14 Setembro 2024
"Em um período em que é difícil falar sobre o atual Israel político, chegou às livrarias uma porção de textos sobre o judaísmo cultural, cuja fecundidade certamente tem sua matriz na Bíblia, mas que se amplia ao longo de outras trajetórias. O que estamos propondo agora será apenas uma simples evocação de títulos e temas, mas pretende ser um estímulo para seguir alguns itinerários cognitivos. O início é confiado a uma espécie de clássico do judaísmo antigo, os Pirqè Avot, os “capítulos dos Padres”, um tratado dos séculos II e III: dessa coleção, um refinado estudioso da comunidade monástica de Bose, Alberto Mello, extrai os ditos do Rabino Natan, um mestre babilônico que se alimentava das afirmações de outros Padres e as elaborava e comentava", escreve escreve o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, ex-prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 18-08-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Histórias culturais. Em um momento histórico dramático para os eventos políticos, alguns livros nos ajudam a entender histórias, memórias e personalidades decisivas de uma história que dura há mais de trinta séculos e que não tem igual.
Em um período em que é difícil falar sobre o atual Israel político, chegou às livrarias uma porção de textos sobre o judaísmo cultural, cuja fecundidade certamente tem sua matriz na Bíblia, mas que se amplia ao longo de outras trajetórias. O que estamos propondo agora será apenas uma simples evocação de títulos e temas, mas pretende ser um estímulo para seguir alguns itinerários cognitivos. O início é confiado a uma espécie de clássico do judaísmo antigo, os Pirqè Avot, os “capítulos dos Padres”, um tratado dos séculos II e III: dessa coleção, um refinado estudioso da comunidade monástica de Bose, Alberto Mello, extrai os ditos do Rabino Natan, um mestre babilônico que se alimentava das afirmações de outros Padres e as elaborava e comentava.
O título I Padri del mondo (Os Padres do mundo, em tradução livre, Qiqajon, pp. 246, €24) refere-se aos três patriarcas primordiais Abraão, Isaque e Jacó, aqueles que introduziram a presença divina (Shekinà) na história. A mensagem, distribuída em cerca de quarenta capítulos, revela uma gama colorida de temas morais e espirituais, na convicção de que o mundo se rege em três pilares: a Lei (Torá), o culto e as obras de misericórdia. A religião não deve ser uma alienação do empenho histórico: “Se você estiver segurando uma árvore e lhe disserem que o messias chegou, vá primeiro plantar a árvore e depois saia para recebê-lo”. Um aforismo também adotado por Lutero, que livremente identificou aquela árvore como uma macieira.
Muito delicado por suas redundâncias que ultrapassam o perímetro bíblico é o tema que dá título à reedição de um ensaio de um dos maiores estudiosos católicos do judaísmo, Pierre Lenhardt (1927-2019), La terra di Israele e il suo significato per i cristiani (A terra de Israel e seu significado para os cristãos, Morcelliana, pp. 98, € 10). Categoria capital nas Escrituras hebraicas, ela revela muitas variações semânticas que pertencem a diferentes status, sobretudo a aplicações posteriores, inclusive políticas, e que entram no cristianismo com uma indubitável reinterpretação: basta pensar na bem-aventurança evangélica dos “mansos que herdarão a terra” (Mateus 5,5). Uma questão complexa que é retomada na discussão em anexo, entre o próprio Lenhardt e o especialista em diálogo judaico-cristão Massimo Giuliani.
Uma obra de grande alcance, capaz de cobrir de forma sugestiva um arco inteiro, é a Storia culturale degli ebrei a due você (História cultural dos judeus em duas vozes), com um teólogo católico especializado no âmbito do judaísmo, Piero Stefani, e o judeu David Assael, que colabora com jornais e transmissões (il Mulino, pp. 336, € 26). A trama, que se estende por cerca de trinta séculos, começa naturalmente com a Torá, simbolicamente escrita pelo dedo de Deus e pela mão de Moisés, e se amplia até o horizonte dos apócrifos, especialmente os apocalípticos, para depois prosseguir na contaminação criativa da diáspora judaico-helenística, que tem um desfecho decisivo na versão grega da Bíblia conhecida como “dos Setenta” em Alexandria do Egito. Talvez um pouco superficial seja o cruzamento com Jesus de Nazaré, a que se segue um capítulo relevante como o a literatura rabínica com sua eflorescência dialética, jurídica e mística.
Em seguida, a modernidade bate à porta da sinagoga, marcada pela data de 1492, ligada a um evento com consequências inesperadas e dramáticas, o gherush, a expulsão dos judeus da Espanha, que afetou profundamente a no próprio judaísmo: basta pensar no gueto, no renascimento messiânico e no misticismo cabalístico. A partir daquela virada, seguem-se todas as etapas comuns ao mundo europeu, desde o Iluminismo e a emancipação, passando pelos vários totalitarismos, até o atual Israel, a partir de 15 de maio de 1948 com a declaração de independência do Estado judaico e terminando com o controverso governo de Netanyahu.
A abordagem adotada, entretanto, tende a ser de viés tendencialmente cultural, tentando isolar a identidade específica e o impacto universal de uma história complexa que se estende por trinta séculos.
Uma etapa sempre sangrenta dessa história secular é a que nasceu do nódulo escuro e aterrorizante do Holocausto. Depois de Auschwitz, até mesmo a teologia cristã, e não apenas a judaica, ampliou um caminho que o livro de Jó já havia traçado. Assim, surgiram várias figuras, entre elas Elie Wiesel e, de certa forma, Emmanuel Lévinas e, no horizonte artístico, Marc Chagall.
O historiador das religiões Marcello Massenzio (Maestri erranti. Il rinnovamento della cultura ebraica dopo la Shoah, Mestres Errantes, A renovação da cultura hebraica após o Holocausto, Einaudi, pp. VIII - 160, € 19) traz à cena um personagem misterioso e desconcertante, mestre das mesmas figuras que acabamos de evocar, Mordechai Chouchani, cuja biografia está envolta em um véu mítico.
Confesso que também para mim foi uma descoberta absoluta: a sua experiência como mestre itinerante, encarnava - como Wiesel afirmava - o arquétipo fantasioso do Judeu errante. Como é sabido, ele teria expulso rudemente Jesus quando ele se apoiou para descansar, na subida do Gólgota. A ele, chamado Assuero, o Cristo sofredor teria anunciado: “Eu vou parar e descansar, mas você caminhará”. E, desde então, a lenda medieval quer que aquele judeu se tornaria o emblema da incessante perambulação do judeu, reelaborada, no entanto, em um sentido positivo pelo sábio peregrino Chouchani. Concluímos essa pequena jornada bibliográfica no mundo do judaísmo entrando idealmente na conhecida sinagoga de Roma para ouvir os Canti del tempio maggiore di Roma (Cantos do Templo maior de Roma, Gangemi, pp. 238, s.i.p.). Pasquale Troìa, nesse segundo tomo dedicado a um tema muito sugestivo, oferece uma documentação impressionante, resultado de uma pesquisa vertiginosa que abrange desde os protagonistas cantores, coristas e mestres até o repertório dos cantos, passando ao órgão que acompanha os ritmos e os tantos segredos lexicais, como as expressões idiomáticas judaico-romanescas florescidas da tefillah, o canto de oração, acrescentando também um álbum fotográficos de memórias.
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Os cantos da sinagoga e a identidade judaica. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU