04 Outubro 2023
Aqui está a segunda conferência realizada no "Centro Hurtado", para o ciclo "Terça-feira na Gregoriana", em abril de 2022, por Andrea Grillo (a primeira, proferida pelo Prof. Pierluigi Consorti, pode ser lida aqui).
O texto é de Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, publicado por Come Se Non, 03-10-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Duas dogmáticas “desniveladas” e o caminho sinodal
No título geral, que orienta a conversa de hoje (“Processo sinodal à prova do código”) perguntamo-nos: quem está colocando à prova quem? O código do direito canônico coloca à prova o Sínodo ou o Sínodo coloca à prova o código?
Por um lado, é fácil deixar-se tranquilizar pelo código, para entender o Sínodo de forma redutiva: um Sínodo à medida de código é algo demasiado fácil, que pode ser manejado de forma linear e cujos resultados já estão todos previstos de saída.
Por outro lado, é igualmente fácil idealizar o Sínodo “veluti Codex non esset”, e pensar que a lei seria quase um “valor residual” no caminho eclesial da reforma, uma espécie de “consequência externa”, uma vez adquirida uma nova compreensão no coração ou na mente.
Para não cair nessas duas distintas ingenuidades, gostaria de partir de algumas "auctoritates", que já refletiram sobre a estreita relação entre "igreja em saída" e "competência jurídica", para depois examinar não só o "dispositivo de bloqueio" que paralisa a Igreja Católica, mas em que âmbitos a tensão entre "dogmática jurídica" e "dogmática teológica" se mostra mais evidente, a ponto de gerar verdadeiras formas de "desnivelamento" que pedem, especialmente ao Sínodo dos Bispos, tomar providências com sábia urgência.
Em primeiro lugar, gostaria de me deter numa afirmação de um historiador do direito canônico, que há muitos anos vem frisando o atraso do direito canônico (C. Fantappié, em Per un cambio di paradigma, Bolonha, EDB, 2019, p. 175):
“O paradoxo histórico é que, enquanto o magistério da Igreja, a partir do final do século XIX, abriu-se a uma reflexão séria e exigente sobre a interpretação dos textos bíblicos e teológico-dogmáticos, no campo do direito canônico essa conscientização permaneceu letra-morta. A estridência acentua-se quando se considera que a ciência canonística havia sido a primeira a elaborar, junto com a civilística medieval, a teoria da interpretatio num sentido criativo: mas hoje ainda se encontra confinada na letra do código"
A evocação de uma "profecia canonística", que tornou grande essa disciplina num passado distante, deve constatar uma espécie de "fechamento positivista" da canonística católica contemporânea, que assim resulta largamente incapaz de propor reformas, em vez de executar exclusivamente tarefas apologéticas de rotina.
Depois, há a pretensão jurídica, inserida no código de 1983, de delimitar o campo de exercício da palavra teológica (W. Boeckenfoerde, Roma ha parlato, la discussione è aperta, Il Regno, 2005, 739-744)
O longo e detalhado artigo apresenta uma espécie de “paradoxo”, que surge da análise de um texto-chave do Código de 1983:
“No presente contexto é preciso colocar, por fim, um quesito: até que ponto a perspectiva aqui delineada discorda ou até entra em contraste com o direito canônico em vigor, em particular com as normas que regulam o exercício do magistério no Código de Direito Canônico de 1983 e com a categoria de autoridade nele pressuposta? O can. 752 afirma: “àquela doutrina que quer o Sumo Pontífice quer o Colégio dos Bispos enunciam ao exercerem o magistério autêntico, apesar de não terem intenção de a proclamar com um ato definitivo”, deve prestar-se “obséquio religioso da inteligência e da vontade”. O que se exige é uma obediência que apresente dois aspectos estritamente ligados: no plano intelectual, comporta um íntimo consenso que seja capaz de adotar a doutrina enunciada; no plano da vontade, traduz-se, além disso, num ato de obediência de tipo externo. Ou seja, o legislador espera que a eventual dificuldade de compreender ou partilhar da doutrina enunciada seja superada graças a um ato de vontade” (741).
É justamente esse ato o elemento que deveria tornar possível o consenso interior requerido para garantir, por sua vez, o obséquio religioso devido no reconhecimento da autoridade eclesial.
É preciso reconhecer que esses dois testemunhos nos ajudam a distinguir entre o desnivelamento “contingente”, que sempre se verifica no percurso histórico da Igreja, e o “estrutural”, que altera de modo fundamental o próprio papel da mediação jurídica em relação à mediação teológica. Foi precisamente o processo de “codificação” do início do século XX que convenceu setores relevantes da Cúria Romana e dos canonistas de ter conseguido, com o código, aquela mediação jurídica última, que poderia acabar por inverter a relação entre teologia e direito.
A sombra do antimodernismo sobre a codificação canônica não é suficiente para explicar o fenômeno. É necessário considerar, além disso, o desenvolvimento “pós-conciliar” de um antimodernismo distinto, que assumiu a figura da “hermenêutica da continuidade” do sujeito eclesial, a ponto de teorizar uma espécie de “fórmula", para bloquear pela raiz qualquer possibilidade de reforma e para controlar de modo eficaz que a teologia também se disponha a refletir apenas no âmbito desse recinto, predeterminado pelo direito. Dessa forma, o Concílio Vaticano II também era gradualmente esvaziado.
O antimodernismo do início do século e o novo antimodernismo pós-conciliar, que elaboraram o “dispositivo de bloqueio”, encontram no código um dos seus recursos mais preciosos: dito nas palavras de uma espécie de “fórmula”, que aparece sempre nos diversos documentos de uma longa fase de expressão magisterial recente, trata-se de "negar ter o poder, para manter todo o poder”. Esse fenômeno assumiu ao mesmo tempo uma forma jurídica e teológica, criando, por assim dizer, uma “sinergia” entre “dispositivo de bloqueio jurídico” e “dispositivo de bloqueio teológico”. O desnivelamento canônico começou assim a se tornar também desnivelamento teológico.
Por um lado, o direito sistematizado no códex torna-se o horizonte normativo último, em relação ao qual toda reflexão teológica deve estar incluída. Pelo outro, a teologia do magistério tende a reduzir-se a uma “teologia de autoridade”, fora da qual não é permitido ao teólogo refletir publicamente. O sistema se aperfeiçoa por intervenções progressivas, conforme a situação, de natureza formal ou temática, todas acomunadas por esse destaque da “falta de autoridade da Igreja em poder reformular a sua própria clássica autoridade”. Os principais documentos dessa progressão, que intervêm em questões sacramentais, em questões morais ou em questões litúrgicas, são: Inter Insigniores (1976), Novo Código de Direito Canônico (1983), Veritatis splendor (1993), Ordinatio sacerdotalis (1994), Ad tuendam fidem (1998), Liturgiam autenticam (2001), Summorum Pontificum (2007). O papel que grande parte dos canonistas (mas também dos teólogos) desempenhou nessa progressão é, no mínimo, desconcertante. A exigência de uma “profecia canonista (e teológica) foi tendencialmente reduzida a zero. Manda quem pode... Para que o Sínodo tenha alguma esperança de impactar a realidade, será necessário despertar a paixão dos canonistas não só pelo ius conditum mas também pelo ius condendum.
Para melhor esclarecer essa condição de “desnivelamento”, tratarei muito rapidamente três de campos de interesse jurídico e sinodal, que merecem uma abordagem diferente daquela a que nos havíamos resignado durante quase meio século:
a) ministério e o gênero feminino: toda reforma foi feita com uma “reforma do código”. A exclusão das mulheres é por autoridade, diríamos “por default” e o código, apenas desde 1917, o diz expressis verbis, transformando uma discussão “de impedimentis” em uma definição “de substância”. Tal definição é fundamentada? Ou é fundamentada apenas porque é oficial? Segundo o Código (cân. 752), aos teólogos (e a todos os cristãos) só restaria aceitar e/ou calar... mas o ato do legislador e o ato do magistério não são inteiramente idênticos: um "buraco" magisterial altera o compactação jurídica e pede que as novas possibilidades de ordenação feminina (primeira entre elas ao diaconato) não encontrem como obstáculo uma norma concebida com uma mens de sociedade fechada e patriarcal.
b) casamento como ato e como processo. O desenvolvimento da teologia não corresponde a uma evolução das categorias jurídicas, exceto de modo formal. O “bem” do casamento agora também contempla o “bonum coniugum”: essa novidade social e cultural foi integrada pelo código de 1983, mas de modo extrínseco, porque a consideração do “mal” do casamento prevê apenas uma atenção para o ato, não para o percurso pessoal da relação. Um modelo diferente aparece claramente em J-P. Vesco (ex-advogado civil) que como Bispo atua na categoria sistemática de “adultério” a ser repensada, para entender o novo equilíbrio entre dogmática teológica e dogmática jurídica. Somente uma noção “imediata” do crime de adultério (e não “continuada”) tem condições de oferecer uma solução plausível às demandas de verdade na vida dos indivíduos e dos casais. Uma profecia canonística a serviço de uma nova consciência teológica.
c) Pena e penitência: a dogmática jurídica sobre o sacramento da penitência e sobre o direito penal é formalista e pré-moderna. Isso literalmente os impede de “fazer justiça”, tanto no plano sacramental quanto no plano judicial. Fenômeno curioso: discutimos sobre as grandes questões com categorias completamente inadequadas e com prioridades desniveladas. Se na questão dos “abusos” nos entrincheiramos no “segredo do confessionário” (com toda a sua relativa seriedade), o que se defende não é a justiça, mas o museu diocesano e se negligencia o jardim da tradição. Nunca ouvi um único jurista (e nem mesmo um teólogo) recuperar o aspecto mais adequado, ou seja, que a confissão (que continua sendo secreta para o ministro) incide na vida do penitente. Trata-se de ativar duas atenções novas (mas também antigas):
– os atos do penitente são “matéria” do sacramento, não podem ser demasiado estilizados sem perder o sentido do sacramento, que não é apenas “ato de perdão”, porque é diferente do batismo justamente por sua “laboriosidade”;
– a forma de pensar a relação entre “crime” e “pecado” implica uma relevância diferente de “terceiros”. Pensar nos “crimes contra a pessoa” como “pecados contra Deus” implica um defeito categorial e institucional que não consegue mais “fazer justiça” às pessoas: defende apenas o “sacramento” como “algo sagrado”. Aqui o canonista penalista é solicitado a se atualizar pelo menos sobre as aquisições do livro Dos delitos e das penas de Cesare Beccaria.
O sistema estruturado no código, tal como está, parece em profunda crise, porque alimenta em grande parte uma perigosa autorreferencialidade. Sem uma reforma profunda do código, o risco é que este, tal como está, torne supérflua qualquer intervenção reformadora, incluindo obviamente aquela do Sínodo - que o aparato burocrático não suporta de forma alguma porque constitui apenas um elemento de confusão - que ameaça alterar aquela “constituição divina da Igreja” que parece ser guardada apenas pelo positivismo canônico, pouco dinâmico e de curta visão. Uma “constituição eclesial divina” que falasse apenas ao imperativo, ainda mais segundo imperativos já ultrapassados, e que não conhecesse nem o indicativo, nem o subjuntivo, nem o condicional, nem o optativo, seria apenas uma contrafigura malsucedida da realidade da graça e olharia para cada “evolução”, cada “sinal dos tempos”, cada “reformulação” como um perigo gravíssimo, a ser evitado com a maior determinação.
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Processo sinodal à prova do código. Parte 2. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU