10 Novembro 2021
Os cumprimentos e os esclarecimentos. Enquanto nas sinagogas em todo o mundo se preparavam um ramo de palmeira, dois de salgueiro e três de murta para o Sucot, a festa das cabanas, o Papa Francisco a recordava no Angelus em 5 de setembro e também enviava seus votos para as celebrações do Rosh Hashaná, o Ano Novo Judeu e o Yom Kippur. “Dirijo os meus votos mais sinceros a todos os irmãos e irmãs da religião judaica: que o novo ano seja rico de frutos de paz e de bem para aqueles que caminham fielmente na Lei do Senhor”.
Assim, as festas judaicas do mês de setembro foram acompanhadas pelos últimos esclarecimentos por um tropeço no caminho entre as duas comunidades, ocorrido cerca de um mês antes. No dia 11 de agosto, durante a catequese de quarta-feira sobre a Epístola aos Gálatas, algumas declarações do Papa Francisco sobre a Lei - “não está na base da aliança porque veio sucessivamente, era necessária e justa, mas primeiro havia a promessa, a aliança" e "a Lei, porém, não dá vida, não oferece o cumprimento da promessa, porque não está na condição de poder cumpri-la. É um caminho que te leva à frente para o encontro” - haviam despertado preocupação na comunidade judaica.
O Rabino Rasson Arussi, presidente da Comissão do Grande Rabinato de Israel para o Diálogo com a Santa Sé, e o Rabino David Fox Sandmel, um dos diretores da Liga Anti-Difamação, escreveram uma carta ao presidente da Comissão do Vaticano para as relações religiosas com o judaísmo, o cardeal Kurt Koch, pedindo uma explicação das palavras do Papa. Um debate que teve continuidade em vários jornais, incluindo L'Osservatore Romano, e teve um ato final na carta que, em 10 de setembro, o próprio Koch enviou em resposta aos dois rabinos, argumentando que "o fato de que a Torá seja crucial para o judaísmo moderno não é de forma alguma questionado". Também não se pode presumir que o Papa Francisco "esteja retornando à chamada 'doutrina do desprezo'".
O grande rabino Riccardo Shemuel Di Segni, médico de 72 anos, à frente da comunidade de Roma há 20 anos, também falou sobre o caso. Em seu perfil no twitter, onde se define como um "raviologista" - rabino, radiologista ... apaixonado por raviólis -, no dia 4 de julho, desejou ao Papa Francisco uma rápida recuperação pela delicada cirurgia. “Talvez tenha sido uma tempestade em um copo d'água. Mas também uma oportunidade de esclarecimento: o diálogo também serve para isso, para intervir se houver sensibilidades diferentes, para confrontá-las e procurar uma linha de comportamento comum”, disse Di Segni. “Tem havido uma série de protestos expressos de várias maneiras, se seguiram esclarecimentos e tudo bem. O acidente é útil porque coloca em evidência as dificuldades e produz mudanças virtuosas.”
A entrevista com Riccardo Di Segni é de Vittoria Prisciandaro, publicada por Jesus novembro-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Permanecendo no tema que desencadeou o confronto, do seu ponto de vista, como se estrutura a identidade cristã a partir dos escritos paulinos? Colocando de maneira um pouco mais seca, o antijudaísmo cristão nasce com São Paulo?
É uma questão extremamente complicada porque, nos inícios do Cristianismo, como está documentado nas Cartas de Paulo, nos Atos e depois nos Evangelhos, aparecem várias tendências e opiniões.
Do ponto de vista de um público judeu, se começarmos com coisas claras, é um fato que o Novo Testamento seja repleto de polêmica, às vezes muito dura, às vezes mais moderada. Expressa a necessidade de sublinhar a novidade do ensinamento de Jesus e o sentido da sua vinda.
Como isso se reconcilia com a matriz judaica do cristianismo nascente?
Existem muitas respostas diferentes para essa pergunta. Se alguém ler isso como uma polêmica interna ao mundo judaico, são os judeus que discutem e se ofendem entre si. Se, por outro lado, a chave é a do velho contra o novo e assim por diante, ali começa a haver problemas... Porém, hoje a questão não é o que Paulo disse, os Evangelhos ou o que emerge da discussão sobre a lavagem das mãos, como foi feito por um famoso escritor. O problema é o uso que se faz disso na pregação cotidiana.
Não os discursos entre estudiosos, em suma, mas as repercussões nas relações entre judeus e cristãos hoje?
Não estamos aqui para resolver o problema se Paulo estava dentro ou fora do judaísmo, é uma questão muito complicada e que deve ser deixada para os teólogos. A variedade de explicações da teologia paulina, em qualquer nível em que seja feita, não faz parte das nossas preocupações. O problema é como é apresentada na pregação diante de um público que não está suficientemente informado e pode transferir esses conceitos para a atualidade da religião judaica. Além disso, a discussão surgiu em torno da Epístola aos Gálatas, que é um dos textos paulinos mais complicados.
O senhor escreveu que o risco é repropor estereótipos que ainda hoje podem prevalecer. Pode nos dar alguns exemplos?
O principal risco que foi discutido é o papel da 'Lei', que é uma forma tipicamente cristã, mas não exclusiva, de chamar a Torá. A Torá é composta, entre outras coisas, de mandamentos a serem observados. Qual é o papel desses mandamentos? Uma coisa é dizer que observá-los sem ter fé é cumprir um ato formal, outra é dizer que todo o sistema é formal, não tem valor, não faz mais sentido porque é puro formalismo e não leva à salvação. Ou, no máximo, é propedêutico para uma nova fé. Eu entendo que isso vale para a fé cristã, mas e quanto à fidelidade judaica à Torá? Se for simplificado sem explicar, torna-se uma forma de degradar todo um sistema, no qual nos identificamos completamente.
O L'Osservatore Romano escreveu que o tema da prática religiosa sem fé é efetivamente uma temática judaica sobre a qual muitas personalidades judaicas desde sempre se expressaram, e é verdade, mas nenhuma dessas personalidades questionou a necessidade da observância prática. Se depois se chega a dizer que essa prática é trash, lixo - essas palavras também foram usadas em outro jornal - então se está ultrapassando um limite. Também posso entender que, para o cristão, aquele tipo de prática religiosa não faz sentido para ele, e não há nem mesmo do lado judaico nenhum pedido para que o cristão observe a Torá, mas acho difícil aceitar que todo o sistema religioso judaico seja desmontado nessas bases. Esses temas deveriam ser abordados com uma premissa: essas são polêmicas antigas, estamos convencidos de que a fé é o que salva, mas para os judeus a Torá é o caminho da salvação.
Mas essas coisas estão nos documentos comuns entre judeus e cristãos, são adquiridas em nível teórico...
Sim, e para chegar a esses textos foi um trabalho muito difícil. Um trabalho de estudiosos que, no entanto, permanece fechado em salas muito privadas e pouco acessíveis ao grande público. Trabalho de reinterpretação, reescritura, de que um exemplo importante é aquele que o Papa Bento fez com sua leitura do antifarisaísmo nos Evangelhos. É grande o trabalho dos teólogos que procuram contextualizar essas coisas, e disso deve passar pelo menos a mensagem pública que existe uma complexidade interpretativa que não pode ser simplificada de forma que denigra.
Em vários documentos são indicados três objetivos do diálogo: conhecer-se, trabalhar juntos pela justiça e a paz, lutar contra a discriminação e o antissemitismo. Como vão?
O problema é fazer a chuva cair de cima a baixo. Deve haver uma educação no uso correto da palavra. Até porque se pensarmos no antissemitismo racista, ninguém, espero - na Igreja Católica - é antissemita, mas muitos continuam sendo antijudeus, que não elaboraram o sentido das contraposições originais ou pelo menos não percebem o peso das palavras que usam. Porque quando são ridicularizados os judeus que lavam as mãos antes de comer, não se fala do que acontecia no tempo de Jesus, se ridicularizam os judeus que o fazem hoje.
Num texto vaticano de 2015, Porque os dons e o chamado de Deus são irrevogáveis, publicado por ocasião do 50º aniversário da Nostra aetate, fazendo um balanço dos progressos realizados, esperava-se um estudo mais aprofundado orientado para enriquecer e intensificar a dimensão teológica do diálogo judaico-católico. Onde se pode chegar em sua opinião? Judaísmo e Cristianismo então em alternativa, conflitantes ou fazem parte do mesmo plano de salvação?
Está colocando o dedo na ferida. Do ponto de vista judaico ortodoxo, não é possível colocar em confronto os nossos princípios de fé. Enquanto isso é desejado por muitos expoentes importantes da Igreja. Os princípios de fé não são objeto de negociação política; são intocáveis e devem ser respeitados como tais. O que precisa ser reduzido é o muro de hostilidade que poderia surgir como corolário desses princípios de fé. Há quem conceba o diálogo como um instrumento para demonstrar que eu estou certo e você errado. E não funciona. Não faz sentido colocar-se a discutir sobre o messianismo de Jesus ou sobre a Trindade. Cada um segue a sua fé, o que devemos tentar fazer é que essa fé me impeça de pisar na dignidade alheia. E isso já é bastante.
O que significa caminhar juntos?
Pensar que o outro, que vai para uma casa de culto diferente, não é o meu antagonista, mas um parceiro para construir um mundo melhor. Reconhecer no bem espiritual do outro, que se deveria traduzir em boas ações, um valor tão positivo que possamos caminhar juntos.
O senhor é chefe da comunidade de Roma há 20 anos. No passado, houve com os papas também momentos de frieza. Como é a situação com Francisco?
Basicamente as relações são boas e cordiais. Houve esses pequenos incidentes de incompreensão que diziam respeito a modalidades expressivas e não à substância, e a cada oportunidade foram resolvidos. Acredito que este seja um Papa com quem há amplo espaço de respeito e colaboração.
O senhor gosta da expressão "irmãos mais velhos"?
Não gosto de "Irmãos mais velhos", é ambígua. Por um lado, é belíssima, ressalta uma relação de fraternidade e respeito pelo idoso. Por outro lado, tem raízes bíblicas muito negativas: na Bíblia, o irmão mais velho é o mau e ele perdeu seu direito de primogenitura. E não é invenção minha, está documentada em todos os escritos bíblicos, mesmo os do Novo Testamento. Mas o homem comum, felizmente - é o caso em que a ignorância ajuda muito - não sabe nada sobre a Bíblia. E se detém no primeiro significado.
Como explica o sucesso de tantas séries de televisão dedicadas ao mundo judaico, como Shtisel e Nada Ortodoxa?
No pouco tempo livre que tenho, recuso-me a ver coisas que dizem respeito aos judeus... Mas eu sei do que estamos falando. Foi uma operação midiática brilhante: mostrar realidades de mundos tão complicados e diferentes, e depois demonstrar que nesses mundos as pessoas têm as mesmas dificuldades que os outros seres humanos. O judaísmo continua a exercer o seu fascínio.
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A Torá para além dos estereótipos. Entrevista com Riccardo Di Segni, grande rabino de Roma - Instituto Humanitas Unisinos - IHU