10 Janeiro 2023
O artigo é de Andrés Torres Queiruga, teólogo espanhol, publicado por Religión Digital, 07-01-2023.
Existem frases que podem marcar ou pelo menos definir um destino. “Penso que, desde que Deus fez um papa professor, ele quis que precisamente esse aspecto da reflexão, e especialmente a luta pela unidade da fé e da razão, viesse à tona”. Estas são palavras pronunciadas por Bento XVI em 2010, no livro de entrevistas A luz do mundo. Ele havia chegado ao pontificado, depois de passar muitos anos como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e ser claramente o chefe teológico de João Paulo II, o papa mais "político", com quem havia promovido por cerca de trinta anos, sem concessões, um exigente reagrupamento doutrinário da Igreja. A redação do Catecismo da Igreja Católica, cuidadosamente supervisionada por ele, foi a ideologia que, declarada de autoridade pontifícia, tentou impor como norma e critério para a catequese e também para a teologia.
De fato, o prestígio de um professor alemão, junto com uma rica história de publicações teológicas, conseguiu introduzir no ambiente um sentido de dignidade cultural para o anúncio da fé cristã. Respondeu assim a uma necessidade global de atualização, que o Concílio Vaticano II solenemente reconheceu e proclamou. Era urgente, depois da grave crise do Iluminismo, que pôs em crise o papel de destaque com que o cristianismo marcou a cultura ocidental durante um milênio e meio e desde então, em grande medida, também a do mundo.
Ele, não só por formação, mas por ter participado pessoalmente do Concílio, parecia bem preparado para assumir a elevada tarefa. E decidiu enfrentá-lo, continuando, com outro estilo, mas com a mesma atitude de um certo messianismo salvador, o caminho já percorrido com o papa anterior, João Paulo II. Mas acontece que, a essa altura, tudo parece confirmar o que grande parte dos teólogos havia denunciado desde o início. O Concílio havia aberto as portas para uma revolução evangélica, e o que esses dois papas pretendiam impor era uma renovação de compromisso, com arranjos de forma e acomodação de estilo. No final, eles estavam apenas sustentando o mesmo prédio antigo. Procedeu-se a uma hermenêutica de restauração da mensagem conciliar, com o fortalecimento da autoridade central.
Se João Paulo II insistiu sobretudo na disciplina de um governante forte e experiente, Bento XVI concentrou-se na teologia. Também seguindo o estilo do anterior, publicou alguns excelentes documentos, como Deus caritas est (Deus é amor), Spe salvi (Salvos pela esperança) e Caritas in veritate (Caridade na verdade), que foram luminosos e esperançosos, em o quanto eles se concentraram na proclamação central da fé, evitando questões colaterais e discutíveis.
Mas, quanto aos esforços relativos a uma atualização teológica substantiva, foi traído por sua interpretação do serviço pontifício, considerando-se um "papa mestre": considerou que sua autoridade pastoral como anunciador da fé e animador da vida em certo sentido evangélico, também o investiu do poder de controlar o "serviço teológico". Ele transformou sua teologia em um modelo de teologia. Consequentemente, continuou, reforçando com a nova autoridade papal, o controle autoritário que havia exercido como prefeito da doutrina da fé. Multiplicaram-se as censuras, os procedimentos e as exclusões do que soava como uma renovação fundamental, impondo os textos dos representantes da restauração teológica no ensino mais ou menos oficial. Simplificando: Hans Urs von Balthasar contra Karl Rahner.
Sobre a segunda, chegou a dizer: “Trabalhando com ele, percebi que Rahner e eu, apesar de concordarmos em muitos pontos e em múltiplas aspirações, vivíamos do ponto de vista teológico em dois planetas diferentes”. Ali mesmo e também simplificando, surge um sintoma que, permitam-me a opinião, é um diagnóstico e tanto: o teólogo Ratzinger está muito longe da criatividade e profundidade do teólogo Rahner. Como ele, não reconheceu a necessidade de uma “mudança estrutural na Igreja” ou de uma superação radical do paradigma escolástico, abrindo para a teologia e para a Igreja um futuro que bate com os punhos nas portas da humanidade. Da humanidade religiosa, que precisa do ar fresco do Evangelho para entrar novamente. E da humanidade secular, que não poupa para escutar a oferta de luz e esperança que Jesus de Nazaré acendeu há dois mil anos.
Não é por acaso que encerro aqui estas reflexões com esta evocação. Bem, confesso que sempre julguei o fato de que a falta de foco no diagnóstico impediu Bento XVI de aproveitar suas excelentes qualidades de síntese precisa e exposição esclarecedora sobre este tema central que a ampla divulgação de seu livro lhe oferecia como o perda de uma grande oportunidade sobre o Nazareno. Ao não ter em conta os avanços dos estudos bíblicos, a proclamação conciliar da autonomia do mundo e o novo diálogo entre as religiões, não conseguiu apresentar ao mundo uma visão atualizada e verdadeiramente credível da sua figura. A figura cativantemente humana, de alguém como nós, que, anunciando que a palavra que Deus é amor infinito e perdão incondicional, e que, exercendo uma conduta fraterna, comprometida e libertadora de todos os humilhados e ofendidos, permanece ali como um farol aberto, que, hoje como no início, continua a enviar sinais com os quais muitas pessoas no mundo sintonizam intimamente, encontrando neles sentido e salvação.
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Bento XVI. Uma teologia transformada em magistério. Artigo de Andrés Torres Queiruga - Instituto Humanitas Unisinos - IHU