Bento XVI, teólogo grande ou poderoso? Artigo de Ettore Marangi

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13 Janeiro 2023

"Certamente Ratzinger, entendendo profeticamente que o futuro do cristianismo está em jogo na Europa [...], enfrentou e venceu a modernidade e a pós-modernidade, mas a que custo? Não foi uma vitória de Pirro?" A reflexão é do teólogo italiano e frei franciscano menor Ettore Marangi, professor da Tangaza University College, no Quênia, e missionário nas favelas de Nairóbi.

O comentário foi publicado na página do autor no Facebook, 04-01-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto. 

Eis o artigo.

Não sei se Bento XVI foi um grande teólogo, li pouco dele, porque seus escritos honestamente não me aqueciam o coração. No entanto, ninguém pode duvidar de que ele foi um teólogo muito poderoso: na prática, de 1977 a 2012 (por 35 anos!) ele decidiu os rumos da teologia católica.

São muitos os que falam de sua teologia, mas poucos evidenciam seus posicionamentos. Por isso, decidi dar a conhecer sumariamente alguns deles:

  • Cristologia: Ratzinger foi um teólogo cristocêntrico, mas seu Cristo continua sendo o dogmático, que não aceita se defrontar com o Jesus de Nazaré que emerge a partir da pesquisa histórica.

  • Eclesiologia: ele deixou de lado uma compreensão histórica da Igreja como Povo de Deus, que se compromete com a vinda do Reino, e favoreceu uma compreensão da Igreja como comunhão, baseada mais nos sacramentos e no direito canônico do que nas relações humanas. Para Ratzinger, a hierarquia dá indicações eternas (isentando-se das críticas de “Igreja, carisma e poder”, de Leonardo Boff, Ratzinger opôs-se a Wojtyla, que queria pedir perdão em nome da Igreja), não intervém nos problemas da mundo, no qual os cristãos devem se comprometer apenas como indivíduos. Por isso, a Igreja de Ratzinger acabou sendo uma Igreja próxima da direita em todas as partes do mundo e soube usufruir de seus “microfones” (não entendeu que não é possível “não fazer política”). Além disso, diminuiu o papel das conferências episcopais, confirmando a centralização do poder na Cúria Romana.

  • Antropologia: tentou encerrar dogmaticamente a possibilidade de abrir ao sacerdócio das mulheres, com o argumento ex silentium (Jesus não disse nada e, portanto, não se faz nada a respeito), relegando-as a uma posição de inferioridade, já que lhes é impedida de ter um papel importante nas decisões ou tomar a palavra durante a ação litúrgica.

  • Escatologia: preservou a doutrina tradicional (almas, purgatório, juízo individual e juízo universal...), ignorando a redescoberta contemporânea da escatologia como esperança histórica (Moltmann).

  • Ecumenismo: minimizou o caráter eclesial de todas as igrejas protestantes e se concentrou em um corpúsculo de lefebvrianos (ao invés de dialogar com a Igreja Anglicana, abriu a possibilidade de acolher, um a um, os padres anglicanos mais conservadores, até mesmo casados).

  • Liturgia: desencorajou toda tentativa de promoção da participação ativa dos fiéis (Eucaristia como banquete). Mediante o argumento do “senso do mistério”, indicou como modelo celebrativo ideal aquele que faz da missa uma cerimônia solene de uma corte imperial (isso explica a tentativa fracassada de restaurar a missa em latim e a ênfase na Eucaristia como sacrifício).

  • Inculturação: nas celebrações de Mozart, tudo bem (porque ele é “alemão/austríaco”?), enquanto os tambores africanos não, pois ele diz que remetem a ritos orgiásticos. Exigindo o reconhecimento das raízes cristãs da Europa, continuou santificando a cultura ocidental: um africano que se converte também deve se tornar europeu.

  • Diálogo inter-religioso: enfatizando até o fim a unicidade de Cristo como salvador (por si só, algo muito bonito), congelou toda tentativa de apreciar os caminhos de salvação nos chamados cristãos anônimos (Rahner) e nas outras religiões.

  • Moral social: para Ratzinger, os pobres não podem ser sacramento de Cristo (esse ensinamento, por sua vez, foi acolhido pelo Papa Francisco, e, portanto, tratou-se de uma virada teológica). Além disso, contra o documento “A justiça no mundo” do Sínodo dos Bispos de 1971, Bento XVI argumentou que a Igreja deve se preocupar apenas com a caridade, que é superior à justiça, a qual, pelo contrário, deve ser buscada pelos Estados (Madre Teresa de Calcutá contra Dom Romero).

  • Moral sexual: nesse campo, Ratzinger realmente mostrou que é agostiniano: não só não conseguiu perceber a extensão do problema da pedofilia do clero, mas, até pouco tempo atrás, continuava defendendo que suas origens deviam ser buscadas na revolução sexual de 1968 (mas nós sabemos que ela a precede). Além disso, provavelmente devido à sua doença, pôs sua assinatura em um livro do cardeal Sarah (depois, retirou-a) em que se afirma que o celibato é essencial ao presbiterado, correndo o risco de declarar inválidas todas as ordenações dos padres casados na Igreja Católica e na Igreja Ortodoxa.

  • Filosofia: o Papa Bento XVI concebeu seu pontificado como uma luta contra o relativismo (genial!), mas sem apreciar verdadeiramente o caminho de emancipação de toda forma de dogmatismo conduzido por todas as filosofias ocidentais (cf. Umberto Eco).

Peço vênia por esta exposição um pouco grosseira, mas [...] poderia ser simplesmente uma tentativa de abrir um diálogo mais profundo. Concluo dizendo que a teologia de Joseph Ratzinger parece ser uma teologia desencarnada... (embora ele conhecesse muito bem a teologia franciscana da Encarnação!).

Certamente Ratzinger, entendendo profeticamente que o futuro do cristianismo está em jogo na Europa [...], enfrentou e venceu a modernidade e a pós-modernidade, mas a que custo? Não foi uma vitória de Pirro? Quantos cadáveres foram deixados no campo? O verdadeiro confronto foi adiado, mas não seria melhor um encontro?

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