27 Agosto 2024
"Estamos no início de uma era atômica, e é possível que o fulcro se desloque da Europa para a região do Indo-Pacífico. Os desenvolvimentos tecnológicos e a multiplicação dos atores complicam a dissuasão, preanunciando um mundo mais perigoso, no qual os arsenais se expandem em meio a incertezas e temores facilmente manejáveis", escreve o cientista político italiano Francesco Strazzari, professor de Relações Internacionais na Scuola Universitaria Superiore Sant’Anna, em Pisa, na Itália. O artigo foi publicado por Il Manifesto, 25-08-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Alguém se lembra do presidente Barack Obama em Praga, em 2009, falando sobre um mundo livre das armas atômicas? Ou ainda antes, em 1983, o jovem Obama escrevendo na revista da Universidade de Columbia um artigo intitulado Breaking The War Mentality (Rompendo a mentalidade de guerra), no qual denunciava “a lógica perversa” da Guerra Fria, atacando as doutrinas nucleares que, segundo ele, “servem aos interesses do complexo militar-industrial”?
Hoje, enquanto o ex-presidente abraça a vice-presidente candidata Kamala Harris, o presidente em saída Biden, atendendo às recomendações do Congresso, deixa como legado a expansão dos arsenais atômicos. Enquanto o candidato republicano Trump denuncia os democratas (“eles nos levaram ao grave perigo de uma Terceira Guerra Mundial”), anunciando um escudo atômico e a paz a partir do dia seguinte à sua eleição. Aqui está, então, a nova era nuclear de que fala o Pentágono. O perigo não é a “Bomba atômica do Inimigo”, mas as bombas atômicas de uma série de inimigos, com a Rússia e a China na liderança. Durante anos, assistimos à deterioração gradual, até o colapso, dos mecanismos de controle sobre os armamentos. Contribuíram para essa situação no início dos anos 2000 a cegueira dos neoconservadores em gerir o diálogo estratégico com Moscou, bem como as constantes violações russas dos mecanismos de verificação. Aqueles que investiram títulos no setor de defesa e aeroespacial nos últimos anos fizeram ótimos negócios.
A modernização dos arsenais apresenta problemas sem precedentes para a dissuasão, principalmente porque, nesse interim, também os outros sete países com armas nucleares estão desenvolvendo novos sistemas de armas e mudando as regras do jogo. Em particular, a China está implementando um imponente plano de expansão de seu arsenal nuclear: o Pentágono observa a construção de mais de 300 novos silos de mísseis e espera que o número de ogivas chinesas triplique na próxima década. Desde 1964, a pedra angular da doutrina nuclear de Pequim tem sido não recorrer à arma atômica primeiro, em nenhuma circunstância; no entanto, as recentes omissões dessa ênfase não passaram despercebidas em Washington.
A embaralhar a situação são as chamadas armas nucleares táticas (de baixo rendimento): um âmbito não regulamentado pelos tratados, na qual a Rússia possui números significativos. A revisão da postura nuclear de Trump em 2018 teve como objetivo expandir as opções nucleares flexíveis, de modo a manter uma dissuasão confiável também “contra as agressões regionais”.
Em suma, a execrada guerra nuclear pode ser travada. Se a chegada de Obama à Casa Branca não reverteu o curso de George W. Bush, a de Biden não colocou o legado de Trump fora de jogo.
A ordem nuclear internacional é abalada desde o momento em que o regime russo, em 2022, começou a falar de “consequências sem precedentes para o Ocidente”, ameaçando a resposta atômica. O recente acordo entre Moscou e Pyongyang com o fornecimento maciço de munições norte-coreanas para os russos no front ucraniano levantou suspeitas sobre a contrapartida recebida por Kim Jong-un. Além disso, ao atacar as infraestruturas ucranianas, os russos mostraram seu poder de fogo: mísseis hipersônicos e planadores que, se equipados com uma ogiva atômica, tornam a dissuasão e a defesa ainda mais difíceis. O crescente nível de rivalidade que caracteriza o uso do espaço, com ansiosos protagonismos de atores privados como Elon Musk (que se declarou “pronto para servir” em um governo Trump) e testes com armas antissatélite, levanta temores sobre a militarização fora da atmosfera: falar de satélites significa mexer na dissuasão nuclear. Enquanto os submarinos nucleares russos se dirigiam a Vladivostok para um exercício no Pacífico, o Financial Times revelava arquivos secretos que mostravam como, mesmo antes da invasão da Ucrânia, Moscou estava treinando sua frota no cenário de ataques com mísseis nucleares em locais na Europa Ocidental. O roteiro não causa surpresa. Como já foi visto em Zaporzhzhia, no período que antecedeu a visita a Kursk do diretor da AIEA, Raphael Grossi, o Kremlin acusou os ucranianos de terem como alvo a central nuclear russa.
Na realidade, o cenário inédito é aquele em que se vê desde 6 de agosto um exército conduzir uma ofensiva no território de uma superpotência nuclear, e a superpotência se esforça em gerir estrategicamente a comunicação: Moscou passou de avisos para não cruzar a linha vermelha a ameaças à OTAN, para depois descartar tudo como eventos desprovidos de significado.
Mais do que o front russo-ucraniano, é a conformação dos possíveis campos de batalha do Pacífico, sulcado por navios de combate e pontilhados de bases aéreas localizadas em pequenas ilhas, que parece se prestar melhor a cenários de “guerra nuclear travada” com bombas atômicas de baixa potência. Aqui, um número menor de detonações longe das grandes cidades corre o risco de poder ser visto como tendo um maior impacto militar, sem necessariamente se traduzir em uma escalada nuclear generalizada.
Se a China amplia sua frota e capacidades nucleares, o Paquistão, seu parceiro atômico, não deixa de exibir sua capacidade, ligada à doutrina do first use e full-spectrum deterrence. A Índia de Modi - que acaba de fazer uma viagem sem precedentes a Kiev - por enquanto não dá sinais de mexer em sua própria doutrina nuclear, ancorada no princípio da credibilidade mínima, que nem sequer menciona a questão do uso de armas atômicas táticas.
Enquanto isso, um ministro israelense declara que Gaza deve ser arrasada com a bomba atômica, e a elite do regime iraniano, agora a um passo da bomba nuclear, parece ter aberto o debate sobre a superação da fatwa do aiatolá Khamenei, que reivindica o direito iraniano de operar a energia nuclear, limitando-a ao uso civil.
Os Estados Unidos mantêm uma postura nuclear agressiva, centrada no first-use e apoiada na superioridade nuclear da OTAN, graças também às suas bases na Europa. As relações transatlânticas, no entanto, tornam-se objeto de debate no momento em que é necessário considerar a possibilidade de um retorno de Trump à Casa Branca: a cobertura do guarda-chuva nuclear não pode ser dada como garantida.
É necessário observar como a desescalada atômica nascida com o fim da Guerra Fria seja hoje uma lembrança do passado. Estamos no início de uma era atômica, e é possível que o fulcro se desloque da Europa para a região do Indo-Pacífico. Os desenvolvimentos tecnológicos e a multiplicação dos atores complicam a dissuasão, preanunciando um mundo mais perigoso, no qual os arsenais se expandem em meio a incertezas e temores facilmente manejáveis. Um mundo no qual é necessário mais que nunca se questionar sobre a realidade e suas inversões instrumentais.
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Bem-vindos à nova era nuclear. Artigo de Francesco Strazzari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU