27 Outubro 2023
"As hostes de Javier Milei sabem que suas chances dependem de sua capacidade de aprofundar a deterioração da governabilidade e, assim, convencer metade mais um da necessidade de mudança, mesmo que doa. A arma fundamental para esta nova etapa da campanha poderá ser Mauricio Macri, que poderia convencer um segmento importante do establishment de que a doença é pior do que o remédio. Não se deve excluir o apelo à violência para criar um cenário caótico", escreve o Coletivo Editorial Crisis, grupo de participantes responsável pelas edições da revista Crisis, em artigo publicado por A Terra é Redonda, 24-10-2023. A tradução é de Fernando Lima das Neves.
Em termos políticos, a Argentina é uma verdadeira caixinha de surpresas. E, quando está em crise, parece uma montanha russa daquelas que dão vertigem. Os resultados das eleições gerais de domingo deixaram, mais uma vez, as pessoas perplexas, tanto locais como estrangeiros. Começando por nós mesmos, que não o esperávamos. E significaram uma reviravolta em relação às primárias de agosto. Uma mudança de tendência, amplamente positiva. Um poderoso suspiro de alívio democrático. Um acontecimento cheio de significados que temos que compreender.
A mensagem mais importante das urnas é a estagnação do desempenho eleitoral de Javier Milei. A onda libertária parou de repente. E isto ocorreu apesar da aceleração da crise social ter oferecido um terreno fértil para um crescimento exponencial.
O segundo fato que ninguém previu foi o despertar do gigante peronista, pela enésima vez. Desta vez, conseguiu o milagre de deixar em segundo plano as dificuldades econômicas da maioria, para dar a vitória ao ministro-candidato Sergio Massa. E garantir ao governador da Província de Buenos Aires, Axel Kicillof, uma reeleição confortável.
A terceira conclusão era previsível, mas não deixa de ser impactante por sua contundência: o fracasso da coalizão macrista, incapaz de ler os deslocamentos dos conflitos atuais, que podem provocar sua desagregação.
Mas para compreender as razões desta notável alteração do campo de batalha, talvez não se deva olhar apenas para as prateleiras das ofertas eleitorais. Talvez seja conveniente focar, de antemão, no que poderia ter sido um movimento tectônico na subjetividade popular.
A primeira interpretação, que procede dos meios de comunicação, garante que o medo venceu a vontade de mudança. Poderíamos ir um pouco mais longe e arriscar a hipótese de ter sido ativado um sentimento ancestral de autopreservação coletiva. Ninguém ignora que o presente é calamitoso, mas parece ainda haver sabedoria suficiente para evitar a catástrofe. Não é pouco, neste mundo cruel, reafirmar a fé num axioma fundamental da política democrática, em sua acepção mais plebeia: o povo nunca se engana.
Há muitas razões para passar diretamente da celebração à vigília. A primeira e mais urgente: em 19 de novembro há segundo turno e nada ainda está definido. Acabou a eleição dos terços, em que a questão fundamental era manter um piso elevado. Agora vem a final, na qual ganha aquele que conseguir ultrapassar o teto. Neste contexto, a soma dos votos da direita (Milei + Bullrich) ultrapassa os 50%. E o oficialismo precisa aumentar pelo menos 13 pontos se pretende seguir governando.
Serão quatro semanas de guerra aberta para ver quem consegue desestabilizar o rival. O novo ídolo peronista é um profissional do ramo, ostenta uma vontade desenfreada de poder e está a um passo de coroar sua ziguezagueante carreira política, pelo que utilizará toda sua artilharia sem cerimônia. Além disso, dispõe de uma fonte inesgotável de recursos, não só porque detém o aparato estatal, mas também porque conta com o apoio do núcleo duro do poder econômico local. E conta até com sólidos apoios no cenário internacional, como os governos do Brasil e dos Estados Unidos.
É um instrumental considerável para persuadir ou, caso isso não seja possível, chantagear os terceiros em disputa, a começar pelo cordobesismo de Juan Schiaretti (6,78%), passando pelas pombas de Juntos por el Cambio (e também alguns falcões). A pressão pode perfurar até mesmo La Libertad Avanza e provocar rupturas nas fileiras inimigas. Alguns apoiadores do ministro da economia já insinuam a possibilidade do candidato libertário emular seu admirado Carlos Saúl Menem e renunciar ao segundo turno.
As hostes de Javier Milei sabem que suas chances dependem de sua capacidade de aprofundar a deterioração da governabilidade e, assim, convencer metade mais um da necessidade de mudança, mesmo que doa. A arma fundamental para esta nova etapa da campanha poderá ser Mauricio Macri, que poderia convencer um segmento importante do establishment de que a doença é pior do que o remédio. Não se deve excluir o apelo à violência para criar um cenário caótico.
Para além desta disputa que veremos se desenrolar no submundo da política, as cartas retóricas para convencer os eleitores já estão lançadas: a proposta de um governo de unidade nacional, contra a tentativa de reunir a oposição em torno dos slogans do antikirchnerismo visceral.
O resultado de domingo poderia muito bem ser lido como o questionamento de uma afirmação que parecia ter se tornado uma obviedade: “a sociedade tornou-se de direita”. Apesar do imenso e justificado mal-estar com um progressismo que não conseguiu resolver os problemas – inclusive os agravou –, os cidadãos impediram que esse descontentamento fosse manipulado para destruir conquistas históricas de forte conteúdo democrático e popular.
De imediato, Javier Milei foi privado da aura de presidente inevitável que lhe concedia o poder de destruir a moeda argentina e preparar o terreno para uma terapia de choque. E, em sua primeira declaração sobre o resultado, o libertário foi obrigado a dizer que não pretendia anular direitos. Mesmo que essa promessa seja muito improvável.
No entanto, o que de fato se deslocou ostensivamente para a direita foi o sistema político. Basta ver a entrada massiva de figuras de extrema direita no Congresso Nacional. Mas há mais: para os que acreditamos que a democracia só poderá se consolidar com transformações profundas da atual estrutura de poder, não é conveniente iludir-se com uma eventual presidência de Sergio Massa, que representa o setor mais conservador do peronismo. Contudo, a vitória categórica de Axel Kicillof na província estratégica de Buenos Aires constitui um contrapeso promissor que dinamiza a situação e reabre o horizonte para novas composições de uma justiça social que já não pode ser sacrificada nos altares do possibilismo e da mediocridade.
Os resultados de 22 de outubro foram um respiro, quando tudo parecia indicar que a angústia nos conduziria. Esperemos que sirva para recuperar o tempo perdido e trazer de volta ao centro essas reservas democráticas que permanecem latentes no coração de uma comunidade sobrecarregada.
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Eleições na Argentina. Artigo de Coletivo Editorial Crisis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU