05 Setembro 2024
“A estratégia de escalada progressiva tem como objetivo esticar a corda, e se supõe que está sendo esticada suficientemente pouco para negar à Rússia motivos para recorrer à opção nuclear. No entanto, a estratégia corre o risco de não ser capaz de ver a gota d’água que faz transbordar o copo”, escreve Thomas Palley, doutor em Economia e mestre em Relações Internacionais pela Universidade Yale, em artigo publicado por Ctxt, 03-09-2024. A tradução é do Cepat.
Em agosto de 1945, os Estados Unidos lançaram a bomba atômica sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. Desde então, as armas nucleares não voltaram a ser utilizadas em conflitos. No entanto, isto pode mudar em breve, já que aumentam as probabilidades de que a Ucrânia enfrente um momento semelhante ao de Hiroshima.
A situação na Ucrânia oferece cada vez mais motivos militares e geopolíticos para que a Rússia utilize armas nucleares táticas. Ainda que seja Rússia que poderá utilizá-las, os Estados Unidos e a OTAN participam muito ativamente do processo. Estão presos nas garras da loucura neoconservadora que descarta imprudentemente as possíveis consequências catastróficas e bloqueia todas as saídas.
Uma forma de compreender o momento atual é por meio da história dos bombardeios de Hiroshima e Nagasaki. Aqueles ataques também tiveram motivações militares e geopolíticas. A primeira é um fato amplamente reconhecido; a segunda não.
De acordo com a história normalizada, em agosto de 1945, o Japão estava de facto derrotado e havia manifestado a sua intenção de se render “com condições”. No entanto, os Estados Unidos queriam uma rendição “incondicional”. Também calculou que a conquista do Japão poderia significar um milhão de baixas estadunidenses. Consequentemente, optou por destruir Hiroshima e Nagasaki, conseguindo a sua rendição incondicional sem tais baixas.
A motivação geopolítica preocupava a União Soviética. Ela havia declarado guerra ao Japão no dia seguinte ao ataque de Hiroshima, e os Estados Unidos temiam que conquistasse o norte do Japão, pouco defendido. As bombas de Hiroshima e Nagasaki impediram isto ao colocar fim à guerra de forma abrupta. Também enviaram à União Soviética uma mensagem intimidatória sobre o poder dos Estados Unidos.
A guerra na Ucrânia gerou uma lógica que lembra a de 1945. O paralelo militar é claro. A Rússia quer acabar com a guerra de um modo aceitável. Mesmo após ter conquistado as províncias de Donbass, enfrentará ataques contínuos com armamento de longo alcance fornecido pelos Estados Unidos e seus sócios menores da OTAN. A conseguinte perda de vidas e danos russos será inaceitável. As armas nucleares táticas podem cirurgicamente pôr fim ao conflito, e a Ucrânia se verá forçada a aceitar o resultado ou enfrentar uma destruição maior.
O paralelo geopolítico também é claro. Em 1945, os Estados Unidos enviaram uma mensagem à União Soviética. Na Ucrânia, as armas nucleares táticas enviarão aos Estados Unidos a mensagem de que se continuarem com a sua estratégia de escalada progressiva do conflito correm o risco de provocar uma guerra nuclear total.
O neoconservadorismo é uma doutrina política que sustenta que nunca mais haverá uma potência estrangeira, como a ex-União Soviética, que possa desafiar a supremacia estadunidense. A doutrina confere aos Estados Unidos o direito de impor a sua vontade em qualquer parte do mundo, o que explica a intervenção estadunidense na Ucrânia muito antes da invasão russa de 2022. Inicialmente, a doutrina se enraizou entre os republicanos linha-dura, mas, desde então, foi adotada pelos democratas, e agora impera do ponto de vista político.
Desde o final dos anos 1990, o projeto neoconservador impulsionou uma guerra em câmara lenta contra a Rússia, baseada em uma estratégia de “escalada progressiva”. O primeiro passo foi a incorporação dos países centro-europeus na OTAN, a que se seguiu a incorporação das antigas repúblicas soviéticas do Báltico. A partir daí, os Estados Unidos começaram a fomentar o sentimento anti-russo nas antigas repúblicas da Geórgia e da Ucrânia. A longo prazo, pretende impulsionar a desintegração da Rússia, tal como defendido pelo Conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, Zbigniew Brzezinski, nos anos 1990.
O envolvimento dos Estados Unidos e da OTAN na Ucrânia tem sido caracterizado por uma estratégia de escalada progressiva semelhante. Nos anos anteriores à guerra, a Ucrânia foi a maior receptora de ajuda militar estadunidense da Europa e os membros da OTAN interromperamo processo de paz de Minsk. Desde então, o compromisso se intensificou constantemente, transformando a ajuda em uma guerra de poder e, posteriormente, em um conflito direto e tácito com a Rússia.
O calendário inclui sabotar as negociações de paz, no início de 2022; fornecer mísseis antiaéreos Stinger, mísseis antitanque Jaguar e munição de artilharia; fornecer sistemas de defesa antiaérea com mísseis Patriot; transferir reatores MIG-29 de países do antigo Pacto de Varsóvia; fornecer artilharia de longo alcance, carros de infantaria avançados e tanques; fornecer sistemas de foguetes HIMARS de longo alcance e mísseis ATACMS e Storm Shadow de maior alcance; e fornecer aviões F-16 modernizados.
Paralelamente, os Estados Unidos proporcionam informações por satélite, ao mesmo tempo em que alguns assessores secretos colaboraram em ataques com mísseis de longo alcance no interior da Rússia, dos quais cabe destacar os ataques à ponte de Kerch, a navios de guerra russos no mar, a estaleiros navais na Crimeia e Novorossiysk, ao sistema de defesa russo AWACS de grande altitude e um ataque ao sistema russo de defesa contra mísseis antibalísticos.
A estratégia de escalada progressiva tem como objetivo esticar a corda, e se supõe que está sendo esticada suficientemente pouco para negar à Rússia motivos para recorrer à opção nuclear. No entanto, a estratégia corre o risco de não ser capaz de ver a gota d’água que faz transbordar o copo.
Colocar-se no lugar do outro pode ser esclarecedor. Os objetivos da Rússia são três. Em primeiro lugar, quer acabar com a guerra em condições aceitáveis. Em segundo lugar, quer resistir à estratégia estadunidense de escalada progressiva. Em terceiro lugar, quer reestabelecer a credibilidade da sua dissuasão nuclear, que foi comprometida por escaladas que borraram as linhas vermelhas que não devem ser ultrapassadas.
O uso de armas nucleares táticas se tornou cada vez mais racional, pois alcançaria os três objetivos, razão pela qual a situação é grave. O grande paradoxo é que a dissuasão busca evitar a guerra nuclear, no entanto, o restabelecimento da dissuasão pode requerer o uso de armas nucleares, pois demonstra a vontade de fazê-lo.
Muitos partidários neoconservadores falam imprudentemente do “blefe nuclear de Putin”. A verdade é que a ameaça de represálias nucleares por parte dos Estados Unidos é um blefe. Nenhum político ou general estadunidense, em seu perfeito juízo, se arriscaria a uma guerra termonuclear pelo bem da Ucrânia.
Ainda dá tempo de interromper o processo. O problema é que a paz nem sequer é contemplada. A democracia viciada da Ucrânia está em suspenso, os extremistas de Azov têm o controle e qualquer ucraniano que se oponha à guerra enfrenta penas de prisão ou algo pior.
Nos Estados Unidos, os neoconservadores estão no comando e o público recebe continuamente uma narrativa maniqueísta que pinta o Ocidente como o bem e a Rússia como o mal. Esta falsa narrativa é constantemente reforçada e dificulta o compromisso político e ético.
O prognóstico é desalentador. Ironicamente, o que pode impedir um momento como o de Hiroshima é o sucesso russo no campo de batalha.
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A Ucrânia está cada vez mais perto do “momento Hiroshima” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU