17 Outubro 2022
“Hoje, sobre a mesa, está apenas a lógica militar. Devemos nos comprometer com a paz pelo menos tanto quanto nos dedicamos ao rearmamento. É uma quimera? Não, é do Homo sapiens”, afirma o presidente da Conferência Episcopal Italiana (CEI).
A reportagem é de Marco Politi, publicada por The International Post, 14-10-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Naquele dia, 24 de fevereiro, quando ocorreu a invasão, lembro-me que senti medo imediatamente. Senti que era o início de algo que não se resolveria facilmente. A sensação de uma reviravolta que condicionaria os meses seguintes. Nunca acreditei que tudo se resolveria facilmente. Embora no início houvesse simulacros de diálogo entre a Ucrânia e a Rússia, que infelizmente não foram buscados. Talvez fosse preciso fazer mais. Pelo menos havia a forma da negociação; hoje não existe nem mesmo isso.”
Aos 67 anos, o cardeal Matteo Zuppi, alto e magro em seu clergyman cinza que tem o ar de um terno de trabalho, tem um sólido passado como pároco. Dos antigos, que conhecem a carne e os ossos de seu próprio povo, fiéis e não fiéis. Sem pompa, sem espiritualidade afetada. Liderou duas paróquias de ambiente popular e sente falta disso. Santa Maria em Trastevere em Roma e depois Santos Simão e Judas Tadeu nos arredores da capital italiana, Torre Angela.
Igualmente forte nele é a experiência vivida com a Comunidade de Santo Egídio, engajada em missões de paz em várias partes do mundo. Bispo auxiliar de Roma em 2012, o Papa Francisco rapidamente o levou para a primeira linha em poucos anos, nomeando-o arcebispo de Bolonha em 2015 (para reequilibrar a gestão de rigidez doutrinal de dois cardeais wojtylianos, Biffi e Caffarra), dando-lhe a púrpura em 2019 e confiando-lhe neste ano a presidência da Conferência Episcopal Italiana (CEI).
Cardeal Zuppi, amplia-se o desconforto com a escalada da guerra na Ucrânia. O movimento pela paz é atacado a priori como o “idiota útil” do agressor. A paz é uma palavra suja?
É a única palavra que se conjuga com a vida. Não há vida sem paz. É a condição para o ser humano ser ele mesmo. Uma palavra para defender e procurar como o pão, como o ar. Damo-nos conta do ar quando ele desaparece. Damo-nos conta do bem da paz quando ficamos sem fôlego diante do que está acontecendo.
Falar de paz, dizem os defensores da guerra ao extremo, é um presente dado ao agressor.
Isso não é uma novidade. O meu pré-antecessor, que era arcebispo de Bolonha e se tornou papa com o nome de Bento XV, definiu a Primeira Guerra Mundial em 1917 como um “inútil massacre”, e por todos os lados o acusaram de ser um derrotista, um traidor, alguém que deslegitimava os combatentes ou favorecia o inimigo. Em vez disso, ele queria favorecer a todos. Gostaria que todos lessem um esplêndido livro intitulado “Tu non uccidere”, escrito pelo Pe. Primo Mazzolari.
Francisco esteve junto ao túmulo dele.
Sim. Mazzolari viveu as duas guerras mundiais e na primeira também havia sido intervencionista, ou seja, de alguma forma a havia justificado. Seu livro é um destilado da sabedoria do que ele tinha visto. Mas foi logo acusado de ser pró-soviético, de jogar o jogo do inimigo. Em vez disso, Bento XV e Mazzolari tinham razão. Falar de paz é profético, porque é a partir da dor e dos sofrimentos das pessoas que se constrói o futuro. Toda a geração que passou pela Segunda Guerra Mundial tinha muita clareza de que a terceira seria a última. Era preciso fazer de tudo, renunciar até mesmo à soberania para permitir que as nações vivessem juntas e garantissem a paz. Assim nasceram a ONU e a União Europeia.
Sinto-o inquieto.
Hoje, registra-se apenas a lógica militar. Ela leva à paz? Significa vitória de um e derrota do outro. Para chegar a isso, na Segunda Guerra Mundial foram necessários cinco anos, milhões de mortos e o uso da bomba atômica. Acho que é decisivo tentar pensar que existem formas para alcançar a paz sem que isso envolva o preço da derrota de alguém.
E então?
Digo de imediato que há o problema da justiça. Paz e justiça andam juntas. A paz, para que seja verdadeiramente paz, requer justiça. Mas, se não há paz, é difícil chegar à justiça, senão a do vencedor. Então, é preciso saber qual é a conta que deve ser paga... a eventualidade da guerra nuclear. Como Kissinger sabiamente disse, se só há uma lógica militar, é apenas geometria: em um conflito, armas são usadas, todas elas, inclusive aquelas. É trágico, mas é assim. Não é verdade que as armas podem garantir o equilíbrio. Se não houver mais equilíbrio, tudo explode. É preciso encontrar a forma para que as armas nucleares não sejam usadas.
No início do mês, Francisco fez uma declaração precisa: Putin deve parar, Zelensky deve se abrir a “propostas sérias de paz”, a comunidade internacional deve se mobilizar. E é preciso ir rumo a um cessar-fogo imediato.
É um pedido realista. Pode parecer ingênuo, porque, quando você está combatendo, você pensa em dizer: deixe-me terminar. Mas quando você para de combater? As pressões por um cessar-fogo, mesmo com todos os riscos, são a melhor forma para começar pelo menos um diálogo exploratório. Há uma nuance naquilo que o papa disse. Ele entende as dificuldades de Zelensky e vai ao encontro dessas dificuldades. Ele lhe diz: aceite algo sério. Sendo agredido e tendo um terço do país ocupado por forças estrangeiras, é claro que você deve ter um mínimo... mas faça-o!
O Vaticano denunciou oficialmente, por meio do Dicastério para a Comunicação, o desdobramento de um pensamento único, que prega apenas o capacete a ser usado e a continuação da escalada. Assim, declarou um de seus expoentes, Andrea Tornielli, deslizamos para o abismo nuclear.
Às vezes, há também o vício do “armemo-nos e partamos!”. Na realidade, o principal problema é que hoje, sobre a mesa, está apenas a lógica do rearmamento. Para sermos benevolentes, poderíamos dizer: rearme-se, mas dedique pelo menos a mesma pressão para colocar em campo um mecanismo de paz. Pelo contrário, não se faz isso.
O apelo do papa é mais amplo.
De fato, não se destina apenas às duas partes em causa. Todos estamos envolvidos, porque há o envolvimento militar e depois em nível internacional. Um compromisso internacional, forte e unívoco, pode tranquilizar as partes de que a paz é possível e é o melhor caminho.
A opinião pública ficou impressionada com algumas declarações do papa: “Aqui não estamos com a Chapeuzinho Vermelhos e o lobo... Não é uma história de caubói...”.
Francisco usa uma linguagem clara e direta. Simples, mas não superficial. Ele fotografa atitudes, chame as coisas pelo seu nome. Ter uma linguagem que vai direto ao ponto é seu grande dom. Não somos ingênuos! A guerra não é como o filme “No tempo das diligências”, que a minha geração – pelo menos em parte – viu no cinema do oratório. “Os nossos” não estão chegando! Não é nem mesmo um videogame. As imagens são tragicamente verdadeiras, os mortos são reais.
Francisco propõe uma nova governança mundial, um novo pacto de Helsinki para superar a lógica do confronto entre blocos militares.
Ele também disse outra coisa. O que ainda temos que esperar para escolher a única saída para a situação? As Nações Unidas nasceram depois da guerra para se dotar de instrumentos aptos a resolver os conflitos. Se o único instrumento é a lógica das armas, então se afirma a lógica do mais forte. Não podemos abolir os conflitos, mas podemos trabalhar pela resolução dos conflitos sem a lógica das armas. Isso é utópico? Não, é do Homo sapiens. Valorizar enormes sofrimentos que já ocorreram. É verdadeiramente uma loucura esperar que haja outros. Por isso, o apelo do papa para encontrar uma composição internacional, uma nova Helsinki é positivo. Ver quais instrumentos não funcionaram e criou outros mais fortes. Se, para chegar a isso, é preciso ter mais milhares de mortes, devemos agir para evitar isso.
O restante do mundo, apontam muitos analistas católicos, está relutante em participar do duelo entre Ocidente e Rússia.
É compreensível. O Papa Francisco convida a pensar sobre a complexidade. É preciso entender os problemas, mesmo que pareçam distantes de nós. O tsunami da guerra chega a todas as partes. Chega com a fome na África. Chega com a falta de energia na Itália e na Europa. Toda guerra produz radiações, poluição de ódio e outras tensões. Por exemplo, o fato de muitos países não estarem alinhados com o Ocidente e, pelo contrário, ter se disseminado uma reconstrução – obviamente distorcida – segundo a qual o Ocidente seria “o agressor” deve levar a entender melhor o restante do mundo e a estar ainda mais determinado a agir para resolver os problemas juntos. No mundo interconectado, as soluções devem ser buscadas juntos.
Em Assis, grupos católicos começaram a se unir para se manifestarem juntos pela paz. É uma utopia?
Mesmo que fosse uma utopia... Alguns dizem que é totalmente inútil, contraproducente... Mas depende de como for feita. Pedir a paz e escolher a paz está sempre na direção certa. Não é ingenuidade, é a manifestação a todos de uma determinação. Consciente dos problemas. Às vezes, o pacifismo pode ser reduzido a uma bondade barata e a bons sentimentos. Mas, assim como o bem não tem nada a ver com o bonzinho, o operador da paz não tem nada a ver com o pacifista genérico. É muito mais. É uma indicação clara para pressionar por uma solução que force uma paz justa. O operador da paz não confunde as causas, lembra-se muito bem delas. Não confunde o agressor com o agredido, mas busca todos os espaços possíveis para evitar que a paz chegue depois de mais lutos. Que a paz não seja a dos cemitérios ou não seja paga à custa de mais ódio.
O que os bispos farão?
O episcopado italiano já acompanhou com grande atenção as iniciativas de muitos órgãos que manifestaram solidariedade concreta ao povo ucraniano e levaram muitas ajudas e favoreceram o acolhimento. Os bispos italianos assumem o apelo do papa e ajudarão como puderem, em plena solidariedade, para que seus pedidos não caiam no vácuo, mas sejam seguidos por iniciativas seriamente exploratórias.
O jornal Avvenire, dos bispos italianos, denunciou em um editorial recente a existência de um “partido da guerra” transversal, com o risco de as pessoas se acostumarem com um conflito atômico.
Ai de nós se nos acostumarmos, mesmo que apenas na linguagem. Somos filhos de uma geração que tinha horror do conflito atômico. Nestes dias, celebra-se uma data importante: 60 anos do início do Concílio Vaticano II. Em muitos documentos, fala-se de paz. Especialmente na Gaudium et spes. Há uma grande consciência de que se vive um tempo de “trégua”, sabendo aonde leva a lógica da guerra. Nós, nascidos logo depois, no fundo, tínhamos a sensação de que uma nova guerra não se repetiria. Olhávamos para a frente. Nos anos 1950 e 1960, havia um impulso incrível para ressurgir e construir o bem-estar na Itália, para construir a Europa. Talvez o fato de nos lembrarmos do horror pelo poder das bombas nucleares devesse nos conscientizar do perigo que sempre paira. Acostumarmo-nos, diminuindo o nível de defesa psicológica, é um erro. O alerta deve permanecer muito alto, porque o risco é muito alto. Chegar ao uso de qualquer dispositivo nuclear, mesmo que um só, seria a realização de um pedaço desastroso da terceira guerra mundial.
O que você se lembra daqueles anos?
O discurso belíssimo de Paulo VI na ONU, em 4 de outubro de 1964. No qual ele advertiu que são as vítimas da guerra que pedem para construir a paz. E aqui ele citou o sangue de milhões de homens, os inumeráveis sofrimentos, o fato de que as novas armas nucleares se transformaram em um pesadelo. Paulo VI se apresenta como aquele que dá voz aos mortos caídos “sonhando com a concórdia” e aplaude o compromisso das Nações Unidas para evitar a guerra.
Você sabe muito bem que a frase em circulação soa assim: que Putin se retire para além de suas fronteiras, e tudo volta ao seu lugar.
É certo, não há dúvida. Mas o problema é como chegar lá. O ponto é como se compõe o conflito. O conflito tem causas, e as causas não estão apenas de um lado, atenção! É claro que Putin deve voltar para o lugar de onde veio, mas todas as causas do conflito devem ser resolvidas. O objetivo é uma paz justa. Mas, se as raízes não forem resolvidas, outros conflitos são gerados.
Nos últimos dias, casualmente, dois projetos de paz foram publicados. Um do presidente da Academia Social das Ciências, Prof. Zamagni, e um do empresário superbilionário Elon Musk. É um sinal de que os ambientes empresariais e os grupos de interesse também estão preocupados com o rumo que os eventos estão tomando?
É um sinal de que a Igreja e os fiéis nunca são idealistas ingênuos ou inexperientes. Eles fazem o esforço de traduzir o ideal em escolhas concretas. São verdadeiramente “artesãos” da paz. Olhemos para a encíclica Fratelli tutti: é um texto que tem palavras muito claras sobre a guerra e sobre as responsabilidades de ter enfraquecido a ONU e os instrumentos de composição pacífica dos conflitos. Ela se dirige a todas as pessoas. Apresenta um ideal que nasce do Evangelho, mas vai além do Evangelho, dirigindo-se à humanidade. É uma forma de esperanto de paz que pode fazer com que todos entendam que a paz é possível e que, sem a paz, estamos todos ameaçados, e tudo está perdido.
Você viveu as negociações de paz entre as facções em Moçambique. Viveu aquele clima de ódio e vingança por mortes, destruições, torturas. Tudo isso pode ser superado?
É verdade, foi uma experiência forte. Acima de tudo, precisamos interromper a corrente do ódio e apagar a violência. O ódio tem uma raiz antiga e profunda. Ele se transmite por gerações, o mal cresce, se torna preconceito, produz mais violência. Mas em Moçambique também vi que tudo pode mudar. A paz que parecia impossível pode chegar e se manter. Uma freira morta recentemente em um ataque islamista dizia que, no dia da paz, 4 de outubro de 1992, um grupo de militares chegou ao seu vilarejo. As pessoas tinham medo, e então todos começaram a dançar. “Ali eu vi Deus”, disse-me aquela freira.
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“Abolir a guerra não se pode, mas parar o conflito se deve”. Entrevista com o cardeal Matteo Zuppi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU