10 Agosto 2022
"Talvez o caminho mais intrigante seja aquele de refazer a narrativa da nova 'santa aliança' a partir da história, dos textos, dos gestos, da fé, dos antigos e dos novos protagonistas do mundo islâmico", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 08-08-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Uma tese e duas referências a figuras eclesiais: no complexo e argumentado volume de Riccardo Cristiano, Figli dello stesso mare. Francesco e la nuova Alleanza per il Mediterraneo (Filhos do mesmo mar. Francisco e a nova Aliança para o Mediterrâneo, em tradução livre, Castelvecchi, Roma 2022) em primeiro lugar está a ideia central de um futuro possível dos povos do Oriente Médio e daqueles que se debruçam sobre o Mediterrâneo. Somente uma nova aliança baseada no reconhecimento dos direitos de cidadania em uma fraternidade renovada, alimentada pela fé, permitirá sair da guerra sem fim. Um grande afresco que se vale de centenas de referências, mas que valoriza particularmente a intuição espiritual e política do Papa Francisco e do padre Paolo Dall'Oglio.
Riccardo Cristiano, Figli dello stesso mare, Castelvecchi, Roma 2022, 232 pp., 17,50 euros.
A referência ao Mediterrâneo e aos povos que ali encontram seu centro de gravidade me lembrou a intuição de Giorgio La Pira que sobrepunha o lago de Tiberíades dos Evangelhos com o Mediterrâneo dos povos.
Numa carta de 4 de maio de 1958 assim escrevia ao Papa Pio XII:
“O Mediterrâneo, o ‘lago de Tiberíades’ do novo universo das nações; as nações que estão às margens deste lago são nações que adoram o Deus de Abraão, Isaque, Jacó; do Deus vivo e verdadeiro. Essas nações, com o lago que elas cercam, constituem o eixo religioso e civil em torno do qual deve gravitar o novo Cosmos das nações: do Oriente e do Ocidente viemos para cá; este é o misterioso Jordão em que o rei sírio (e todos os "reis" da terra) devem lavar-se para se purificarem da sua lepra”.
A intuição visionária do prefeito de Florença paira em termos mais seculares, mas com a mesma atenção às fés e à sede petrina, nas páginas do jornalista de longa data e vasta experiência Riccardo Cristiano.
"A nova aliança de que fala o autor - observa no prefácio Massimo Borghesi - é aquela entre os povos de Abraão, entre os membros "árabes" de diferentes credos, chamados a superar o horizonte das divisões religiosas, a partição de poderes em bases às pertenças de fé, a fórmula do protetorado que encasula as várias comunidades em mundos fechados, não comunicantes. É uma "aliança sagrada" diferente daquela que, em 1815, trazia a Europa de volta ao status quo anterior à revolução e às guerras napoleônicas. A perspectiva que orienta Cristiano é a de uma nova concepção na relação entre as religiões que encontra sua referência na figura do Papa Francisco e nas personalidades mais abertas do mundo islâmico e cristão do Mediterrâneo e do Oriente Médio” (p. 7).
E Cristiano especifica:
"À guerra que assola o Mediterrâneo para combater o tempo, a história, com a expulsão do outro - uma guerra que devasta as costas do sudeste do Mediterrâneo desde os anos 1980 e que a Europa espera agora poder ignorar fechando-se numa fortaleza com portas giratórias que permitem sair, mas não entrar - Francisco opõe à "nova santa aliança" que é a aliança com o outro. Uma aliança que parte da compreensão de que o nosso pensamento é incompleto, ao contrário daquele de Deus. O pensamento do outro ajuda o nosso a prosseguir” (p. 21).
O desafio vai além dos contrapostos fundamentalismos do islã, supera as pretensões messiânicas neocon do Ocidente e suas guerras no Golfo, mas também o assustado encasulamento das comunidades cristãs locais na ideia do “protetorado”. O poderoso local de plantão concede a possibilidade de sobrevivência daquelas comunidades por benevolência, mas faz delas seus instrumentos, anulando sua vocação de alimentar o diálogo religioso e apontar para todos os direitos de cidadania em um contexto democrático.
São quarenta anos que a guerra habita permanentemente as áreas do Oriente Médio em suas sucessivas temporadas (o conflito russo-afegão, o conflito iraquiano-iraniano, a primeira e a segunda guerra do Golfo, a envolvimento do Líbano, o expansionismo turco, etc.).
Nem a tradução intransigente do Islã khomeinista do Irã, nem aquela wahhabista da Arábia Saudita e, muito menos, o fundamentalismo jihadista do Isis e dos neocalifas parecem incomodar as autocracias locais. Nenhum protagonista do poder interpreta as instâncias libertárias e humanistas das ruas que em 2011 se encheram de povos e jovens gerações.
O Islã interior e popular encontrou maior sintonia e eficácia na visão da fraternidade universal de Francisco e daqueles que no sunismo (Ahamad al Tayyib, de Al-Azhar) e no xiismo (Al Sistani) perceberam a necessidade de uma reforma humanista do islamismo, do retorno às suas origens, de um diálogo igualitário com o cristianismo.
Se a primeira parte do livro trata da "guerra dos quarenta anos" e a segunda traça os elementos essenciais das relações entre a Europa e o Oriente Médio, das respectivas culturas e do diálogo das fés, a terceira parte centra-se no Papa Francisco e sua visão.
Do sínodo extraordinário sobre o Líbano (1991) ao sínodo sobre o Oriente Médio (2010), do magistério não desprovido de ondulações de Bento XVI às escolhas nem sempre lúcidas dos episcopados locais, chega-se à progressiva elaboração de Francisco.
Já na Evangelii Gaudium, percebe-se a atenção ao Islã popular e humanista no juízo sobre as praças libertárias do Oriente Médio: "Em muitas partes do mundo, as cidades são cenários de protestos em massa onde milhares de habitantes exigem liberdade, participação, justiça e diversas reivindicações que, se não forem adequadamente interpretadas, não poderão ser silenciadas pela força” (p. 140).
As varreduras subsequentes especificam as condições e os critérios para um diálogo que não tolera nenhuma pretensão de hegemonia. As etapas mais significativas são a viagem ao Egito em 2017, o Documento em prol da fraternidade humana pela paz mundial e convivência comum (Abu Dhabi, 2019), a encíclica Fratelli tutti (2020) e a viagem ao Iraque (março de 2022).
Assim, o documento de Abu Dhabi indica o tema da cidadania: “O conceito de cidadania baseia-se na igualdade de direitos e deveres sob cuja sombra todos usufruem de justiça. Por isso é necessário empenhar-se para estabelecer em nossas sociedades o conceito de cidadania plena e renunciar ao uso discriminatório do termo minorias, que carrega consigo as sementes do sentimento de sentir-se isolados ou de inferioridade; prepara o terreno para as hostilidades e discórdias e rouba as conquistas e os direitos religiosos de alguns cidadãos discriminando-os” (p. 202).
A segunda figura de referência, depois do Papa Francisco, é o Pe. Paolo Dall'Oglio. É reconstruído o seu sequestro (29 de julho de 2013) e suas razões: o portador de uma carta dos curdos aos combatentes do Isis. “Ele sabia que aquela carta era uma débil busca de que nada sabemos, para evitar uma chacina, uma das páginas mais obscenas da história recente. Ele não podia desistir; ele não desistiu” (p. 121).
Mas aquela escolha, talvez o desfecho final de sua vida (ainda não temos certeza), estava ligada à intuição do sentido da presença cristã naquelas terras ou, em outras palavras, "a questão propriamente teológica do valor e da função do Islã na história da salvação" (p. 122). Uma função que não deve ser defendida no restrito do "protetorado" do poderoso de plantão, mas desempenhada com confiança na lógica da esperança e da caridade. Sabendo apreciar, por exemplo, a derrota infligida a nós cristãos pelo islamismo: "bloqueia a pretensão do cristianismo de construir a sociedade perfeita, final, escatológica" (p. 124).
Em outras palavras, Dall'Oglio é a tradução antecipada no campo das intuições de Francisco.
As breves notas aqui referidas não revelam a rica complexidade do texto. Basta mencionar o retrato muito pungente de alguns protagonistas, como o turco Erdogan e o sírio Assad. Em particular, a relevância moral e espiritual de homens como Giovanni Fausti, Mohammad Taha, Maher Mahmassani, Roger Asfar, Amin Maalouf etc. Talvez o caminho mais intrigante seja aquele de refazer a narrativa da nova "santa aliança" a partir da história, dos textos, dos gestos, da fé, dos antigos e dos novos protagonistas do mundo islâmico.
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Filhos do mesmo mar. Francisco e a nova Aliança pelo Mediterrâneo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU