17 Novembro 2023
"O fim da Guerra Fria reabilitou a guerra. A ideia de guerra que sempre havia determinado as relações internacionais foi recuperada pelos Estados Unidos, que a transformaram em modelo para aquela contra o Iraque.
A tragédia de Gaza e a tartamudez da esquerda. Um tema incômodo. Discutimos sobre isso com Raniero La Valle, escritor, ensaísta, político.
A entrevista é de Umberto De Giovannangeli, publicada por L'Unità, 16-11-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nos últimos dias, L'Unità escreveu, comentando a manifestação do PD em Roma: “Ouvir os discursos na Piazza del Popolo durante cerca de duas horas, nos quais foram abordadas questões muito sérias, que conheço bem, mas sem sequer mencionar a guerra e o genocídio de povo da Palestina, doeu”. Por que essa subestimação, por que essa tartamudez da esquerda?
Não sei porque a atenção, o comprometimento, o envolvimento daqueles que hoje são considerados ou se passam por partidos de esquerda, seja menos forte e consciente do que era no passado. Eu só sei uma coisa...
Qual?
Que no passado o tema da paz, da relação entre as potências, da ordem do mundo era uma grande motivação da política e das escolhas da esquerda, em particular do PCI. A paz, uma visão do mundo e das relações internacionais, não só tinham um papel central na proposta política e também eleitoral do Partido Comunista, mas também tinham uma grande resposta eleitoral. Havia muitas pessoas que, sem aderir à perspectiva geral e global do comunismo, do socialismo, da superação do capitalismo, coisas mais específicas para cada um e talvez mais importantes em relação à paz e às relações internacionais, entre os povos e não apenas entre os Estados, orientava o seu voto, as suas escolhas para os partidos de esquerda para além das opções ideológicas ou políticas.
A própria esquerda independente, que foi a experiência política que também tivemos com muitos católicos, valdenses, democratas não crentes, baseava-se em grande parte na convergência, no compartilhamento das questões da política externa. E dessa consideração decorre a verdadeira pergunta...
Que seria?
O que estava em jogo então? Por que isso suscitava um envolvimento que hoje não existe?
Suas respostas?
No fundo havia duas grandes questões. A primeira era o perigo de uma guerra mundial nuclear.
Há poucos anos tínhamos saído da experiência aterradora da Segunda Guerra Mundial, à qual se acrescentou o massacre das bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki. O espectro de um novo conflito mundial, até mesmo nuclear, era algo que determinava não apenas os comportamentos das opiniões públicas, mas também dos governos. Era um período em que por definição não se devia fazer guerra. Também as grandes potências estavam todas dentro dessa cultura, segundo a qual se devia evitar a guerra, mesmo que não fosse por razões éticas ou humanitárias, mas havia essa ideia que a guerra não devia ser feita. O envolvimento da opinião pública era nesse sentido: a guerra não devia ser feita. E isso já era motivo para um empenho em relação à política externa.
E o segundo motivo?
Era que naquele momento, dentro desse grande problema geral da guerra mundial, havia um mundo em ebulição. Havia muitos países, muitos povos que estavam em processo de libertação, que lutavam heroicamente para alcançar esse objetivo, para realizar esse sonho. Havia um impulso muito forte de solidariedade, de envolvimento, de participação às lutas desses povos.
Qual era, aqui está outra questão crucial, a razão pela qual na Itália havia essa forma de coparticipação política com os partidos de esquerda, em particular com o PCI. Eu explicaria assim a razão. Porque o que vigorava em Itália era, de alguma forma, a obediência ao alinhamento Atlântico, à aliança com os Estados Unidos, que tinha suas razões políticas, mas não podia determinar quaisquer comportamentos. E então a questão da possibilidade de uma escolha diferente, de uma alternativa, de um apoio às lutas dos movimentos de libertação mesmo contra os antigos imperialismos, era algo que levava a uma escolha de esquerda.
Ali estava o grande catalisador da Guerra do Vietnã. Uma guerra que apareceu como uma prepotência, uma prevaricação dos Estados Unidos contra um povo do qual eram reconhecidos a dignidade e valor de sua luta de libertação, o direito à autodeterminação mesmo fora da área das grandes potências.
O apoio espontâneo a essa luta era muito forte.
E depois o que aconteceu?
Aconteceu que com o fim da Guerra Fria e os bloqueios, aquela guerra que havia sido exorcizada por todos, incluindo as grandes potências, e considerada proscrita, foi ao contrário rapidamente reabilitada, e foi recuperada. A ideia de guerra que sempre havia determinado as relações internacionais, que para aquelas décadas havia sido - digamos - congelada, é rapidamente restaurada e recuperada em especial pelos Estados Unidos, que a transformaram no modelo para a guerra contra o Iraque, a guerra de Golfo, a chamada guerra humanitária, pela democracia.
Houve essa reabilitação da guerra. E desde então recomeçaram as guerras convencionais que anteriormente também eram consideradas não possíveis dentro daquela situação geral de contraste entre bloqueios e risco de guerra atômica.
Essa reabilitação da guerra tornou-se opinião comum. É tranquilamente aceito que se trave uma guerra após a outra, e mesmo aquelas que haviam sido lutas de libertação são hoje abandonadas.
Por exemplo?
O exemplo mais atual e dramático. A Palestina. Mesmo dentro do alinhamento Atlântico da Itália, tinha sido um tema importante de uma autonomia da política externa italiana. Lembro Andreotti, a DC, para não ficar apenas dentro dos partidos de esquerda. Mesmo dentro de uma solidariedade para com Israel, havia essa aspiração a uma solução para o problema palestino nos termos de uma realização da sua autonomia, de sua liberdade e de sua condição de Estado. Hoje tudo isso parece terminado. Triste, mas verdadeiro. Infelizmente.
Para ficar na tragédia de Gaza. Lembro-me de uma declaração muito forte de um grande intelectual palestino falecido, Edward Said: “A tragédia de nós, palestinos, é ser vítimas das vítimas”. Até que o comportamento de Israel for por todos de alguma forma avalizado apenas em virtude da memória do Holocausto, isso provoca um congelamento do juízo político, determina uma impossibilidade de fazer uma escolha que possa ser produtiva de consequências positivas na vida internacional.
O problema de superar o condicionamento absoluto que produz a memória do Holocausto, daquele enorme genocídio, vale não somente para as opiniões públicas, que se sentem obrigadas a demonstrar continuamente a sua solidariedade para com o povo judeu sobrevivente dos campos de extermínio, mas é algo que perturba o próprio pensamento judaico, de muitos intelectuais, filósofos, escritores, historiadores, rabinos, representantes de autoridade do mundo judaico e até mesmo de Israel.
Para ficar na Itália, pensemos, por exemplo, na posição de Bruno Segre: não podemos ficar escravos da memória do Holocausto.
Essa memória, era a sua mensagem, só é produtiva e útil se nos exortar a criar um mundo diferente, um mundo onde as vítimas de ontem não se tornem os algozes de hoje, não se alimentem com dor das vítimas de hoje. Mas no sentido em que se garante que ninguém tenha que ser vítima.
Há um artigo excelente publicado no Haaretz por um grande intelectual, filósofo israelense, Yehuda Elkana, onde ele diz: há duas atitudes na sociedade israelense em relação ao Holocausto, uma é daqueles que dizem que isso nunca mais deve acontecer. E outros que dizem que isso nunca mais deve nos acontecer. Ele diz que está com os primeiros e acredito a segunda posição é uma posição que nos leva à catástrofe. Acredito que há aqui muita leitura justa e esclarecida sobre a situação de Israel hoje, que depois produz as catástrofes. Quando se pensa apenas ao fato de que só se deve preservar a si mesmos da catástrofe e não aos outros também, isso leva a um rompimento da relação pacífica e do reconhecimento dos direitos alheios.
Muito se banalizou na tentativa de diversos expoentes do mundo da cultura, antes mesmo que da política, para dar vida, para as próximas eleições europeias, a uma lista pela paz, que vê você envolvido.
O problema é conseguir influir sobre a identidade e sobre as escolhas políticas da Europa. O verdadeiro problema não é tanto quem representa cada país no Parlamento, mas se se consegue imprimir uma direção diferente para a subjetividade, para a consciência de si, para o papel que a Europa deve ter no mundo.
Se hoje existe a necessidade de construir um ordenamento mundial que não seja fundado num sistema de guerra, mas num sistema de paz, a Europa deve ter um papel, uma subjetividade no plano internacional para trazer seus aliados, mas também seus adversários, para posições em condições de construir uma verdadeira ordem mundial pacífica. É disso que se trata.
Hoje existem duas concepções opostas: uma é aquela que está escrita em todos os documentos oficiais da estratégia estadunidense, segundo a qual o mundo é um lugar de competição global, em que alguém tem que vencer os outros e naturalmente os Estados Unidos se apresentam como aqueles que devem vencer esse jogo e para isso acumulam armamentos, têm o orçamento de despesas militares maior do que qualquer outro país do mundo.
E há outra ideia, segundo a qual não é de todo certo que a pluralidade dos estados ou potências deva manifestar-se unicamente através de uma luta de uns contra os outros pela prevalência de um ou do outro, pela que poderia ser uma hegemonia, mas que depois, de fato, se torna uma forma de domínio imperial. Não está escrito em lugar nenhum que tenha que ser assim. A ordem fundada na competição, na busca pela criação de um império único, é uma ordem mortal que leva necessariamente à guerra. Enquanto uma ordem pluralista e multilateral que reconhece a variedade de culturas, tradições, sistemas jurídicos, é a única ordem possível para um mundo integrado e tecnológico como aquele de hoje.
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“A guerra foi reabilitada, rapidamente restaurada e recuperada, em especial pelos Estados Unidos, tornando-a opinião comum”. Entrevista com Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU