"Complexo e incompleto, provisório e imperfeito, o ser humano é feito de razão e emoção, de cálculo e sonho. A imagem de Jesus, para corresponder ao que somos, no mais íntimo de nosso ser, tem de corresponder a essa bipolaridade. Jesus só pode ser histórico e mitológico ao mesmo tempo."
O artigo é de Eduardo Hoornaert, historiador, ex-professor e membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA).
O termo grego ‘muthos’ (mito) significa ‘narrativa, história contada’. Quando afirmamos que os evangelhos são de caráter narrativo, dizemos, em outras palavras, que eles são ‘mitológicos’. Pois a narração não é um relato frio de algum evento, mas vai carregada da emoção do momento e tem uma intencionalidade própria. O Jesus ‘das narrativas’ (ou ‘do mito’) é diferente do ‘Jesus histórico’, pois, enquanto esse último é resultado de uma investigação que siga regras ‘heurísticas’ próprias da historiografia, o primeiro se baseia em sólidos fundamentos antropológicos.
Com isso, fica claro que, neste texto, distingo entre uma aproximação mitológica e uma aproximação historiográfica da figura de Jesus. Como nos ensina o velho mestre Tomás de Aquino, distinguir traz clareza. Não para separar, mas para entender melhor as coisas. Destrinchar não é criar oposição. Sabemos, por exemplo, que termos como ‘mitologia’ e ‘mitológico’ costumam soar pejorativamente. Mas faço questão de dizer, logo de início, que não é num sentido negativo que os utilizo aqui, como fica claro em seguida.
Confesso que eu precisei de tempo para perceber que uma postura exclusiva, tanto ‘histórica’ quanto ‘mitológica’, resulta sendo redutiva e, afinal, impraticável. Há tantos elementos, no enfoque mitológico, que levam à espiritualidade, tantos pontos que suscitam reflexão teológica, tantas oportunidades de uma profissão de fé atualizada, que eu não tenho condições de me apresentar, fria e tecnicamente, como ‘historiador objetivo’. De outro lado, estou convencido que um enfoque histórico coloca Jesus ‘com os pés no chão’ e desmancha qualquer tentativa fundamentalista de sua figura.
Uma narração não costuma ser um relato frio de acontecimentos, mas carrega consigo emoções vividas no momento de sua enunciação, além de uma intencionalidade própria. Assim, as primeiras narrativas acerca de Jesus, além de carregar marcas indeléveis de um rico imaginário semita, expressam, ao seu modo, emoções vividas por seus discípulos nos primeiros anos do movimento, assim como a vontade de não deixar morrer a memória de Jesus.
Esses discípulos, nos primeiros anos após a morte cruel de Jesus, enfrentam condições extremamente duras: incompreensões por todo canto, tanto por parte das autoridades quando por parte da população em geral; perseguições e hostilizações; até condenações à morte, como é o caso de Estêvão no capítulo sete dos Atos dos Apóstolos. O movimento de Jesus vive com uma ameaça constante: a iminência de varrido do mapa por intervenções por parte das autoridades, com a conivência da população majoritária, como acontece com não poucos movimentos populares da época, como nos lembra R. A. Horsley em seu livro Bandidos, profetas e messias: movimentos populares no Tempo de Jesus (Paulus, 1995).
Mas os seguidores de Jesus não desistem. Eles compartilham a mesma convicção: ‘essa memória não se pode perder’. Todos estão convencidos da necessidade de guardar e difundir a memória do profeta Jesus de Nazaré. Eis a base de uma tradição extremamente resistente, penetrante e inovadora, que se espalha rapidamente pela Galileia e alcança, em poucos anos, a Síria, a Macedônia e a Ásia Menor, até penetrar nos três centros urbanos mais importantes do Império Romano: Antioquia, na Síria, Alexandria, no Egito, e Roma, na Itália.
Veiculada, nos primeiros quarenta anos, por agentes anônimos e, a partir dos anos 70, por evangelistas e redatores de Atos, Cartas e Apocalipses, essa primeira ‘apresentação’ de Jesus trabalha basicamente com dados mitológicos, ou seja, com narrativas transmitidas. Eles não são ‘historiadores’.
Na realidade, os evangelistas demonstram pouco interesse em descrever como foi mesmo a vida concreta de Jesus. Seu interesse é outro: impulsionados por ondas crescentes de uma tradição que se cria a partir da horrível morte do líder de Nazaré, e que já se consolida ao longo de 40 a 50 anos (40 anos no caso de Marcos, pelo menos 50 anos no caso de Mateus e Lucas), seu interesse consiste em apresentar um Jesus que anime e sustente a fé dos discípulos e das discípulas em meio à hostilidade, incompreensão, desprezo e mesmo perseguição aberta (com perigo de vida), por parte das autoridades e também da sociedade. Daí a luminosa auréola, que passa a envolver a figura de Jesus e o distingue do comum dos mortais. Ele não só expulsa sopros maus, cura leprosos, socorre necessitados, mas vira - com o tempo - uma figura excepcional: anda sobre as águas, acalma tempestades, multiplica pães. Torna-se um novo Elias, o grande profeta da memória popular judaica, que multiplica pão para a viúva de Sarepta, lança seu manto sobre as águas e as separa, ressuscita mortos. Torna-se um novo Moisés, libertador do povo hebreu escravizado no Egito.
Esse Jesus, fazedor de milagres e feitos impressionantes, sustenta a fé dos primeiros seguidores. Combatidas, desprezadas e mal interpretadas, as comunidades de discípulos e discípulas visam, antes de tudo, manter e avivar a imagem de um Jesus que, ressuscitado e divino, demonstra a mais tenaz resiliência, a mais viva resistência, a mais forte persuasão. E eles têm sucesso. Pois, enquanto diversos movimentos proféticos e messiânicos da época sucumbem aos golpes da perseguição, isso não acontece com o movimento de Jesus. Os discípulos e demais seguidores sabem descobrir algo diferente em seu líder, algo que o destaque. Para tanto, eles abandonam a memória histórica em benefício de uma imaginação mitológica, em grande parte fundamentada em textos das Escrituras Sagradas do judaísmo.
Determinados setores do movimento, já na primeira geração, passam a demonstrar mais interesse no Senhor ressuscitado que em Jesus histórico e isso repercute nos quatro evangelhos, que são pensados e programados no contexto da fé no ‘Cristo’ (denominação criada por Paulo no início dos anos 50). Empreende-se um trabalho intenso de releitura de tradições bíblicas milenares em função da figura de Cristo. Gente letrada, ao se juntar ao movimento de Jesus, procura em textos bíblicos, principalmente salmos e profecias, provérbios, sabedorias e histórias, sinais e previsões da figura de Cristo. O evangelista Marcos, por exemplo, encontra a figura de Jesus em textos do profeta Daniel, do século V aC (como comento adiante). Ele enxerga em Jesus um ‘novo Elias’. Vira costume, entre os evangelistas, apresentar os sofrimentos de Jesus à luz de textos do profeta Isaías e daí nascem os impressionantes textos da Paixão. Enfim, já nos primeiros decênios após sua morte, a figura de Jesus é submetida a uma releitura bíblica, num trabalho paciente e insistente, que conseguimos detectar em diversos pontos do primeiro universo cristão: Antioquia da Síria, Macedônia, cidades ribeirinhas da Ásia Menor, Alexandria, Roma. O movimento resulta numa imagem multifacetada de Jesus, posteriormente absorvida numa tradição multissecular.
O que acabo de descrever só é uma parte da primeira tradição. Os quatro evangelhos canônicos, trabalhos de rememoração e titulação, não são nossas únicas referências. Na Alemanha, no decorrer do século XX, se ‘reconstruiu’ o famoso Evangelho Q (de ‘Quelle’, que significa ‘fonte’ em alemão), que já teria circulado por volta dos anos 50 (vinte anos antes do Evangelho de Marcos) e que apresenta 21 Ditos de Jesus. Com isso, o Evangelho de Marcos perde seu ‘status’ de primeira fonte histórica e passa a ser entendido como obra teológica e apologética. Efetivamente, o Evangelho de Jesus, que é Cristo e Filho de Deus (Mc 1, 1) repousa sobre escassa base propriamente histórica e muita consideração teológica. Jesus passa a ser apresentado como Cristo e Filho de Deus. A tendência, óbvia, é de defesa e encorajamento. Aliás, sabemos que Marcos, que provavelmente escreve em Roma e escreve para imigrantes judeus, nunca esteve na Palestina. Suas referências topográficas mostram que ele só conhece os lugares por informações indiretas.
O evangelho de Marcos é um fulgurante sucesso e marca toda a tradição ‘mitológica’ que vem em seguida. Dentro de quinze anos (entre 70 e 85), seu texto já se lê em Antioquia da Síria (onde, provavelmente, atuam Mateus e Lucas) e, no final do século, já alcança a Ásia Menor, onde inspira o escritor ‘místico’ do quarto evangelho, que passa por João apóstolo. Há de se ter em mente, sempre, que os evangelhos de Lucas e Mateus surgem na década de 80, enquanto o evangelho de João só aparece por volta do ano 100.
Para dizer a coisa de outro modo: história e mitologia são duas coisas complementares. Ao lado de um conhecimento histórico, baseado numa frequentemente penosa investigação de eventos passados, existe o conhecimento mitológico, que abre perspectivas que a história é incapaz de alcançar. A mitologia ‘bem pensada’ apresenta uma profundidade de espiritualidade e de vivência que nenhuma investigação historiográfica alcança. Ela abre a porta para uma compreensão profunda da vida humana.
Guardo uma antiga lição de meu professor de história: a boa historiografia é, antes de tudo, heurística. Trata-se, em primeiro lugar, de apresentar o passado ‘como realmente ocorreu’. Só depois, em segundo lugar, vem a interpretação. A boa heurística é fundamental.
Se, em meu livro Em busca de Jesus de Nazaré (Paulus, 2016), me limitei a descrições de tipo histórico e evitei considerações de tipo mitológico, é porque penso que isso ajuda a clarear as coisas. Por meio de um enfoque histórico, por exemplo, compreendemos que a experiência de Jesus e dos profetas de Israel não constitui a única revelação de Deus. Há múltiplas experiências, no tempo e no espaço, todas marcadas pela fragilidade, precariedade e possibilidade de erro, que caracteriza empreendimentos humanos. A experiência de Jesus na Galileia não escapa dessa precariedade, nem da possibilidade de erro. Assim, por exemplo, Jesus, pelo que consta no Evangelho de Marcos, pensou que a chegada do Reino de Deus vitorioso fosse iminente: Alguns que estão aqui não morrerão sem ter visto o Reino de Deus chegar com poder (Mc 9, 1). Paulo diz mais ou menos o mesmo: Nós, que ficamos vivos até a vinda do Senhor, não precederemos os mortos (1Ts 4, 15). Hoje, não pensamos mais o mesmo.
Desde Heródoto (485-425 aC), os céticos combatem a pretensão cognitiva do mito. Os grandes pensadores da modernidade, como Kant, Spinoza, Pascal e Shakespeare, são todos céticos. Todos reagem contra o predomínio do mito, em detrimento da lógica.
Mas, de outro lado, temos de reconhecer que esses pensadores modernos ressentem dificuldades em incorporar os potenciais valores do entusiasmo que costuma acompanhar uma narração, não valorizam o que se passa no coração do ouvinte. A razão é fria e calculista. Só lida com elementos do passado. Nessa perspectiva, podemos entender que o conhecimento mítico não é passível de avaliação com parâmetros da razão, já que, do contrário, ele se desfaz. Como diz Platão, Deus só pode ser conhecido pelo coração, ou seja, pelo conhecimento mitológico, não pela razão. Sabemos, por experiência própria, que nossos entusiasmos não são racionais, mas, sim, míticos. E eles são o que há de mais humano em nós.
Por fim, se, ao abordar o tema de Jesus de Nazaré, combinei mitologia e história em minha pesquisa, é porque ambas se completam, trazendo uma compreensão mais profunda e completa da figura de Jesus e de sua influência na história e na espiritualidade humanas. A abordagem histórica nos ajuda a entender os eventos e as circunstâncias concretas da vida de Jesus na Galileia e o contexto em que ele viveu, enquanto a abordagem mitológica nos ajuda a compreender as narrativas e o significado simbólico de Jesus como uma figura divina e espiritual.
Com a evolução do movimento cristão, os apelos a favor de uma apresentação equilibrada, entre o Jesus da história e o Jesus do mito, começam a aparecer. O primeiro sinal provém do pensador neoplatônico romano Porfírio (ca. 234 - ca. 304), que, em sua obra Contra os Cristãos, afirma que os evangelhos não correspondem fielmente à vida histórica de Jesus.
Mais importante é o que acontece dentro do próprio movimento cristão. O ‘Jesus-pés-no-chão’ tem seus defensores em Antioquia, na Síria, enquanto o ‘Jesus-elevado-ao-céu’ predomina em Alexandria, no Egito. Há controvérsias e elas são saudáveis, na medida em que estimulam uma reflexão mais profunda acerca de um personagem histórico que, como todo personagem que resiste ao tempo e vence a ação deletéria do esquecimento, toca em temas que interessam à humanidade como um todo, desse modo se torna ‘antropológico’ e resiste ao tempo.
Como entender isso? A antropologia ensina que o ser humano é bipolar: gosta de brincar (homo ludens), sonhar, dançar, cantar e rir; saboreia poesia e arte; é amigo, gratuito, sensível, entusiasmado. Ao mesmo tempo, esse mesmo ser humano é racional (homo sapiens): sabe que precisa trabalhar, planejar, pesquisar, executar, ser técnico, economizar, comercializar, praticar ciências; sabe que precisa ser sensato e sábio. Complexo e incompleto, provisório e imperfeito, o ser humano é feito de razão e emoção, de cálculo e sonho. A imagem de Jesus, para corresponder ao que somos, no mais íntimo de nosso ser, tem de corresponder a essa bipolaridade. Jesus só pode ser histórico e mitológico ao mesmo tempo.
A atual redescoberta de Jesus da história não implica, pois, em rejeição do Jesus do mito. Valorizar um relato histórico da vida de Jesus não implica em rejeitar o que escreve Paulo de Tarso quando, apenas 25 anos após a morte do líder, faz uma releitura global do evento Jesus e de seu significado a partir da imagem de Cristo (Messias, Ungido) ressuscitado. É verdade que, após Paulo, se acumulam as titulações de Jesus. Em diversos ambientes, ele se torna ‘Senhor’, ‘Salvador’, ‘Redentor’, ‘Libertador’, ‘Profeta’, ‘Rei’, ‘Filho unigênito de Deus’. Titulações que merecem passar pelo crivo de um pensamento crítico, capaz de ‘distinguir’. Não distinguir é confundir. Enquanto o Jesus da história apresenta lacunas e suscita dúvidas, o Jesus do mito (Jesus Cristo, Jesus Salvador, Jesus Profeta) tanto pode enriquecer e aprofundar nossa compreensão do significado de sua vida, quanto pode levar ao fundamentalismo.
A combinação entre história e mito não se sustenta sem uma continuada procura de equilíbrio. Uns, ao se limitar a uma visão exclusivamente histórica da figura de Jesus, se perdem na ‘incredulidade’; outros, ao desprezar a história em benefício do mito, se perdem no fundamentalismo. Há muita confusão. Repito: a vida humana é, ao mesmo tempo, prosa e poesia, realismo e sonho, elevação espiritual e espírito de observação. A história deprimente da morte terrível de Jesus se encontra com o glorioso mito de sua ressurreição. Um encontro feliz. Pois, enquanto a história da morte nos mantém com os pés firmes no chão da realidade, o mito da ressurreição nos introduz num prodigioso imaginário a fortalecer nossa esperança e nossa resistência.
A saudável e fértil controvérsia entre Antioquia ‘humanizante’ e Alexandria ‘divinizante’ é bruscamente interrompida por interferência de ‘think tanks’ do Império Romano, no século IV. A história é conhecida: trata-se da chamada ‘reviravolta constantiniana’, que os livros de história da igreja colocam em alto relevo. Os intelectuais do Império, ao verificar a extraordinária vitalidade que perpassa o movimento cristão, se perguntam: como aproveitar dessa energia para unificar um Império que é feito de tantos povos subjugados, tantas culturas de difícil manejo? Como o movimento cristão, que se destaca por sua capacidade de aglomeração (fraternidade), pode colaborar na política da unificação do império? Não há como unificar o movimento cristão e, desse modo, fazer dela um instrumento útil na política imperial? (Meyendorff, J., Imperial Unity and Christian Divisions (The Church 450- 680 A.D.), St. Vladimir 's Seminary Press, Crestwood, NY, 1989). Não há como formatar uma única igreja ‘católica’ (em grego: ‘ekklèsia kat’ holèn gèn’), uma igreja espalhada pela terra inteira? Não dá para ‘imperializar’ o movimento cristão?
Para tanto, o arianismo é uma pedra no sapato. Ário é um presbítero da igreja de Alexandria que, divergindo de muitos de seus colegas, segue, ao pé da letra, o Evangelho de João 14, 28, onde Jesus diz explicitamente: o Pai é maior que eu. Ário entende que essa declaração é contrária à imagem de um Jesus sentado à direita do Pai, amplamente divulgada em Alexandria. Ele é, por assim dizer, um antioqueno (Jesus humano) entre alexandrinos (Jesus divino). Acontece que o arianismo se espalha em vastas regiões do Norte, na Europa. Mas, aos olhos dos planejadores da política imperial, o movimento constitui um obstáculo. Um império não conhece fronteiras. Assim, os planos de unificação imperialista do universo romano se alinham aos anseios de uma unificação do movimento cristão, que habitam grande parte dos bispos. Em 325, os bispos são convidados à residência de verão do Imperador, situada em Niceia. Discutem a questão cristológica e acabam, por maioria, proclamando Jesus Filho de Deus, igual ao Pai, num confronto direto com o arianismo.
Quebra-se o equilíbrio. Surge uma cristologia divinizante, base da unificação do movimento cristão e da criação da igreja ‘católica’.
Cento e vinte seis anos depois, o Credo de Calcedônia (451) confirma Niceia e o dogma se torna definitivo. Mas, enquanto os teólogos falam, por longas gerações e com considerável acrobacia, em duas naturezas numa única pessoa, a realidade nua e crua é que, para a imensa maioria dos fiéis, Jesus humano some do mapa e Jesus divino se torna o Deus da religião cristã. Evapora-se a humanidade de Jesus.
Essa evolução está diretamente ligada à lamentável história da ‘caça aos hereges’, que - de certo modo - perdura até nossos dias. Jesus é retirado de Nazaré se senta à direita do Pai. Molda-se a cristologia de um Jesus inalcançável, que deixa de ser modelo para a vida e se torna apto a ser adorado. De tanto insistir na transcendência da figura de Jesus, os líderes da época criam uma ortodoxia (em grego orthè doksa, sendo que ‘orthos’ significa ‘reto, vertical, fixo’ e ‘doksa’ significa ‘opinião’. Há incongruência nessa locução, pois um dito grego reza anti doksès alétheia: ‘contra a opinião: a verdade’. Mas a história confirmou a expressão ‘ortodoxia’ e isso é irreversível).
Assinalei acima que o pouco interesse em ‘Jesus histórico’, demonstrado em importantes setores da primeira tradição de Jesus, notadamente nos evangelhos, é marcado pelo contexto histórico, pois o movimento cristão, em seus inícios, sofre ferrenha perseguição. Nessa conjuntura, uma imagem superlativa da figura Jesus é ‘orgânica’, ou seja, corresponde aos anseios do momento.
Essa organicidade entre a imagem de Jesus e a vida concreta do povo cristão se perde. A igreja ‘ortodoxa’ é uma igreja que fecha os olhos (não enxerga o desastre que a nova imagem cria entre os fieis) e tapa os ouvidos (não ouve vozes discordantes). Só sabe falar. Condena quem com ela não concorda. A lista é longa e atravessa os séculos: a caça aos hereges, a inquisição, o Malleus Maleficarum de 1486-1487 (que resulta na queima de 40 e 50.000 ‘bruxas’ em fogueiras), o Index Librorum Prohibitorum de 1559, o Syllabus Errorum do Papa Pio IX (1864). A igreja enxerga heresia e erro por todo canto. A inquisição, particularmente, é um inferno: todos têm medo de todos, pois cada qual pode acusar o outro de ‘heresia’. Uma exasperação que dura séculos, grandemente fora do alcance da compreensão dos fieis, que continuam sem compreender nada. Cria-se um clima insalubre, de ódio e oposição intransponível.
Quais os efeitos de Calcedônia 451 para a autocompreensão do ser humano? Na medida em que se exalta a divindade de Jesus, se desvaloriza nossa própria humanidade e sua capacidade inventiva. Perde-se a compreensão que, ao chamar Jesus de ‘humano’, não o desqualificamos, mas, pelo contrário, reabilitamos nossa própria humanidade. E, quando dizemos que Jesus é ‘mais que só homem’, dizemos, ao mesmo tempo, que nós, igualmente, somos mais que só pessoas humanas a simplesmente ‘conviver’ com outras. Somos chamados a amar, a viver como irmãos e irmãs.
A imagem ‘divina’ de Jesus, afirmada em Niceia e confirmada em Calcedônia, atravessa séculos. Só na época moderna, em que ciências e pesquisas passam a ser gradativamente praticadas e valorizadas, emerge, lentamente, o tema ‘Jesus histórico’. Só em 1863 aparece, na França, o livro Vida de Jesus, de Ernest Renan, que dá início ao movimento ‘em busca de Jesus histórico’. Na Alemanha se verifica igualmente um lento despertar, ao longo do século XIX. Na Rússia, Leo Tolstói (1828-1910), depois de ser expulso da Igreja Ortodoxa em 1901, redige sua ‘Bíblia’, onde se respira um ar inovador. Mas, em geral, o processo é extremamente lento.
Contemplando a evolução do cristianismo, nesses dois mil anos, percebemos que um encontro fértil entre história e mitologia, entre razão e entusiasmo, é uma tarefa difícil. Os modernos de tal modo fustigaram muitas crenças descabidas do passado, que acabaram criando uma imagem distorcida da mitologia. Ao mesmo tempo, em tempos de colonialismo, era comum desqualificar as religiões praticadas em terras invadidas de ‘mitológicas’, o que conferiu um tom pejorativo ao termo. Esqueceu-se que o ‘mito’ constitui um meio privilegiado de maior conhecimento de nós mesmos e do mundo que nos rodeia. Mais: que ele constitui o caminho comum do conhecimento humano e que seu principal ponto atrativo está no fato que ele costuma suscitar paixão e entusiasmo.
O bom senso nos ensina a respeitar ambas as aproximações, a histórica e a mitológica, praticar uma saudável distinção entre um enfoque histórico e um enfoque mitológico da figura de Jesus e, desse modo, enriquecer sua fé por meio de um intercâmbio entre os dois modos.
Hoje, um desequilíbrio fundamental marca a visão que os fieis costumam ter a respeito de Jesus da história, que é como um ‘Pilatos no Credo’. Certo dia, uma pessoa me disse: não podemos imitar Jesus, porque Ele é Deus. Só podemos cair de joelhos e adorar.
A procura do equilíbrio perdido entre Jesus do mito e Jesus da história é uma tarefa fundamental, nos dias que vivemos. Está na hora de voltar a Jesus de Nazaré. Os tempos estão amadurecendo.
Hoje lemos com relativa tranquilidade, embora talvez com algum estranhamento, um eventual relato ‘histórico’ da biografia de Jesus. Nos seguintes termos, por exemplo: Nascido e crescido numa pequena aldeia da Galileia, no Norte de Israel, o carpinteiro Jesus fica interpelado por um profeta no Sul do país, João Batista. Ele deixa a família e a aldeia e vai batizar com esse profeta. Depois de se separar dele, Jesus se instala em Cafarnaum, na Galileia, e aí passa a reunir em seu entorno redor um grupo de discípulos. E, por atos e palavras, anuncia uma mudança radical na avaliação da situação em que o mundo está: Deus mesmo vem reinar, chegou o Reino de Deus. Após dois ou três anos de atividade intensa e de muitas falas, Jesus, ao subir a Jerusalém para a festa de Páscoa, entra na Cidade Santa, sentado num burrinho, rodeado por gente da Galileia. É uma provocação. As autoridades entendem o recado: ‘Jerusalém é nossa Cidade Santa, não é a cidade de sacerdotes, letrados e fariseus’. Então, essas autoridades decidem executá-lo.
Pode ser que esse tipo de apresentação da vida de Jesus cause alguma estranheza, mas penso que, hoje, não encontra recusa formal. Abre-se uma porta para uma compreensão da figura de Jesus em maior conformidade com dados históricos.
O equilíbrio não é fácil. Fica mais fácil partir para partidarismo e exclusivismo. Que o diga o movimento ecumênico que, numa dolorosa caminhada, tenta passar de uma mentalidade exclusivista para uma compreensão inclusivista, para, a partir daí, se abrir a um entendimento pluralista. Com todas as dificuldades e contradições inerentes.
Convém elogiar uma mitologia cristã bem pensada, capaz de conviver com estudos históricos. Valorizar o senso do sagrado e do mistério e, ao mesmo tempo, não rechaçar o senso histórico. Expressar, de algum modo, o inefável (pela arte, pela poesia, pela contemplação, pela música), enquanto se cultiva respeito por estudos históricos. Ter consciência da insuficiência da linguagem, enquanto não se desprezam as conquistas de uma linguagem nova e inusitada. Ir para além de fronteiras traçadas por culturas, mentalidades, tempos, povos, países, religiões, sonhar com um mundo que seja uma realização de todos e para todos, e agir na concretude da vida ‘profana’ para realizar esse sonho. Aceitar o fato que o passado passou, inexoravelmente, e que o presente pede um novo modo de pensar. Mudar o foco, de obediência e adoração para vida satisfatória para a humanidade universal. Respeitar a historiografia, o melhor antídoto contra o fundamentalismo. Reconhecer em Jesus o rabi galileu da história, e, ao mesmo tempo, acompanhar a fé descomplicada do povo. Não cair na tramoia de considerar o mito contrário à verdade.
Quem tiver coragem de assumir hoje essa postura equilibrada, tem de saber nadar contra a corrente, pois aparecem correntes contraditórias. Quem se aventura a nadar naquelas águas, vai ver que há muita contradição na história do cristianismo.
Como você, que lê este texto, provavelmente pertence ao grupo seleto de formadores/as de opinião dentro do atual instituto cristão, termino este texto dando três dicas que provêm de minha experiência no campo da história da igreja: usar o bom senso; superar o medo; saber contextualizar.
1. Usar o bom senso
Não basta simplesmente ‘voltar ao evangelho’. Há de se depurar as narrativas. Jesus andou sobre as águas? Mandou acalmar a tempestade? Aqui, vale recorrer ao bom senso, esse precioso dom da natureza que recebemos ao nascer. Existem livros que procuram distinguir entre o que Jesus ‘disse’ e o que ele ‘não disse’, o que ele ‘fez’ e ‘não fez’, mas acho que nosso bom senso é o melhor guia. A tarefa é delicada e sujeita a erros, mas vale ser empreendida.
Pessoalmente, prefiro ler os Ditos e as Parábolas de Jesus e não me ater demais a narrativas sobre seus milagres. Li que, apenas vinte anos após a morte de seu líder, missionários cristãos, que andavam pelos desertos do Egito, costumavam costurar, no interior de suas roupas, em tiras de papiros, ditos de Jesus. Para não esquecer. Eis o que se deduz de achados ‘papirológicos’, pois diversas dessas tiras foram encontradas nas areias do deserto. O Evangelho Q reuniu 21 Ditos, e o impressionante é que aí aparece um Jesus extremamente forte e contundente, que diz coisas que estão na contramão do comumente recomendado e praticado: felizes os pobres (Dito 01); amem seus inimigos (Dito 02); sejam misericordiosos (Dito 03); não seja cego (Dito 04); não seja hipócrita (Dito 05); conheça a árvore pelo fruto (Dito 06); não me chame ‘mestre, mestre’, sem fazer o que eu digo (Dito 07); deixe que os mortos enterrem os mortos (Dito 08); envio vocês como cordeiros em meio de lobos (Dito 09); perdoe a seus devedores (Dito 10); a quem bate, a porta se abre (Dito 11); proclamem sobre os telhados o que ouvirem em sussurros (Dito 12); não tenham medo de quem pode matar o corpo, mas não o espírito (Dito 13); não acumule bens em estoque (Dito 14); em vez de se preocupar com vestuário e alimentação, vejam se estão sob o domínio de Deus (Dito 15); vendam seus bens e deem tudo à caridade (Dito 16); o reino de Deus é um grão de mostarda (Dito 17); quem se enaltecer será humilhado, quem se humilhar será enaltecido (Dito 18); convide para a festa os que você encontrar na rua (Dito 19); quem preferir pai e mãe não pode aprender de mim (Dito 20); joguem fora o sal que não salga mais (Dito 21).
Nas páginas 186-190 de meu livro Em busca de Jesus de Nazaré (Paulus, 2026), publiquei esses 21 Ditos.
2. Superar o medo
Penso que não falta gente que concorda basicamente com o que escrevo aqui. Acontece que a atual igreja católica padece de uma doença de cura difícil, que paralisa muita gente: o medo. Uma doença difícil de ser curada por ser raramente reconhecida como tal. Medos por todo canto: medo de expressar o que se pensa e ser ‘borrado do mapa’; medo de se distanciar dos/as amigos/as, da família, da comunidade, da igreja. Medo de perder o ‘bom nome’, o prestígio, a segurança, eventualmente mesmo o emprego ou, em casos extremos, a própria vida. Medo de se pronunciar diante de injustiças flagrantes. Refugiar-se no indiferentismo.
A partir de sua experiência multissecular, a igreja católica fomenta o carreirismo no clero. Nada mais contraditório, para uma pessoa que se propõe difundir a mensagem cristã, proveniente de uma pessoa notadamente avessa ao carreirismo de sacerdotes e sumos sacerdotes, letrados e fariseus. A ideia de uma ‘carreira eclesiástica’, estimulada por procedimentos inscritos numa longa tradição, é uma doença que paralisa. Quantos talentos perdidos por causa do carreirismo! Pois, não é fácil escolher entre medo e amor. Muito, do assim chamado ‘tradicionalismo’, é, na realidade, uma camuflagem do ‘medo eclesiástico’.
3. Saber contextualizar
Desde as primeiras linhas, o presente texto insiste: é importante contextualizar. Declarações cristológicas de um passado longínquo, condicionadas por situações acima descritas, continuam mexendo com a fé de inúmeras pessoas hoje, o que denota uma falta de contextualização. A sã história ensina que todo evento se situa num determinado contexto. Quando um contexto muda, a leitura de uma declaração dogmática há de mudar também (lembro que o termo grego dogma significa ‘opinião’). Pois a história é viva e muda continuamente. Tudo que ela constrói, ela vai desconstruindo com o tempo. Não existe declaração sacrossanta, per omnia saecula saeculorum. A ideia de estruturas eternas é irreal. Há de se reconhecer a complexidade do vivido. Se eu não sei contextualizar, não consigo entender os anseios das pessoas no meio das quais vivo.