29 Julho 2023
“Na esquerda latino-americana, não poucos celebram uma possível derrota do campo ocidental e, em particular, dos Estados Unidos. Acreditam que uma vitória da Rússia e da China trará benefícios para as classes trabalhadoras. Ignoram os sofrimentos das mulheres, dos jovens e dos povos desses países e se fixam apenas na escala macro das relações internacionais”, critica Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por La Jornada, 28-07-2023. A tradução é do Cepat.
A cada dia, aparecem com mais transparência os horrores da guerra na Ucrânia, as terríveis consequências das armas sobre os corpos e seu entorno de vida. É notável, no entanto, que os meios de comunicação mencionem, sobretudo, a destruição material de edifícios históricos e emblemáticos, de pontes e outras infraestruturas e de material de guerra, que sempre está nas primeiras páginas e manchetes.
Os seres humanos mal ocupam espaços marginais, porque cada vez mais são considerados como “danos colaterais”, pois o que realmente importa é o valor das coisas. Uma atitude típica do capital que está sendo assumida cada vez mais pelas esquerdas do sistema. Algo semelhante acontece com a geopolítica.
É notícia, por exemplo, quando uma renomada jornalista da televisão ucraniana, Yanina Sokolova, compartilha a dor dos soldados em suas redes sociais, o corpo amputado de um ferido de guerra, cheio de traumas físicos e lesões. “Sente-se mal 24 horas por dia”, escreve (La Stampa, 21/07/23). Para aliviar as dores e os danos em seu corpo, precisa tomar opioides, que também trazem consequências negativas.
Dias atrás, o Parlamento votou, com urgência, a legalização da maconha para fins medicinais, algo a que havia se negado antes, para aliviar o terrível sofrimento de soldados e civis devastados pelo conflito, destaca o texto do La Stampa.
Acrescenta que um dos efeitos da guerra está sendo o crescimento exponencial da demanda por cannabis e substâncias psicoativas na Ucrânia e na Rússia, usadas como tranquilizantes, anestesia contra dores e alucinações, e ainda como estimulante em casos de depressões profundas.
Pelo que parece, a relação entre guerra e drogas é muito forte. Depois da guerra do Vietnã, constatou-se um colossal uso de heroína entre ex-soldados estadunidenses, a tal ponto que os sucessivos governos tiveram que financiar programas para enfrentar as dependências.
Os relatos atuais sobre a guerra buscam ocultar os seres humanos. Abundam dados gerais (ofensivas militares, tipo de armas utilizadas, fotos e vídeos sobre a destruição, número de mortos e feridos), mas raramente aparecem os corpos mutilados e destroçados que são o pão de cada dia nas regiões de combate. A guerra é, como tem sido dito nesses dias, um “moedor de carne”. Os especialistas afirmam que a expectativa de vida de um soldado no front é de apenas quatro horas.
A geopolítica também oculta as pessoas. Ensina quais nações podem se beneficiar da guerra e quais podem perder. Empenha-se em analisar os resultados estratégicos no equilíbrio global de poder. Na esquerda latino-americana, não poucos celebram uma possível derrota do campo ocidental e, em particular, dos Estados Unidos. Acreditam que uma vitória da Rússia e da China trará benefícios para as classes trabalhadoras. Ignoram os sofrimentos das mulheres, dos jovens e dos povos desses países e se fixam apenas na escala macro das relações internacionais.
A geopolítica está em desacordo com a ética, assim como a guerra. E isso também acontece com as esquerdas, que nasceram para colocar o ser humano em primeiro lugar, ao passo que as direitas se ocupavam dos lucros materiais e do poder. Como sabemos, as diferenças entre esquerda e direita desapareceram, sendo a maior derrota cultural e política imaginável.
Com isso, não pretendo dizer que os dados e as análises que provêm da geopolítica não tenham importância para os povos. Contudo, uma coisa é levá-los em conta e outra muito diferente é se submeter à sua lógica, sempre estatal e imperialista. Algo semelhante acontece com a economia: é necessário atender às suas contribuições, mas a deriva economicista entre os de baixo supõe uma rendição às tecnocracias que a administram.
Essa deriva implica colocar no centro do pensamento e a ação as supostas implacáveis leis econômicas, que levariam os povos à sua libertação, em vez de considerar o conflito social como o coração da emancipação.
Agora que a geopolítica goza de tantos adeptos, parece importante destacar suas limitações, mais sociais do que intelectuais. Vou dar um exemplo: acredito que a queda do regime de Daniel Ortega, na Nicarágua, beneficiaria os Estados Unidos, razão pela qual a China e a Rússia o apoiam. Ninguém pensa na população nicaraguense, aquela que sofre todos os dias com um regime intolerante e repressor.
Nesse ponto, não há como errar: pensa-se a partir e com os povos oprimidos ou se abraça a lógica do poder e da maldita “correlação de forças”. Algo tremendo está acontecendo diante de nós: abordam-se todas as facetas da vida como se tratasse de uma partida de futebol. Dói em nós que gostamos desse esporte. Mas, dói muito mais em nós que ainda acreditamos que vale a pena atuar pelos seres humanos deste mundo, independentemente do lugar onde vivam.
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A razão geopolítica contra os povos. Artigo de Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU