11 Julho 2022
"Eis que, quando a Europa pensa em Erdogan como o negociador da crise, não deve esquecer as analogias dos dois líderes na gestão do poder: as denúncias dos cidadãos ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, os sistemas de controle de ambos os países que ignoram o Estado de direito, eleições cada vez menos livres, cada vez menos justas. A retórica de suas narrativas bélicas e revisionistas. A oposição perseguida e reprimida. Os abusos contra a minoria curda, que tanto lembram a conduta russa na Ucrânia", escreve Francesca Mannocchi, jornalista e documentarista italiana, em artigo publicado por La Stampa, 08-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Há pouco mais de um ano, em abril de 2021, o primeiro-ministro Mario Draghi, em uma definição que causou certo constrangimento, chamou Recep Tayyip Erdogan de "ditador". Mas acrescentou: "A consideração a ser feita é que com esses ditadores com os quais, no entanto, é preciso colaborar, ou melhor, cooperar, é preciso ser francos em expressar a diversidade de visões, comportamentos, visões, mas prontos a cooperar para os interesses do próprio país."
Essa declaração - que provocou uma reação imediata de Ancara (o embaixador italiano na Turquia, Massimo Gaiani foi convocado, e o ministro das Relações Exteriores turco, Mevlüt Çavuşoğlu, qualificou como "impudentes" as palavras de Draghi) - teve o mérito de revelar a ambiguidade que há anos guia as relações com a Turquia. Na última terça-feira, Draghi voou para a Turquia para o primeiro encontro após o incidente diplomático de um ano atrás para relançar a aliança entre os dois países e apoiar o papel turco de mediador entre a Rússia e a Ucrânia.
No meio está a crise alimentar - a exportação de milhões de toneladas de trigo através de corredores seguros no Mar Negro - os acordos econômicos bilaterais entre a Turquia e a Itália, a crise migratória na Líbia.
O Ocidente tem uma longa história de alianças e pactos com regimes e líderes autoritários de todo o mundo, aliados questionáveis, mas necessários. É o princípio que rege as negociações, que busca manter equilíbrios entre as partes, pois se sabe que se negocia com os adversários e não com os solidários.
No topo da lista de aliados necessários e questionáveis para a Europa está justamente Erdogan. Necessário para conter o fluxo migratório em 2015, por exemplo, apesar de ter minado a democracia turca, invadido territórios curdos, aprisionado opositores políticos e jornalistas e, mais recentemente, ameaçado impedir a adesão da Suécia e da Finlândia à OTAN, colocando na balança as sortes da minoria curda que o Ocidente mostrou repetidamente que está pronto a sacrificar.
É o realismo da política e nisso Erdogan vem fazendo escola há anos, e o faz justamente nas relações com a Rússia, que a Europa deveria ter observado com mais atenção.
Para descobrir que os dois líderes são muito mais parecidos do que pensamos e que encontraram em diferentes cenários um equilíbrio que os tornou não amigos, mas também não inimigos.
Rússia e Turquia permanecem em duas frentes diferentes do conflito sírio, com a Turquia apoiando os rebeldes contrários a Assad. Não há acordo sobre a Líbia, pois os mercenários russos ajudavam o general Khalifa Haftar enquanto a Turquia enviava tropas para apoiar o governo de Trípoli. Na Ucrânia, a Turquia, em teoria, se opõe veementemente à anexação da Crimeia pela Rússia, pátria dos tártaros turcos. Mas a aliança cujas raízes hoje vale lembrar, resiste para não cometer o erro - pensando em encontrar um negociador para a crise global gerada pela invasão russa da Ucrânia – de alimentar o poder chantagista de Ancara.
É verdade que o Ocidente precisa da Turquia do seu lado na guerra econômica contra a Rússia, porque o apoio de Ancara pode limitar o fluxo de mercadorias russas sancionadas dentro e fora do Mar Negro, mas também é verdade que a Turquia se tornou um dos principais destinos para o dinheiro russo em fuga das sanções e os dois países compartilham interesses energéticos em áreas cruciais do Mediterrâneo e da Ásia.
Rússia e Turquia apoiam há anos dois governos opostos na Líbia.
Enquanto o governo de Trípoli é apoiado pela Turquia e Catar, o homem forte Khalifa Haftar, com base no leste, tem o apoio da Rússia (além da Arábia Saudita, Egito e Emirados Árabes Unidos).
Quando Haftar atacou Trípoli em 2019, o então primeiro-ministro líbio pediu em vão o apoio dos aliados europeus. Assim, após a chegada dos mercenários russos do grupo Wagner, Sarraj correu aos reparos e firmou dois acordos com os turcos. O primeiro é militar: a Turquia envia os drones Bayraktar, os mesmos que hoje chegam à Ucrânia, virando a sorte da guerra e libertando Trípoli.
Em troca dos drones, Erdogan pediu e obteve um segundo acordo, o tratado sobre os direitos de perfuração de gás no Mediterrâneo, que traça uma linha vertical através do Mediterrâneo, interrompendo os planos entre Grécia, Chipre, Egito e Israel sobre os direitos de perfuração de petróleo e gás. De acordo com o pacto com a Líbia, a Turquia absorveria parte das águas territoriais da Grécia. Ancara faz isso amparada pelo fato de que nunca reconheceu a convenção da ONU de 1982 sobre as fronteiras marítimas, não reconhece a República do Chipre do Sul e seus acordos para uma zona econômica exclusiva com Egito, Líbano e Israel, portanto, considera que está operando em águas de sua própria competência.
A Europa está preocupada, Grécia, Chipre e os países da UE exigem que seus interesses energéticos na área sejam defendidos.
Erdogan continua em frente, capitaliza a fraqueza do governo de Trípoli, a ausência da Europa e assume os interesses por uma fatia da Líbia. Também por isso Draghi coloca no centro no tema migratório durante o encontro turco: ele sabe que a influência que a Itália tinha antes nas costas líbias foi parcialmente substituída por aquela turca e é novamente com ele, Erdogan, portanto, que é preciso discutir sobre a gestão dos fluxos migratórios.
Escreve-se Líbia e se lê petróleo, escreve-se Líbia e se lê alianças fluidas e sobreponíveis.
Em 2020, enquanto a Europa buscava uma mediação, que depois fracassaria, entre os governos líbios de Haftar e al-Sarraj, Putin e Erdogan (antagonistas no papel) estavam em Istambul para inaugurar o Turkish Stream, o gasoduto de 930 km, no valor de quase 7 trilhões de dólares, que pode transportar até 31,5 bilhões de metros cúbicos de gás anualmente da Sibéria para a Europa Oriental via Turquia.
Na cerimônia de inauguração, Putin disse que o oleoduto era um sinal de "cooperação" que sublinhava a amizade entre Ancara e Moscou. No ano passado, por essa rota, a Bulgária recebeu 10,5 milhões de metros cúbicos de gás; a Grécia, 9,6 milhões; a Sérvia, 8,9 milhões; a Romênia, 8,5 milhões; a Hungria, 6,3 milhões, e a Macedônia do Norte, 1,7 milhão.
No final de junho, o consórcio estatal russo de gás Gazprom suspendeu os fluxos de gás através do gasoduto Turk Stream por uma semana "devido à manutenção preventiva", dizia o comunicado. Uma retaliação russa à Europa, é claro, mas também uma forma de lembrar Erdogan que antes de ser um "negociador" com a Ucrânia, ele era um parceiro de negócios do Kremlin.
Um terreno de equilíbrio semelhante para a Rússia e a Turquia é o sul do Cáucaso e aqui também é preciso voltar pelo menos alguns anos, quando em outubro de 2020 se reacendeu a disputa territorial de trinta anos entre o Azerbaijão e a Armênia pelo Nagorno-Karabakh.
Guerra diferente, mesmos aliados: a Rússia em apoio à Armênia e os turcos ao Azerbaijão.
Quando os combates recomeçaram em 2020, a Turquia enviou armas e tropas mercenárias e a Rússia lançou uma mensagem clara ao Azerbaijão organizando a Operação KavKaz 2020 (Cáucaso 2020): um exercício de 1.500 trupas russas e armênias não muito longe da fronteira, de forma a dizer aos azeris que o Kremlin considera o sul do Cáucaso como sua esfera natural de influência.
O conflito em Nagorno Karabakh projeta o antagonismo entre Rússia e Turquia em um cenário semelhante ao da Líbia: países rivais, mas não inteiramente inimigos.
Para compreender plenamente o interesse das duas grandes potências no Cáucaso, basta olhar o mapa. No centro do conflito, os hidrocarbonetos do Cáspio passando pelo Cáucaso e Nagorno-Karabakh no centro, que serve de corredor para os oleodutos que levam petróleo e gás aos mercados mundiais.
Após a queda da União Soviética, o Azerbaijão tentou exportar seu petróleo e gás sem depender dos oleodutos russos, atraiu investidores ocidentais, instalando oleodutos e gasodutos que permitiram ao país transportar sua energia do Mar Cáspio para os mercados internacionais, uma das razões que atraíram os investidores turcos nas últimas décadas e uma das razões, portanto, do envolvimento direto de Ancara no conflito.
Apesar das premissas e das hostilidades, Erdogan e Putin negociaram para resolver a crise, impuseram uma trégua e favoreceram uma solução política.
Na partida de Nagorno Karabakh, foi a Rússia que assumiu o papel de negociador.
Em 8 de junho passado, quando o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Lavrov, voou para Ancara para se encontrar com seu colega Cavusoglu, não apenas o trigo ucraniano estava na balança, mas também os negócios caucasianos.
Cavusoglu agradeceu à Rússia pelo papel de facilitador na normalização das relações entre Turquia e Armênia e deu luz verde a um fórum de 6 países para alcançar a paz entre Azerbaijão e Armênia no Cáucaso. Uma mão lava a outra.
Eis que, quando a Europa pensa em Erdogan como o negociador da crise, não deve esquecer as analogias dos dois líderes na gestão do poder: as denúncias dos cidadãos ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, os sistemas de controle de ambos os países que ignoram o Estado de direito, eleições cada vez menos livres, cada vez menos justas. A retórica de suas narrativas bélicas e revisionistas. A oposição perseguida e reprimida. Os abusos contra a minoria curda, que tanto lembram a conduta russa na Ucrânia.
Quanto mais o Ocidente busca uma política de apaziguamento com a Turquia, mais Erdogan é descarado e chantageador, em 2019, adquirindo o sistema russo de defesa aérea S-400, que se acredita representar um desafio formidável para as aeronaves da OTAN, e depois usando os migrantes como uma arma para minar a estabilidade da Europa meridional.
A mesma Europa que desde 2016 paga 6 bilhões de euros a Ancara para impedir que os 3,7 milhões de sírios que o país abriga cheguem à Grécia.
É disso que falamos, quando falamos da Turquia.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O jogo duplo de Erdogan - Instituto Humanitas Unisinos - IHU