03 Agosto 2024
"Talvez Missaglia peque um pouco de concordismo, mas é verdade que o que ele aponta pode ser um terreno de diálogo entre arte e fé, como aliás aconteceu por séculos, e que somente no século XX se transformou em um divórcio de efeitos negativos para ambos os lados", escreve Gianfranco Ravasi, ex-prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 28-07-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Arte e fé. Um ensaio, começando pela "Crucificação" de Picasso, explica que o movimento demonstrou "a reflexão sobre as grandes tragédias daqueles anos, uma posição clara em favor da humanidade, a explicitação do grito angustiado". Ficou em seu apartamento até sua morte como quadro votivo ou talvez como talismã. Era uma pintura a óleo sobre compensado medindo 51,5 x 66 cm e o tema era a Crucificação. Pode ser uma surpresa para muitos saber que o pintor em questão era ninguém menos que Picasso, geralmente classificado como agnóstico em questões de fé.
"Crucificação" de Pablo Picasso (Foto: Wikimedia Commons)
De forma igualmente inesperada, essa obra - datada de 7 de fevereiro de 1930 - havia deixado o Musée Picasso de Paris em 2003, onde estava guardada, para aterrissar no Panteão em Roma: por ocasião do 25º aniversário do pontificado de João Paulo II, uma exposição intitulada "Nossa Senhora na Arte Contemporânea" havia sido organizada, e a imagem havia sido usada na capa do catálogo. Entender a iconologia dessa pintura, tão cheia de elementos e estranha à iconografia clássica, é uma tarefa bastante árdua e pode ser desconcertante para quem não tem nenhum conhecimento da gramática estilística cubista.
Felizmente, recentemente foi publicado um ensaio de vários autores que oferece não apenas uma precisa exegese crítica e uma interpretação da obra, mas também amplia o olhar para todo o fenômeno do cubismo de acordo com uma curiosa abordagem teológica. A essa última hermenêutica é dedicado um texto de um jovem teólogo de Pádua, Luigi Missaglia, que morreu com apenas 39 anos em 2006, vítima de um ataque cardíaco. Suas páginas revelam uma forte sensibilidade aos novos percursos da arte contemporânea. Elas são coloridas por um otimismo talvez excessivamente entusiasmado ao estabelecer um vínculo entre essa arte e a fé cristã.
Ele escreve: "A teologia teria muito a dizer ao cubismo precisamente porque aportaria ao discurso temáticas que ele não enfrentou", e aqui remete à reinterpretação cristã do "fracasso da beleza" no mal, a dor, a morte, como acontece precisamente na crucificação de Cristo que, no entanto, está aberta à ressurreição. E continua: "O cubismo também teria muito a dizer à teologia: a sua reflexão sobre as grandes tragédias que abalaram o mundo naqueles anos, sua posição clara em favor do homem, a explicitação do grito angustiado". Talvez Missaglia peque um pouco de concordismo, mas é verdade que o que ele aponta pode ser um terreno de diálogo entre arte e fé, como aliás aconteceu por séculos, e que somente no século XX se transformou em um divórcio de efeitos negativos para ambos os lados. Mas voltemos à Crucificação de Picasso e à sua decifração.
No livro a que nos referimos, ao lado do teólogo paduano, entra em cena uma professora da Pontifícia Universidade Gregoriana, Yvonne Dohna Schlobitten, que recorre a três "olhares" para interpretar a pintura. Deixando de lado a visão geral sobre o artista e sua relação com a religião e outros capítulos de caráter mais geral que cruzam a biografia e as obras de Picasso, dois "olhares" são reservados justamente para a complexidade dos sujeitos que povoam aquele painel e suas implicações e repercussões na existência do pintor. Paradoxal em relação ao cânone figurativo tradicional é justamente o Cristo mínimo, com uma cabeça menor do que os dedos abertos, a boca é uma linha, os olhos são dois pontinhos. A serem descobertos são, depois, os outros atores, da Mater dolorosa a Maria de Magdala, do apóstolo João a Longino perfurando o lado de Jesus, ao carrasco pregando a mão direita do crucificado numa escada de treze degraus. Muito mais a estudiosa decifra e ilustra, mas acima de tudo interpreta, oferecendo um valioso perfil de Picasso e de sua arte. Nós, no entanto, passamos para a etapa seguinte, a ressurreição.
É bem sabido que não é descrita nos Evangelhos canônicos, portanto, o poderosa e inesquecível Ressurreição de Piero della Francesca no salão do antigo paço municipal de Borgo Sansepolcro é um apócrifo. Fundamentais são as chamadas "aparições" que têm vários destinatários, a começar pelas mulheres discípulas. Um dos mais famosos desses encontros com o Cristo ressuscitado é o que tem como protagonistas dois de seus seguidores, dos quais apenas um nome é conhecido, Cleofas. Estamos na estrada que leva de Jerusalém ao vilarejo de Emaús (identificado de forma variada pelos arqueólogos), distante, de acordo com o evangelista Lucas e sua fascinante narrativa (24,13-35), "sessenta estádios" (cerca de 11 km). Um dos maiores historiadores da arte sacra, François Boespflug, emérito da Universidade de Estrasburgo e criador (com Emanuela Fogliadini) de uma Academia de Arte Cristã, realiza uma esplêndida antologia iconográfica dessa cena, que está na memória de muitos por causa da doce invocação simbólica final dos dois discípulos ("Fique conosco, pois o dia já findou, e está chegando a noite").
Ele divide o relato evangélico em 15 microcenas que a arte, ao longo dos séculos, soube transfigurar e, na capa, coloca-as sob a insígnia de uma pintura pouco conhecida, "No caminho", de Arcabas. Mas sua seleção começa bem antes, por exemplo, com um mosaico de 561 de Ravenna em S. Apollinare Nuovo, passando também pelas miniaturas e vitrais e várias pinturas extraordinárias, como as de Rembrandt (o estupendo painel no Musée Jacquemart-André, de Paris) ou o duplo Caravaggio de Brera e da National Gallery de Londres, até uma multidão de artistas contemporâneos nem sempre exaltantes. No conhecimento ilimitado desse estudioso e na "exegese" das várias pinturas confiada a uma escrita sempre límpida, uma seção aqui - como em outros seus estudos sobre temas bíblicos - é reservada para a inculturação na arte não europeia. Assim, encontramos inesperadas representações do episódio de Emaús na China, no Japão, na Índia, em Camarões e nos povos indígenas dos Estados Unidos. Mas, surpreendentemente, ele também apresenta cenas atípicas, como "quando um dos dois discípulos de Emaús é uma mulher"...
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O cubismo se espelha na teologia. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU