástrofe. Israel acusou a UNRWA de ser uma fachada para o Hamas, muitas vezes sobrepondo a agência da ONU ao grupo. Para os palestinos, a UNRWA é um instrumento indispensável para a sobrevivência, que desempenha uma função quase estatal e fornece alimentos, água e medicamentos a centenas de milhares de habitantes de Gaza e aos milhões de palestinos que vivem entre a Jordânia, o Líbano e a Síria.
Philippe Lazzarini, diretor da agência, escreveu há poucas semanas no jornal britânico The Guardian, um texto cuja manchete é “A Unrwa poderia ser forçada a parar de salvar vidas em Gaza. O mundo permitirá que isso aconteça?”.
Guterres adverte, alarmado, sobre o impacto devastador e multigeracional que a proibição do acesso à educação, à saúde e aos serviços sociais teria.
E conclui: “Ainda temos uma janela de oportunidade para evitar um futuro catastrófico no qual o poder de fogo e a propaganda constroem a ordem global, determinando onde e quando os direitos humanos e o estado de direito se aplicam, se é que se aplicam. As ferramentas e as instituições necessárias para defender e fortalecer nosso sistema multilateral e a ordem baseada em regras existem e são adequadas: só precisamos encontrar a coragem política para usá-las”.
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Cemitério Gaza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU