27 Março 2024
A fuga do primeiro-ministro Ariel Henry, em plena ofensiva de grupos criminosos, é apenas uma das faces de uma sequência de crises que desmantelou o aparelho de Estado. Aqui estão algumas dicas de leitura.
O artigo é da socióloga Sabine Manigat, da Universidad Quisqueya, publicado por Nuso, 03-2024.
Violência extrema, controle de gangues, emergências humanitárias: os holofotes foram mais uma vez colocados no Haiti.
A partir da segunda semana de fevereiro, assistiu-se a uma aceleração da crise e à sua propagação à escala internacional. A imprensa não poupa ressalvas para descrever a catástrofe haitiana como um caso perdido, além de qualquer esperança.
O presidente de fato Ariel Henry, que sucedeu Jovenel Moïse, assassinado em 2021, renunciou finalmente na segunda-feira, 11 de março, e permanece em Porto Rico por enquanto. A curto prazo, as intervenções externas – armadas e humanitárias – parecem inevitáveis, enquanto as discussões decorrem no Haiti com a facilitação da Comunidade do Caribe (CARICOM) e sob pressão dos EUA.
Mas para além do sensacionalismo e do exotismo, para compreender a situação nas suas próprias dimensões propomos uma abordagem analítica em três etapas:
1. a desconstrução das histórias atuais;
2. o restabelecimento dos fatos e suas articulações; e
3. a análise do que está em jogo hoje.
Trata-se de trazer à luz problemas e desafios mais gerais que surgem no Haiti por trás da sua imagem de excepcionalidade.
O hábito de tratar o Haiti de forma folclórica, sem rigor, sem análise e até sem informações confiáveis, não é novo. Nas últimas semanas, o país ganhou as manchetes da imprensa internacional como um antro caótico onde reina o crime descontrolado que causou cerca de 5.000 mortes violentas em um ano.
A imprensa reproduz com grande detalhe e imagens chocantes as exações de gangues criminosas que “controlam 80% do capital”. A sequência e a intensidade dos ataques não parecem coincidência. As gangues atacaram, seguindo um calendário sistemático, prédios públicos, prisões, hospitais, universidades e instituições nevrálgicas como portos e aeroportos. Em reação, alguns dos representantes do corpo diplomático, incluindo os da União Europeia e dos Estados Unidos, deixaram ostensivamente o país como “evacuados”.
Unificados durante apenas três semanas, os gangues declararam o primeiro-ministro Henry persona non grata e apresentaram-se como arquitetos do seu despejo, ao mesmo tempo que ameaçavam uma "guerra civil" e um "genocídio" se Henry não se demitisse.
O conflito apresenta-se essencialmente como um confronto entre essas gangues criminosas responsáveis por vários massacres, tolerados pelo governo de fato, beneficiário das suas exações contra a população, grupos que controlam a capital e outras regiões, e um governo que todos declararam expirado desde no último dia 7 de fevereiro. Apropriadamente, declarações espetaculares de um dos seus chefes, o antigo agente da polícia Jimmy Cherisier, vulgo "Barbecue", sugerem que os objetivos dos seus grupos são agora "revolucionários" e que pretendem defender o Haiti contra qualquer intervenção estrangeira. Eles teriam substituído o Estado desaparecido! Aí está a grande fábula.
Não seria difícil refutar esta apresentação distorcida dos fatos, embora isso implicasse o risco de minimizar a extensão do drama que o país vive. Por exemplo, nenhum dos ataques acima mencionados resultou na destruição ou ocupação duradoura de edifícios ou instituições públicas; certos diplomatas e funcionários de organizações internacionais permanecem no Haiti provavelmente sem grandes receios.
Além disso, o Haiti não é apenas Porto Príncipe, e os mais de sete milhões de residentes fora da capital continuam a produzir, a criar e a queixar-se, apesar dos problemas causados pela falta de comunicação com o centro econômico do país. Mas, acima de tudo, é preciso notar que, desde as suas origens, no alvorecer do século XXI, os grupos criminosos atacaram, massacraram, empobreceram e expulsaram dos seus bairros e casas quase exclusivamente os setores populares e a população mais necessitada. Não há e não pode haver uma guerra civil num contexto em que apenas a violência e a expropriação motivam os bandos, totalmente desprovidos de qualquer ideologia que não seja a do crime.
Além disso, é um segredo aberto que membros poderosos do setor privado, da classe política e também de máfias estrangeiras estão na origem do desenvolvimento e fornecimento de armas a estes grupos criminosos. Apenas alguns destes financiadores foram “sancionados” pelas autoridades dos países onde têm interesses ou investimentos (Estados Unidos, Canadá, República Dominicana).
Consequentemente, em nenhum caso as hordas que seguem a ordem dos seus senhores, embora relativamente emancipadas pelo relativo enfraquecimento dos seus financiadores, podem ser consideradas parte de uma solução.
Talvez mais grave, há uma instrumentalização e recuperação para fins políticos da exigência nacional de uma solução haitiana endógena para a crise. Esta publicidade aos discursos das gangues não é casual nem inocente. Ignora completamente a história daqueles que se posicionaram a favor de uma solução haitiana para a crise e o que está hoje em jogo nas atuais negociações sobre a intervenção estrangeira no país.
A outra face da moeda são os apelos insistentes para responder às crescentes necessidades humanitárias, que atingiram um nível crítico e que a Organização das Nações Unidas (ONU) estima em quase 700 milhões de dólares, uma soma praticamente equivalente à que exigiria a força de segurança multinacional. Parte das emergências humanitárias listadas incluem alimentos, água potável e medicamentos, cuja escassez sobrecarrega os setores populares urbanos, especialmente na área metropolitana.
Assim, o Haiti surge como um dos territórios prioritários para uma ofensiva internacional de resgate, tanto humanitário quanto de segurança. A ONU e o seu Conselho de Segurança, a Organização dos Estados Americanos (OEA), a CARICOM e até o G20 analisaram a crise do Haiti e expressaram as suas opiniões de diferentes formas, embora nenhuma tenha se comprometido totalmente com o dossiê haitiano. Por trás dos discursos atuais sobre a crise haitiana existe um processo complexo que envolve a maioria destes atores internacionais.
Para compreender a crise atual, é necessário recordar as etapas do colapso do Estado haitiano, porque de fato foi demolido. Nenhuma das suas instituições nodais está funcionando, nem mesmo o governo que acabou de se demitir tinha alguma legalidade ou legitimidade. Porém, essa realidade é fruto de uma história. Basta mencionar alguns fatos importantes.
Tornou-se habitual datar o início da crise aberta que abala o Haiti em 7 de julho de 2021, dia do brutal assassinato do presidente Moïse. Na realidade, o processo de destruição do edifício do Estado começou em 2011, com um ditame internacional que levou o cantor Michel Martelly à presidência do país: a OEA, a embaixada americana e a missão da ONU intervieram para modificar os resultados dos dois turnos das eleições a favor de Martelly.
Difundiram-se práticas de total desrespeito às obrigações, calendários e até rituais relacionados à gestão do Estado e claro, com ele tudo relacionado ao poder público. No fim do mandato de Martelly não havia condições de respeitar o calendário eleitoral. Daí uma segunda crise que levou às repetidas eleições de 2015-2016, que entronizaram Jovenel Moïse. Foram também as últimas eleições organizadas até o presente momento: não se realizaram as eleições legislativas e autárquicas previstas para 2019 e 2020, nem as eleições presidenciais que deveriam ocorrer no fim de 2020.
O assassinato inaugura uma nova etapa no colapso do Estado. Em primeiro lugar, desaparece a última figura eleita (embora com mandato expirado) ainda no poder. O crime desencadeia então uma “luta pela sucessão” em que o papel dos guardiões internacionais do Haiti – o autonomeado Grupo Central – demonstra o seu poder com a designação através de um tuíte do sucessor de Moïse. Este grupo é formado por Alemanha, Brasil, Canadá, Espanha, Estados Unidos, França, União Europeia, OEA e pela própria missão da ONU no Haiti.
Por fim, durante os 32 meses decorridos desde julho de 2021, organizam-se os elementos do cenário atual: o apagamento de toda autoridade do Estado haitiano verifica-se com a saída do seu único porta-voz formal, o primeiro-ministro de fato Ariel Henry; a criminalidade, que já foi insinuada com Martelly, transborda pela passividade sistemática da polícia e da administração pública. A classe política desmorona em conflitos internos ou entre partidos, muitas vezes por interesses mesquinhos e pessoais.
Ao mesmo tempo, a partir de 2020 formou-se uma frente de associações da sociedade civil que tenta estimular a cena política e conquistar um lugar para si na busca de uma solução nacional. Foi assim que nasceu em março de 2021 a Comissão para a Busca de uma Solução Haitiana para a Crise (CRSC), que produziu meses depois um acordo de 30 de agosto, conhecido como Acordo de Montana. Este reagrupamento é, sem dúvida, uma voz forte da sociedade e preparou propostas para a mesa de negociações. Na verdade, durante cerca de dez dias, uma tentativa de facilitação política empreendida pela CARICOM meses atrás recuperou a sua validade. Uma proposta do Acordo de Montana promove uma presidência coletiva para assumir o Poder Executivo vago.
É evidente que o esgotamento do modelo de governação e das suas estruturas está no centro da crise atual. Na verdade, num ambiente de decomposição social e fragilidade organizacional, apenas o controlo do poder pelo Grupo Central e especialmente pelos Estados Unidos explica a manutenção durante mais de dois anos e meio de um falso Poder Executivo ilegal, ignorado e nacionalmente repudiado.
A situação que prevalece começa com o pedido apresentado pelo primeiro-ministro Henry à ONU, em 2 de outubro de 2022, que deu origem um ano depois à resolução 2.699/2023 do Conselho de Segurança. Foi então aprovada a organização de uma missão multinacional para apoiar a segurança do Haiti. Esta iniciativa desencadeou duas dinâmicas que acabaram por minar as já débeis bases de apoio do governo de fato.
A primeira é a rejeição majoritária da intervenção de forças estrangeiras, que já aparecia no Acordo de Montana, inclusive por parte de aliados do governo. A segunda consequência do apelo à intervenção é a interferência, doravante direta, de diferentes organismos externos nas decisões que dizem respeito ao país. Na verdade, surge imediatamente o problema de quem será responsável pela implementação da resolução da ONU.
Os Estados Unidos, os verdadeiros instigadores da resolução, iniciaram então investigações com o Canadá antes de se dirigirem ao Caribe, à América Latina e, finalmente, ao Quênia. À medida que surgiram discussões internas sobre o envolvimento da polícia queniana, a situação de segurança e a violência experimentaram uma aceleração súbita e aparentemente imparável numa atmosfera de desaparecimento do Estado.
Com a expansão dos ataques e dos sequestros, os massacres em bairros populares (os bairros de Bel Air, Carrefour-Feuille, La Plaine, Torcel são alvo de ataques particularmente sangrentos, com expulsão em massa de centenas de famílias que se refugiam em edifícios públicos não equipados para os receber) e a multiplicação de grupos criminosos e a sua expansão em torno de Porto Príncipe, a capital vive uma paralisia parcial que a isola gradualmente do resto do país. Os gangsters possuem enormes quantidades de armas e munições. Diante deste processo de decomposição, destaca-se a total e suspeita inflexibilidade da oligarquia e do setor privado, apesar de afetados pela situação.
O que mais chama a atenção são as múltiplas fragilidades da classe política, que hoje enfrenta, dividida, a transição após a saída do primeiro-ministro do país.
A “transição” tem sido um tema recorrente desde o fim da ditadura Duvalier em 1986. Embora inserido numa região e numa cultura política de transações e acordos, o Haiti, ao contrário de outras sociedades com problemas semelhantes, não conseguiu construir e estabilizar um sistema político de competição e alternância de forças políticas no poder. Hoje, este problema está no centro das preocupações dos países que intervêm no Haiti: as potências hegemônicas, mas também a República Dominicana, o México, o Brasil e as nações das Caraíbas.
Ora, o problema da transição levanta duas questões que condicionam a compreensão do caso haitiano. Primeiro, a articulação das forças envolvidas para alcançar acordos mínimos que devem conduzir à transição. O contexto haitiano é o de uma infinidade de pequenas formações políticas, mais ou menos ideológicas e, sobretudo, muito fracamente organizadas. Isto resulta numa atomização do cenário político que levou à predominância do status quo em favor da oligarquia tradicional e facilitou o controlo externo do sistema político, e especificamente do poder eleitoral.
Desde 2000, o descontentamento do eleitorado torna-se evidente e desde 2011 não houve eleições que não desencadeassem ondas de protestos. Isto perpetua a instabilidade política e a consequente paralisia em termos de implementação de projetos, continuidade de políticas públicas e, portanto, consolidação do sistema político.
A novidade neste panorama é a trajetória política da sociedade civil entre 2018 e 2024. As organizações de direitos humanos, camponesas e profissionais incentivam o debate e coordenam as demandas sociais e políticas. Mas a falta de interlocutores políticos e estatais legítimos, combinada com as suas próprias limitações – em particular um fraco enraizamento organizacional na população – diminuiu parcialmente o seu impacto e expôs algumas das suas organizações ao risco de serem instrumentalizadas por grupos políticos tradicionais. Mas apesar de serem ignorados ou marginalizados tanto pelos políticos como pelos guardiões externos, o seu peso político tem vindo a crescer, como demonstrado pelo seu papel predominante nas discussões políticas atuais.
A rodada de discussões iniciada no último dia 11 de março sob os auspícios da CARICOM e a proposta desta instituição divulgada no dia 12 de março sobre uma saída para a crise múltipla que assola o Haiti refletem o entrelaçamento de interesses e pontos de vista em discussão entre os "padrinhos " – grandes e pequenos – do país.
Neste momento não apresenta soluções, mas visa alcançar uma trégua entre os líderes políticos, numa situação em que as prioridades são o restabelecimento da segurança física, social e econômica de uma população aterrorizada por gangues criminosas e o restabelecimento da demoliu instituições nodais do Estado: autarcas, parlamento, presidência e justiça.
O resultado deste exercício deverá ser o lançamento das bases para empreender, com o apoio mais ou menos próximo dos parceiros externos, a tarefa de reconstrução do Estado. Trata-se nada menos do que restabelecer a Presidência (que está desaparecida há quase três anos); substituir um governo e o seu primeiro-ministro ilegal desde a sua nomeação; e fortalecer as instituições de segurança e justiça para um rápido retorno da tranquilidade e proteção da vida das pessoas.
A maioria dos intervenientes, no entanto, criticou o que chamam de “fórmula CARICOM”. No entanto, as discussões continuaram entre os protagonistas haitianos e uma fórmula foi acordada. Isto consiste na formação de uma presidência coletiva – um Conselho Presidencial – com participação inclusiva da sociedade civil, das principais correntes políticas e do setor privado. Os nomes finais seriam conhecidos em 19 de março. Restam ver os acordos que devem garantir a sua implementação. Mais uma vez, espreitam os velhos demónios das rivalidades ideológicas e dos interesses pessoais que impediram todos os acordos durante décadas. Mas, por outro lado, parece que chegámos ao fundo do poço em termos de crise política e social. O país aguarda perspectivas e progressos concretos e os atores políticos, incluindo alguma representação do sector privado, ainda estão empenhados numa busca comum.
Finalmente, hoje a urgência é premente, a criminalidade procura garantir a sua impunidade com as suas ameaças armadas e a população está exangue. Um acordo, mesmo medíocre, desde que reflita valores claros que não admitam o conluio com o crime e a corrupção, servirá por enquanto para tentar encontrar uma saída. Por outro lado, a intervenção militar-humanitária continua a estar na ordem do dia. Contudo, reconstruir o Estado é também, de alguma forma, (re)definir o projeto de nação. Um objetivo sem dúvida inalcançável no curto prazo, mas cujas linhas determinam o futuro do Haiti.
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Haiti: violência de gangues e o colapso do Estado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU