08 Fevereiro 2023
O diretor do Le Monde Diplomatique em espanhol, referência do pensamento crítico, analisa o que aconteceu em Brasília e suas semelhanças com o ataque ao Capitólio, que ele define como “um divisor de águas” na história. O papel da mídia tradicional, das redes e das teorias da conspiração. A crise das classes médias e sua resposta identitária.
A entrevista é de Natalia Aruguete e Bárbara Schijman, publicada por Página/12, 06-02-2023. A tradução é do Cepat.
Em seu recente livro La era del conspiracionismo (A era da conspiração), Ignacio Ramonet busca compreender de modo especial o imaginário dos invasores do Capitólio em 6 de janeiro de 2021 e, mais estruturalmente, os motivos que levaram os setores desclassificados – classes médias empobrecidas que perderam uma série de direitos que tinham há algumas décadas – a caírem na desconfiança sistêmica, em teorias da conspiração e na cultura da mentira.
Nesta entrevista concedida ao Página/12, o jornalista espanhol e diretor do Le Monde Diplomatique em espanhol compara o ataque ao Capitólio com o assalto à Praça dos Três Poderes, ocorrido em 8 de janeiro. Bolsonaro e Trump, adverte Ramonet, demonstraram que “as massas e as ruas são deles”.
No livro, destaca que grande parte dos eleitores republicanos continua achando que houve fraude nas eleições. Aí, um quarto da população estaria disposta a renunciar à democracia se tivesse uma liderança com a qual se identificasse. O que prevê para as próximas eleições nos Estados Unidos?
Vimos a significativa influência de Trump nas recentes eleições de meio de mandato nos Estados Unidos; em particular, dos candidatos e das candidatas que se identificam com ele. Muitos analistas observam a pequena vitória – ou a retumbante não vitória – dos republicanos e apontam que muitos dos candidatos que venceram neste meio de mandato foram impostos por Trump. Ou seja, o radicalismo daqueles candidatos republicanos trumpistas impediu uma vitória que poderia ter sido maior. Se os democratas conseguiram manter a vitória no Senado, foi em parte por causa dessa vitória incompleta dos republicanos. A influência de Trump segue sendo importante, mesmo que tenha custos para o Partido Republicano.
Que custos o Partido Republicano pagaria?
Vimos isso com a eleição do presidente da Câmara dos Deputados, que não foi eleito em primeiro turno, como não acontecia há praticamente um século. Os trumpistas continuam sendo importantes dentro do Partido Republicano. Vimos isso nas eleições de meio de mandato, nas eleições para presidente da Câmara dos Deputados e veremos nos próximos dois anos nas candidaturas às primárias no Partido Republicano. Trump praticamente já anunciou que seria candidato às eleições de 2025.
Essa maior polarização que os trumpistas promovem dentro do Partido Republicano amplia ou não a base eleitoral? A radicalização é, afinal de contas, benéfica para uma possível vitória republicana em uma eleição presidencial ou é mais um impedimento?
Esse é o debate que o Partido Republicano está tendo agora internamente. O fato de se falar em um candidato alternativo a Trump, como é o caso do governador da Flórida, Ron DeSantis, é uma das primeiras deduções feitas do que aconteceu nas eleições de meio de mandato. Em outras palavras, esse radicalismo é o núcleo duro dos republicanos, embora seja também sua fraqueza eleitoral geral. Não só isso: algumas das medidas republicanas mais radicais pronunciadas pela Suprema Corte, dominada por juízes nomeados por Trump – em particular, a decisão de impedir o aborto –, levaram muitas mulheres historicamente republicanas a se afastarem, porque de fato essa medida não entra no cotidiano de muitas pessoas. Esse debate que a pergunta levanta é um pouco da contradição em que o Partido Republicano se encontra hoje. A conspiração é o principal alimento do núcleo mais forte e dinâmico com que o Partido Republicano tem de lidar numa perspectiva eleitoral.
Que semelhanças encontra entre o atentado ao Capitólio e o atentado à Praça dos Três Poderes, em Brasília? Esses ataques estão servindo a eles ou podem ser bumerangues para os líderes da oposição?
A primeira dedução que podemos fazer daquilo que ocorreu em 8 de janeiro em Brasília é que foi voluntário e uma cópia do assalto ao Capitólio, inclusive pela escolha da data: 6 de janeiro em Washington, Capitólio; 8 de janeiro em Brasília, os Três Poderes. Não há dúvida de que a análise feita pelos bolsonaristas é que o assalto ao Capitólio foi positivo para Trump. A opinião pública geral nos Estados Unidos o condenou, assim como no Brasil, mas, depois de peneirados os comentários, a conclusão que os analistas de Bolsonaro tiraram é que isso acaba sendo lucrativo. Trump, ainda hoje, vive de sua capacidade de mobilizar dezenas de milhares de militantes, que se lançaram ao assalto ao Congresso dos Estados Unidos por meio da violência, algo inédito que, agora, veem como algo épico.
No caso do Brasil, o que aconteceu obrigou os militares a se pronunciarem e o apoio a Lula surgir de vários setores. Como se dá a relação situação-oposição neste início de governo Lula, que requer muito apoio no Congresso?
A leitura mais simples que se pode fazer do que aconteceu em Brasília é que, finalmente, os bolsonaristas anteciparam o fato de que muitos partidos no Congresso brasileiro vão negociar com o novo governo, com Lula. Mas eles mostraram que as massas e as ruas são deles. A mesma coisa que Trump disse: a rua e a insurreição, que historicamente eram da esquerda, são agora – ou poderiam ser – da direita. Esse capital era do PT e dos sindicatos petistas. Agora Bolsonaro pode dizer: “a rua também é minha, as massas também são minhas”, e estão dispostas a ir mais longe do que as massas petistas podem ir.
Por quê?
Porque o próprio Lula declarou que nunca lançou as massas populares da esquerda brasileira no assalto ao poder. Bolsonaro fez. Simbolicamente, isso é muito forte, especialmente porque remove uma das marcas da identidade da esquerda desde a tomada da Bastilha em 1789.
Por que você aponta o que aconteceu no Capitólio como um divisor de águas?
Até agora, não houve um exemplo como o que acabei de descrever. Os golpes de Estado na América Latina, como em outros lugares, são essencialmente golpes de Estado das Forças Armadas ou, digamos, dos corpos armadas de um país. Inclusive o fascismo em 1922 ou o nazismo em 1933. Embora o nazismo tenha chegado ao poder por meio de eleições, o golpe de Estado ocorreu após o incêndio do Reichstag, quando as Forças Armadas apoiaram esses partidos, que também eram como paramilitares, tanto o fascismo de Mussolini como o nacional-socialismo de Hitler.
Não vejo exemplos de um golpe de Estado feito com as massas populares. Foi o que Trump tentou com seus 127 milhões de seguidores. Obviamente, o assalto a Washington não é realizado por 127 milhões, bastam algumas dezenas de milhares, dos quais mais ou menos mil conseguem entrar no Capitólio. Mas, simbolicamente, as massas furiosas atacam. Meu interesse com este livro é entender o imaginário dos invasores, que ideias eles têm em suas cabeças e quem colocou essas ideias em suas cabeças.
Que papel desempenham os meios de comunicação tradicionais e as redes sociais na propagação destas ideias?
A realidade é que a mídia tradicional, a grande mídia impressa, o rádio e a televisão, desempenham um papel praticamente inexistente. Se este tema tivesse surgido há 15 ou 20 anos, diríamos que a televisão era o meio determinante, mas hoje não é assim. A prova é que todos os grandes meios de comunicação profissionais nos Estados Unidos estão contra Trump e não conseguiram reverter o movimento.
Trump não venceu a eleição contra Biden e a democracia não foi derrubada. Isso também tem que ser dito. Mas não há dúvida de que as raízes da conspiração, como o caso do QAnon (uma das principais teorias da conspiração da extrema direita nos Estados Unidos), e a forma como ela se espalhou, foram as redes. As redes, justamente, têm uma relação muito diferente com o consumidor de informação e com o produtor de informação.
A Fox News, um conglomerado da mídia profissional, tem sido a espinha dorsal de Trump, mesmo antes de assumir o cargo.
Sim.
É possível instalar um discurso usando apenas as redes sociais, sem o apoio editorial da grande mídia tradicional?
Os meios de comunicação tradicionais são mídias de conteúdo. As redes sociais não funcionam assim; as redes sociais transmitem memes, frases, fotografias, pequenos vídeos sem conteúdo. Não há nenhum conteúdo que desenvolva uma análise sobre o que é o trumpismo. Ninguém nas redes lê algo que tenha mais de 15 linhas; não é o mesmo universo. Os meios de comunicação — imprensa, rádio ou televisão— têm um alcance relativamente limitado em comparação com a viralidade das redes.
Quero acrescentar neste sentido que o trumpismo não se desenvolve apenas através das redes, mas existem muitos pequenos canais de televisão, pequenas rádios, muitos pequenos jornais ou folhetos impressos que têm impacto no discurso. Mas essencialmente, as redes têm um impacto baseado em dois elementos fundamentais que não são racionais: os afetos e os sentimentos.
As redes também têm sido cenário propício para algumas desobediências civis que ampliaram a agenda em termos de direitos civis e reconhecimento de minorias: o movimento Black Lives Matter, a legalização do aborto e a violência de gênero. Essas questões conseguiram disputar a agenda no cenário das redes sociais.
É a mesma relação com a mídia. Quem tem mais influência? Émile Zola publicou “Eu acuso” no jornal literário L'Aurore, que não era um jornal dominante. A partir daí ocorreu um importante movimento intelectual e surge a imprensa como ferramenta capaz de pesar no debate, não apenas como informação. Hoje, com as redes podemos dizer o mesmo. Acontece que existem alguns fenômenos, como “verdades alternativas”, que podem ser resumidos em um meme que diria algo como: “minha ignorância vale tanto quanto a sua informação”. E esse raciocínio, que por si só já é absurdo, é o que funciona nas redes. Por outro lado, até agora pensava-se que a manipulação funcionava com base na equação de Goebbels: “uma mentira repetida mil vezes torna-se uma verdade”. Hoje estamos em um sistema de desconfiança generalizada, que chamo de “desconfiança epistêmica”, o que significa que essa premissa foi invertida: “uma verdade repetida mil vezes torna-se uma mentira”.
Durante a pandemia, vários setores em diferentes partes do mundo apostaram no medo e na desconfiança. Como certos grupos poderosos se aproveitaram da situação e alimentaram o que você chama de “cultura da mentira”?
É que a pandemia chegou num momento em que já se instalava grande desconfiança em relação aos meios de comunicação, que eram denunciados pelo uso de mentiras, bem como pelo seu aspecto militante e empenhado, em vez de terem capacidade de analisar com mais serenidade. Mas essa desconfiança também se estendeu à ciência. A ciência, sob a ideia de sua semelhança com o progresso, provocou, de Hiroshima até Fukushima, uma série de catástrofes cujas consequências muitas pessoas tiveram de suportar.
Há uma grande desconfiança em relação à ciência, à mídia e à democracia. Repetiu-se que a democracia é o melhor sistema com exceção de todos os outros, e vemos que são sociedades em que a desigualdade cresce em vez de diminuir e em que seus líderes políticos são constantemente acusados de corrupção. Diante disso, o cidadão é presa fácil de um tipo de discurso demagógico que questiona todos esses elementos, e a Covid veio para concentrar tudo isso.
De que modo o concentrou?
Quando a Covid irrompeu, ninguém sabia do que se tratava. Os dirigentes, por mais honestos que fossem, incorreram em contradições: “tem que usar máscara, não precisa usar máscara, tem que tomar tal medida, não deve tomar tal medida”. Em termos globais, isso causou muita irritação. Ao mesmo tempo, milhões de pessoas perderam: pequenos comerciantes, pessoas que vivem na economia informal, artistas, o mundo da cultura. Tudo isso criou muita irritação. Num contexto social de irritação, de confusão e de ignorância, isso produz conspiração.
A polarização torna os grupos muito homogêneos internamente e aumenta os níveis de intolerância em relação aos membros de um grupo externo. Como as identidades jogam nessa polarização?
É um ponto muito importante para entender o que está acontecendo, principalmente nos Estados Unidos, embora não exclusivamente. A extrema direita na Europa está crescendo e está no poder. Na Itália, os fascistas voltaram ao poder. No livro, tento explicar quem eram os invasores do Capitólio e o que eles tinham em mente. Mas, antes, é feita uma análise de tipo sociológico-tradicional sobre o perfil socioeconômico dos trumpistas, por exemplo. Na crise da democracia em nível internacional, no centro dessa crise está a crise das classes médias. Todo mundo continua falando em ricos ou super-ricos, em pobres ou ultrapobres, mas as classes médias são as que mais se desgastaram nesses 40 anos de ultraliberalismo.
Como as classes médias respondem a esta situação?
Nos Estados Unidos, a classe média branca, que está perdendo sua base socioeconômica, que ganha menos dinheiro e tem menos vantagens econômicas do que soube ter em algum momento, poderia ter se revoltado, irritado ou protestado como categoria social afetada por um modelo econômico que a marginaliza. Em vez de fazer uma leitura de classe ou social de sua situação, ela fez uma leitura identitária. Aí, a direita estadunidense, a extrema direita, sugeriu a essas classes médias que o que acontece com elas não é devido ao modelo econômico, mas a razões de identidade étnica.
Em um país profundamente racista, além disso.
Na verdade, nos Estados Unidos o racismo está profundamente enraizado, e a extrema direita tem usado muito bem esse sentimento racista. O racismo está aumentando em todos os lugares, especialmente na União Europeia. Na Europa, vemos como as questões racistas, étnicas e linguístico-nacionais retornaram com o conflito entre a Rússia e a Ucrânia. Vemos isso também na América Latina com os afrodescendentes, os povos originários; esta questão é mais uma vez colocada no centro de tudo. Em suma, aquelas categorias sociais que deveriam ter se aproximado das organizações sindicais ou políticas que historicamente as defenderam, passaram a ter uma leitura identitária, e não social, sobre si mesmas.
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“Bolsonaro e Trump mostraram que as ruas hoje podem ser da direita”. Entrevista com Ignacio Ramonet - Instituto Humanitas Unisinos - IHU