22 Novembro 2023
"O trabalho: mesmo que por razões puramente econômicas não se pode viver sem ele, mas, quando se trabalha, muitas vezes acontece de se sentir no lugar errado, de experimentar a sensação desagradável de não ser nada mais do que uma ferramenta, um limão que outros espremem, em algumas circunstâncias até um escravo preso à corrente. Hoje o fenômeno da chamada “Great Resignaton” ou “Grande Renúncia” atesta exatamente esse mal-estar: se trabalha porque não pode viver sem ele, mas assim que for possível, se pede demissão do emprego para voltar a ser novamente senhor de si mesmo. Para fazer o quê?", escreve o teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Universidade San Raffaele de Milão e da Universidade de Pádua, em artigo publicado por La Stampa, 14-11-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Não há época, temporada ou mesmo apenas momento da aventura humana que, ao despertar para a consciência e a honestidade intelectual (a forma mais preciosa de honestidade, da qual procedem todas as outras), não tenha experimentado a amarga experiência de estar preso numa armadilha. Mitologias, religiões e filosofias dão amplos relatos disso. Os âmbitos vitais, precisamente porque dão vida e resultam indispensáveis, ligam a si e, portanto, prendem à armadilha. Ao mesmo tempo que dão vida, tiram a liberdade. Você não pode viver sem isso, e eles aprisionam dentro de si.
Podemos viver sem amor? A resposta é obviamente não, mas apaixonar-se e amar são muitas vezes uma preocupação, um tormento, um pesadelo do qual não se consegue se libertar. Ovídio mostra isso com Corina e toda a literatura universal que atesta a assonância, tanto existencial quanto linguística, do binômio amor-dor.
Shakespeare coloca estas palavras na boca de Romeu ao sentir seu amor por Julieta explodir: “Dá meia-volta, pesada argila, e o centro teu procura”. A centralização mais entusiasmante, mas ao mesmo tempo a descentralização mais enfraquecedora, a alegria mais íntima, mas ao mesmo tempo o sofrimento mais penetrante, a generosidade sem limites, mas ao mesmo tempo tanto ódio igualmente ilimitado, vêm justamente daquele sentimento incontestável que chamamos de amor.
Podemos viver sem a família, a de origem, ou aquela que formamos, ou aquela que gostaríamos de formar, mesmo que às vezes de forma diferente da tradicional? Não, há uma tensão irreprimível para a vida junto com os outros seres humanos.
Mas quanto aprisionamento advém da convivência dos seres humanos entre si: para os filhos, em primeiro lugar, cujo crescimento se realiza como um caminho progressivo de autonomia que poderia ser chamado de guerra da independência; depois para os pais, cujo aprisionamento é ainda maior, dado que se encontram, por um lado, numa situação inevitavelmente ligada aos seus filhos e, por outro, ainda cada vez mais ligados a seus pais idosos carentes de ajuda, presos em uma pinça perfeitamente firme. E aquele anel no dedo? Quem nunca o experimentou às vezes como uma bola de ferro acorrentada ao pé, sentindo-se igual aos condenados de antigamente a quem era impedido se movimentar com uma bola de chumbo no tornozelo? Assim nos encontramos, querendo ou não (mas na maioria das vezes involuntariamente), criando uma armadilha uns para os outros: percebendo o marido, a esposa, os filhos, a mãe, o pai, quaisquer outros parentes, até mesmo os amados animais de estimação, como um cativeiro.
Sem considerar que as armadilhas exteriores e ainda mais interiores que vêm da família são tão enraizadas em nós que passamos a vida dentro delas mesmo quando a família não existe mais, ou há outra.
Não sabemos onde estão, mas sentimos persistentemente a dor que provém dos mecanismos que as desencadeiam regularmente.
E o conhecimento? Não há dúvidas de que é o instrumento de libertação mais eficaz, mas é igualmente verdade que pode facilmente transformar-se numa das correntes mais pesadas. Que o conhecimento liberta seja totalmente intuitivo, cada um vê por si como a educação e o conhecimento dissipam a névoa da ignorância que impede de nomear a realidade pelo que é e que nos deixa à mercê de pensamentos alheios. Quando se sabe e se está em condições de expressar o que se sabe, se está de posse da arma principal para defender a própria autonomia. Querendo o melhor para seus garotos e vendo a ignorância a que estariam destinados por crescerem sem educação no campo do pós-guerra, Dom Milani, muito mais do que na igreja, decidiu levá-los para a aula todos os dias e fundou a escola de Barbiana.
Precisamente por seu poder cognitivo, porém, o conhecimento pode gerar naqueles que o possuem uma atitude de soberba e de fechamento, que é uma das piores armadilhas da mente. Há pessoas que acreditando que sabem tudo, não ouvem autenticamente mais nada nem ninguém, exceto o suficiente para criticar e refutar o interlocutor e assim exibir vitoriosamente o seu poder intelectual.
Sem perceber estar à mercê da ignorância, com o conhecimento se corre grande risco da arrogância.
O trabalho: mesmo que por razões puramente econômicas não se pode viver sem ele, mas, quando se trabalha, muitas vezes acontece de se sentir no lugar errado, de experimentar a sensação desagradável de não ser nada mais do que uma ferramenta, um limão que outros espremem, em algumas circunstâncias até um escravo preso à corrente. Hoje o fenômeno da chamada “Great Resignaton” ou “Grande Renúncia” atesta exatamente esse mal-estar: se trabalha porque não pode viver sem ele, mas assim que for possível, se pede demissão do emprego para voltar a ser novamente senhor de si mesmo. Para fazer o quê? Na verdade, se não houver um trabalho pelo qual construir algo na vida, mesmo independente da retribuição (porque, caso seja possível, também se pode trabalhar por puro espírito de voluntariado), falta algo essencial na vida. Aliás, acredito que uma das maiores sortes consiste justamente em encontrar um ofício que seja uma grande paixão que nos faça trabalhar intensamente.
Se, de fato, trabalhar cansa, também é verdade que o cansaço resultante do realizar o trabalho que se ama é belíssimo, satisfatório, certamente muito melhor do que o tédio da ausência de atividade. É possível continuar assim para todos os âmbitos vitais: paixão política, paixão esportiva, jogos, vontade de viajar, amigos, religião. Tudo o que realmente preenche a nossa vida é, ao mesmo tempo, causa de prisão porque limita, e às vezes tira, a liberdade. Resulta que de cada pessoa ou experiência ou âmbito realmente importante, somos obrigados a declarar sempre de novo: Nec sine, nec tecum, vivere possum. Para afrouxar as garras da armadilha e começar a vislumbrar o itinerário de libertação, e talvez o percorrer com alguns pequenos passos, nos espera hoje uma tarefa diferente, em muitos aspectos oposta, comparada ao empreendido pela modernidade: a modernidade teve que superar Deus para afirmar o Ego, hoje a nossa tarefa consiste em superar o Ego para voltar a afirmar Deus. Ou, em outras palavras: o Divino, o Indisponível, o Absoluto, o Gratuito, o Incognoscível, o Apofático, o Sagrado, o Solene, Mistério, o Silêncio. É a única maneira de sair, pelo menos com a mente e com o coração, da armadilha.
Já em 1966 Martin Heidegger, na famosa entrevista ao semanário alemão Der Spiegel publicada após a sua morte conforme acordado, dez anos depois, tinha declarado: “Só um Deus nos pode salvar ainda”. Do que o filósofo buscava a salvação? Da técnica. Para ele, de fato, a técnica na sua essência “é algo que o homem por si só não é capaz de dominar", mas da qual é dominado: "A técnica arranca e desenraiza o homem cada vez mais da Terra. Tudo o que resta são problemas de pura técnica”. Com esta consequência: “Já não é mais na Terra que o homem vive”. Palavras que hoje, com as mentes cada vez mais presas nas infinitas conexões da rede e cada vez mais distantes do mundo real, e com a Terra cada vez mais antropizada e devastada, não se apresentam mais como um juízo filosófico, mas como a evidente constatação de um fato. Os redatores do semanário alemão perguntaram depois o que o indivíduo e a filosofia poderiam fazer para se opor a essa situação de armadilha, recebendo a seguinte resposta: “Se eu puder responder brevemente e talvez um pouco grosseiramente, mas em qualquer caso com base numa longa meditação sobre o problema: a filosofia não pode realizar imediatamente uma mudança no atual estado do mundo. E isso vale não somente para a filosofia, mas para todos os sentimentos e aspirações humanas. Só um Deus pode nos salvar ainda”. Então o que podemos fazer? Eis a resposta de Heidegger: “A única possibilidade que nos resta é prepararmo-nos, pelo pensar e poetar, para a aparição de um deus ou sua ausência no ocaso”.
A única possibilidade de sair da armadilha, diz Heidegger, é nos tornarmos disponíveis, através do pensar e do poetar, à aparição na nossa existência daquilo que um pouco mais adiante ele chama de "o outro pensamento", e ao qual tradicionalmente nos referimos usando a palavra Deus, ou também divino. Essa aparição pode também não acontecer, mas não é decisiva: se esperada, liberta o Ego do seu delírio de onipotência e amplia e limpa o seu olhar.
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Libertemo-nos do Deus do ego. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU